terça-feira, outubro 24, 2006

A PORTA ENCOSTADA E A MÃO DE FERRO


Sempre que os nossos vizinhos se reuniam à noite em minha casa - e era sempre, na semana quase toda - esta mão de ferro (de que já falei) estava continuamente disponível. Com ela, como num aperto de mão invulgar, levantávamos e empurrávamos os dedinhos frios contra o batente, outra peça de ferro, placa redonda cravada na madeira, e assim o pedido de entrar ressoava em volta e dentro de casa: assim vinham até nós diversas visitas, vagabundos ou pobrezinhos. Acon-tece que, naquele tempo dos serões em volta da mesa quadrada, onde se falava de espiritismo e se jogava às cartas, uma simples bisca com batota subtil e risos e protestos retumbantes, a mãozinha, fingindo-se de prata, quase nunca acordava, igualmente parecia colada em pose, pendente, despojo de muitos anos atrás, escultura funcional que estava na moda, entre variações secas e luxuosas, papudas, monárquicas.
Na sala, o entusiasmo aumentava, bluf após bluf, e tarde na noite outras pessoas vinham até à nossa casa, beber qualquer coisa e espreitar o jogo de cima da sua posição em pé. Entravam sem bater no batente porque a porta da rua (veja-se como era o mundo outrora) estava sempre encostada, uma fresta entre o pátio e a rua, franqueza, pragmatismo, confiança, nenhuns demónios vencendo o espaço da porta semi-aberta - encostada, como era nosso hábito referir. E mesmo de dia, depois de todos acordados e do pão chegar (porque chegava num sereno porta a porta), a partida para a Escola já era facilitada pela porta com o trinco destravado; também à tarde, aliás, quando a chegada dos estudos compulsivos aliviava os meninos todos. Logo, logo, a avó fazia o lanche e o relógio dela batia horas da mesma maneira que a mãozinha de ferro batia eventuais visitas. E a porta sempre assim, ainda encostada, franca, eu exilado na casa durante anos silenciosos, muito tempo depois, perdida a família nos falecimentos da roda da vida, flores e campas de mármore no cemitário ao fundo da estrada principal.
Um dia, manhã muito cedo, quando o meu exílio na casa de família contava largos anos de solidão, a insónia trouxe-me até ao escritório e ali fiquei a ver a rua e as paredes rasuradas. Destravara o trinco da porta - a que me separava da rua - cumprindo assim uma longa tradição, mesmo que o risco rondasse os arredores, objectos arrebatados às velhotas para servir de troca na urgência da droga. Um som abafado, como acontece quando se deixa cair no chão um saco cheio de roupa, veio rondar os meus ouvidos, agitando ligeiramente o coração. Fui ver. Pela fresta da porta, no cinzento azulado do exterior, uma grande amiga minha, pálida, envelhecida, com um saco no chão e outro ao ombro, fitava a mão de ferro, olhos molhados de uma saudade refém das imagens da juventude e dos dias em que arrebatadamente accionávamos os dedinhos de ferro sobre o batente imóvel.
Abri bem a porta, ela viu-me, lábios brancos e apertados: talvez viesse no intuito de me proteger, de aquecer esta velhice, tal como prometera há vinte anos, falando de aquecimento e ternura, possível e previsível situação tendo em conta o avanço da minha determinante idade, esse deslimite que nos unia e fazia a diferença.
«Não disseste que vinhas».
«Não dava».
E fui eu, vinte anos mais tarde, quem a recebeu ternamente e teve de assumir a penosa tarefa de a tratar em pleno horror definido pela doença em estado terminal que ela transportava nas entranhas.
Deitada, dias depois, no quarto das bonecas, lembrou-se da mão de ferro e da porta encostada. Perguntei-lhe se queria sair, reaver aqueles passeios de outros tempos, respirar a força do ar na orla da cidade breve.
Olhou-me, sofucada, e disse apenas, como era seu hábito:
«Não dá».
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suscitado por algumas sequências de «A CASA REVISITADA», de rocha de sousa

segunda-feira, outubro 23, 2006

UM INCIDENTE PROVIDENCIAL

NOTÍCIA
A vaguear pelos sítios das imagens e das palavras, reparei que uma parte daquilo que gosto de fazer ficava apenas aflorado no generalismo de DESENHAMENTO. E obriguei-me a publicar um outro blog destinado a divulgar, num apelo à troca crítica de ideias sobre tais matérias, obras minhas de pintura, pintura digital, fotografia criações similares.
ACEDA ao novo blog CONTRUPINTAR02
através do endereço
www.rochasousa02.blogspot.com

sábado, outubro 14, 2006

OS RESTOS COMO REQUIEM URBANO









reciclar, perder, recuperar, abandonar, ser, restos como requiem urbano, cascas de casa

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Andavam os vagabundos e os sem abrigo pesquisando o conteúdo das sargetas quando lhes caíu um motor de avião em cima. Sábios, logo disseram que nada daquilo pertencia a Bin Laden, pois o expediente era demasiado pobre e pouco matador para que se fizesse tal juizo. Tratou-se apenas de um incidente, espécie de terrorismo ocidental . A ordem ocasional das coisas pode ser estudada na complexidade crescente dos excessos degradados do lixo, caixas, cartões, vómito guardado em plásticos, o tempo que leva à mudança dessas despaisagens.







sexta-feira, outubro 13, 2006

A ORDEM NATURAL DAS COISAS

foto Rocha de Sousa

num país do desassessego


A ordem natural das coisas é não haver nenhuma ordem natural das coisas. Lembram-se do Noivo, um homem de meia ideia, vestido de smoking, pasta na mão, cabelos sedosamente puxados atrás, como nos velhos tempos da brilhantina - esse excluido que vogava pelos cafés de forma altiva e inabalável? Assim ficara desnatural, com efeito, pelo facto de ter sido abandonado pela noiva em pleno altar. A súbita vontade alheia, contraditória de mil promessas entretanto feitas, implodira a própria cerimónia do casamento e o Noivo perdera-se dele mesmo. Hoje, olhando para o mundo em redor, a verdade é que nos tornámos todos noivos, sem smoking. Convertidos ao desleixo global, luxo aristocrático invertido, homens e mulheres usam calças de ganga das mais diversas maneiras. A rapaziada, entre os jovens semi-universitários e os parlamentares de gabarito, usa barba crescida, aparada uns milímetros acima da pele por uma nova invenção no meio industrial das máquinas de barbear. Mas não se pode assegurar em rigor que tais máquinas tivessem nascido depois das barbas haverem crescido mal aparadas. Pela ordem natural das coisas, primeiro teria crescido a barba, depois a tecnologia para o tratamento da sua qualidade. Nos cafés, no intervalo da discussão sobre futebol, alguém, mais afoito e porventura mais culto, assegura que a máquina apareceu primeiro, que acontece em muitos outros casos, propondo aquele bizarro tratamento da barba. A propósito dos cafés, cada vez mais raros, improisados e de menor gosto, há neles uma persistência curiosa, mais antiga do que as calças de ganga: o hábito de quase toda a gente tomar ali o seu pequeno almoço, café com leite e pão com manteiga, enquanto alguns outros só consomem um copo de vinho, uma dose ou duas de três. Nas tascas também ressoam os telemóveis, há telemóveis por toda a parte, e muitos e muitos jovens passeando com os aparelhos colados às orelhas, passando para as namoradas palavras obscenas. O mundo, aliás, ficou cheio de telemóveis, de primeira, segunda e terceira gerações. Os pais fotografam os filhos quando os levam para a Escola, braços levantados, câmara de telemóvel eficiente e silenciosa - Deus olhando do alto o funcionamento do Seu quotidiano. Apesar de tudo, o país está empobrecido, garantem os economistas e os políticos. Mas as terras estão atulhadas de cidades a perder de vista, paisagens de betão onde abundam o lixo e os consumos, uma pressa de convocar o futuro. E isso caracteriza bem, paradoxalmente, os cidadãos que ainda não chegaram a uma mais profunda consciência do tempo, ou seja, da morte. Náo é por acaso que amentou o número de vagabundos e os sem-abrigo, todos os que, mesmo na enxovia das camas de cartão, deliram com os principais clubes de futebol, desdobrando longos discursos que invadem territórios alheios - até lugares electrónicos como este - para criticarem arbitragens, faltas mal aplicadas, lesões de jogadores, políticas da Federação, da Liga, da Fifa, uma corrupção que deslisa no intervalo dos jogos e nos bares do norte. Exclamam por vezes, num caso de contusão mais grave, que não há Serviço Nacional de Saúde capaz, que os Centros não têm funcionários nem aparelhos, que as urgências migram para o litoral e para as grandes cidades, que as maternidades foram fechando, sobretudo no interior abandonado, ficando assim os doentes e as grávidas a dezenas de quilómetros dos sítios próprios das suas necessidades, o que fez duplicar, só num ano, o número de óbitos e partos nas ambulânvias do INEM e dos Bombeiros. Ao lado dos incêndios, bom negócio de sobras e novos pobres. A par dos lixos atirados um pouco por toda a parte. Ou dos produtos venenosos que fábricas e suiniculturas despejam nos rios e lagos do jardim à beira mar plantado. Nas praias também, calor a prumo, milhares de pessoas encalhando na areia, a lembrar terrivelmente os campos de refugiados de que África está repleta, entre guerras e ditadores cegos. Afinal, somos pobres ou ricos? Talvez remediados, como no tempo rural de Salazar. Havia crianças com a bandeira da Mocidade Portuguesa e cantando o Hino Nacional. Hoje as crianças são geniais, embora banqueteando-se com tecnologia alienante (jogos apocalípticos) e sandes americanas - produto que nos vai colonizando e tornando obesos. Ah, o nosso rico caldo-verde, com uma rodela de linguiça a meio. Os mais pequenos são transportados nas manhãs de folga em carrinhos tipo new look, enquanto os pais ainda vigiam os fotógrafos das redondezas, por causa da pedofilia e do eterno processo da Casa Pia. Há muitos arguidos em Portugal, gente de acasos e da candonga, ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres. Porque os pobres desempregados preferem vender umas gramas de droga a juntar-se à tarefa camarária do lixo, um lixo urbano sempre acumulado, publicidade rasgada com ele, ou nas paredes, em sucessivas gerações desde o 25 de Abril. Nessas noites de bruma, para além das escassas árvores da cidade, há gatunos roubando carros ou assaltando apartamentos, na melhor das imitações das escolas estrangeiras, Nova Iorque e Chicago, por exemplo. A GNR e a PSP são polícias que costumam passear de carro desportivo, linhas azuis e verdes, mas os agentes pedestres, quando se encontram com um bandido, têm de fazer contas para saber se estão em situação de legítima defesa ou não. Antes disso já comeram com um balázio na barriga e as suas velhas armas, encravadas, nem puderam responder. Cada tiro de um polícia é um polícia em tribunal. Mais arguidos, cadeias onde a sobremesa ao almoço pode conter pequenas doses de cocaína, e depois a sida, a tuberculose, coisas assim. Os filhos dos filhos de alguns dos presos mais velhos pagam taxas moderadoras, agora de utilização, são metidos em Casas de integração, dormem lá uns tempos, cortando cartolinas, e depois fogem pelo muro descarnado e ficam adstritos a uma zona de vagabundos, a trabalharem bem a solidariedade dos grupos que andam durante a noite distribuindo mantas e sopinhas quentes. O pior é a televisão, não há sítios para ver os jogos, excepto algumas tabernas, e o futebol, além do eixo do mal, é a sua mística, o país chega a parar, a assembleia nacional faz pausas apropriadas. As rixas repetem-se todas as noites. Os médicos de família não passam de uma ficção. Se não há futebol na televisão, há porrada e notícias com crimes hediondos, já de marca portuguesa, e publicidade a espectáculos que enchem estádios ou novelas cheias de armadilhas onde os bons actores portugueses perdem o seu tempo e a sua dignidade. A balbúrdia dentro e em volta de Lisboa cresce de minuto para minuto, as pessoas mais velhas ficam perplexas, e aqui há dias um velho de setenta anos perdeu-se lá para as bandas do eixo Norte-Sul, Cril, Crel, andou em contramão por estradas sem sinais, ou com poucos sinais, errados, mal escalonados, o que de resto acontece por todo o país e é causa importante dessas tragédias do asfalto, diagnosticadas sempre pela polícia como devidas ao alcool e à velocidade excessiva. O velho deixou o carro num recanto inócuo e voltou de táxi, no outro dia, para o recuperar. Mas o carro tinha desaparecido e o pobre homem nunca mais o viu, perdendo assim o negócio de batatas que transportava de um produtor dos arredores para a zona das Olaias. Nesse dia, quando chegou a casa, lá estavam os papéis do IRS, um pedido por conta, uma esmola solicitada pelas Finanças. Ainda pensou em falar com o filho, mas o desgraçado acabara a licenciatura e estava desempregado há mais de um ano. As Universidades haviam perdido o tino, julgavam-se produtoras de elites cordenadoras, afastando-se do mundo real e procurando assegurar-se de que os Politécnicos iriam produzir tecnólogos, num país a abarrotar de engenheiros, nas empresas, nas estradas, e sobretudo nos Governos. Como os professores dos primeiros níveis do ensino eram nómadas, andavam a ensi-nar um ano na Lousã e no ano seguinte a leccionar em Ourique, o insucesso escolar talvez comece logo por aí. Que não, diz o Ministério. A estratégia da rede escolar tem de ser vista, programas, livros, autonomia das instituições, mesmo aquelas que restaram perdidas no mato. Perdidas na memória daquela paz e daquela medida que faziam das brincadeiras, no recreio, uma verdade calorosa.

Nesta ordem natural das coisas, que não é ordem nem natural, os velhos atrasam-se no caminho para a morte, atrapalhando a Segurança Social. E os meninos, nascendo cada vez menos em nome da cidadania da mulher e de uma escassa procriação, com raízes genéticas mirradas pela economia, vão crescer sem afectos, mordendo o isco dos matulões e dos cigarros. Os velhos esperam sentados nos bancos das ruas brancas do Alentejo ou nos escassos jardins onde ainda podem jogar às cartas. Alguns pensam: a morte nunca mais chega. E outros dizem aos seus botões comprados há muitos anos na retrosaria do Sequeira: deixam atrasar tudo e não há listas que cheguem para tantos atrasos. Sousa Carneiro escreve: desfizeram-se os pomares, abriram cotas estreitas na agricultura, largaram o mar salgado e afundaram as traineiras, perderam a guerra em África e as pistolas que restaram oferceram à PSP; queimam as florestas e toleram os negócios obscuros, falam em mobilidade como se tivéssemos que voltar ao paleolítico e regredir em caminhadas imensas, enquanto o trabalho falta e se apregoa com pompa que nunca haverá mais empregos estáveis, tudo rodará em volta de tudo. Os psiquiatras não, esses não rodam, nunca mais voltarão a ser nómadas: os andarilhos da indústria ou do ensino, e quem sabe, um dia, se da saúde, esses sim, globalizaram-se e frequentam psiquiatras por causa das bipolaridades incandescentes, da nostalgia, e da falta de apoio aos mortos na estrada.

Mas Almada Negreiros disse um dia, e com razão, por três vezes seguidas, entre minutos, sobre a urna de uma celebridade: Há pontos finais.

quarta-feira, outubro 11, 2006

TODAS AS LISTAS DO ATRASO




Devemos aliviar faltas e atrasos por amor à Pátria



Assim: muitas aldeias do norte, perto umas das outras, perderam as escolas, todas as escolas, e os meninos andam agora a pé ou de camioneta, entre os medos da estrada e da chuva, para acederem a uma escola grande, da sede do Concelho, onde as salas têm de ser divididas com armários para albergarem, abarrotadas, duas turmas. Os professores vão permanecer ali durante três anos: alunos e professores perderão os afectos desse tempo para se adaptarem a outras situações.
Sousa Carneiro explica no seu livro «Todas as Listas do Atraso» que o desenho e tais destinos têm contribuído largamente para o insucsso Escolar.
A escassez dos meios não favorece a Pátria


O Ensino Universitário, preso a velhas concepções de currículo e de projecto social em termos de carreira, imaginou-se guardião do espírito relativo ao conhecimento próprio do vértice representativo da arrumação comunitária. A verdade é que nenhum vértice, entre as pirâmides tumulares e outras construções similares, se justifica como mais importante do que a largueza e função da base. Só há poucos anos as tecnologias ganharam espaço, embora a investigação científica tenha ficado abandonada na minimização dos meios e isto apesar da capacidade inventiva que o país tem demonstrado a vários níveis. Toda a gente perseguiu durante anos o sonho de um «dr.», passaporte para o emprego, e a própria alternativa do Politécnico depressa demonstrou que os seus intérpretes não queriam trabalho de mãos e títulos de diplomados; queriam licenciaturas e doutoramentos, e lá foram, entre amigos e governos, conseguindo frutificar a sua ideia. Para alcançar professores do primário e do secundário, após licenciaturas e mestrados, os mestres do Ministério inventaram umas escolinhas com três anos de generalidades quanto às matérias curriculares, seguidos de um ano onde os alunos desenhavam como no mais básico dos velhos cursos de Belas Artes. Pois meus amigos: estes senhores, envolvidos por um celofane de ciências da Educação, passavam por docentes naqueles ciclos - e à frente de licenciados em artes plásticas ou design, com cinco anos de aprendizagens, que eram abandonados à sua sorte ou truques, num mar pantanoso de candidatos ao nomadismo docente, ano a ano, de aldeia em aldeia. O interior precisa disso mas claramente de outra maneira.
veremos depois desenvolvimentos a partir destas duas ideias

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mas entretanto é preciso adquirir: escolas, estradas rurais, centros de acolhimento, residências para estudantes, equipamento escolar básico, iluminação e aquecimento, rede informática entre universidades e centros de pesquisa, além de laboratórios e linhas de vídeo conferência entre nós e o estran- geiro, estruturas e suportes arquitecturais para a pesquisa artística e sua aplicação ao espaço urbano, exterior e interior. As autarquias têm de ser mobilizadas para estes critérios de relação, transformando a cultura numa relação profunda com o meio, não em festividades caloiras ou cortejos de carnaval.
As grandes cidades, com milhões e milhões de habitantes, são um cime contra a humanidade. Atraem populações carenciadas e mutantes do mimetisno, gente vinda do interior, o qual se deserifica e deforma o ordenamente territorial. As administrações e a descentralização de meios de formação e criativos devem proliferar para o lado profundo do país e ajudar a pacificar a orla marítima, carregada de esquizofrénicos e gastadores de chocolates

domingo, outubro 08, 2006

A CONSOLIDAÇÃO DO MAU GOSTO

parte de uma fotografia deRodrigo da Silva
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Sob a presença imperativa da imagem nos nossos dias, entre a publicidade, a televisão e todos os outros géneros de sedução por essa via, rendemos as maiores homenagens à captação mecânica e manual do visível, coisas do nosso apreço, os enquadramentos do mundo. Mas uma imagem não vale mais do que mil palavras, a menos que precisemos de mil palavras para a dizer. É através da palavra, com efeito, que pensamos a imagem. E é na base dos nossos patamares de cultura que acedemos mais ou menos à imagem, reduzindo-a a alguns nomes e adjectivos ou apurando o sentido do que descobrimos nela, invariavelmente por palavras (inerentes a conceitos). A televisão ocupa neste campo um imenso território carregado de lixos, informações, variedades de gosto e rapidez, atando cada um de nós ao vício de sentir visualmente variações inúteis ou de nos julgarmos mais dentro do mundo na vertigem do excesso e das falsas necessidades.
Estes computadores abandonados servem uma breve nota de Nuno Galopim (revista do Diário de Notícias, dia 12), a qual, por sua vez cita a seguinte frase de Isaac Asimov: Não receio computadores. Receio ficar sem eles. E o que receamos na indizível amplitude da televisão, um pouco da mesma maneira, não é a sua utilidade informativa e formativa: é perdê-la cada vez mais a cada dia que passa. Porque, em geral, a fabulosa descoberta da televisão converte-se aos interesses que a compram, não ganha autonomia para trabalhar de forma livre e responsável - inclusive em termos científicos, pela psicologia, sociologia, antropologia. No fundo, a televisão perdeu-se quase à partida, sobrando o que os grupos económicos julgam poder meter nela, sem a respeitar, sem nos respeitar, porque lhes importa que os ecrãs debitem um fluxo aliciante, contínuo e redundante de informações. Programas e publicidade justapõem-se, repetem dados, prolongam a mesma sensacional notícia durante dias.
É falso que os programas oferecidos pela televisão sejam o reflexo do gosto do público. A quantidade de soluções formais em estereótipo, patetas, gritantes, além da própria mediania do cinema, entre sexo, excessos, violências várias, horas e horas de futebol, restos da miséria popuplar, tudo isso, e só isso, pode configurar um dia de televisão, com os melhores programas (raros) a passarem às três da manhã. E é mentira que todos os cidadãos, apesar das perversões que os seduz, prefira viver noticiários e formatos programáticos exclusivamente naquele sentido. É certamente falso, também, que esse público não seja nada suceptível de reajustar hábitos, de se comover com uma novela de grande qualidade humana e existencial. Basta fazer a experiência com dois grupos de participantes, o primeiro exposto à televisão que emitimos todos os dias, o segundo confrontado com obras de valor plástico, estético, surpreendente, entre conteúdos diversos: a reportagem de fundo, que concentra a emoção, o cinema que envolve sequências de beleza, de força, de questionamento sobre a condição humana. Imagino que o resultado estatístico desta experiência premiasse sobretudo o segundo alinhamento.
Lembram-se do Villaret? Do Vitorino Nemésio? Ignoram sempre, na sua simplicidade física, as crónicas de Hermano Saraiva? Enfadam-se com a vivacidade e profundidade do programa «Prós e Contras»? Os estudiosos dos fenómenos da comunicação de massas defendem que a curiosidade pela exposição da tragédia, ou por temas repetitivos e sem valor de fecundidade, embora existam em abundância dada a violência dos nossos contextos, não abandonariam por isso, antes pelo contrário, os cenários de um maior e mais inventivo cuidado na programação televisiva, o seu comprazimento visual em termos abrangentes, variados e consistentes culturalmente. Abordagens ficcionais acima da média, na produção portuguesa, como «Olhos de Água» ou «Nunca digas Adeus» funcionaram em bons termos de audiência - e hoje, a despeito das «bruxas» Laurindas, o espaço nacional mostra-se a ganhar mais valias neste campo e ficou provado que a língua portuguesa, bem trabalhada, não deixa saudades salivares do inglês ou da brutal ressonância que nos chegam pela boca de muitos heróis americanos.
Estamos apenas aflorando o problema a meio da escala possível de valores. Nada do outro mundo. Mas daí para a frente, de forma complementar, crescerão gostos mais avisados, maiores interesses culturais, e talvez um esforço, da parte dos nossos directores de programas, para saírem da camisa de forças em que se deixam amarrar, por vezes com algum prazer, pela voracidade dos anunciantes e jornalistas cúmplices.
Vejam só: para que serve uma televisão que, entre dois programas medíocres, nos obriga a esperar pelo seguinte numa longa colagem de anúncios? Posso garantir-vos que já vi um programa inteiro de outro canal no intervalo da publicidade daquele onde estava inicialmente sincronizado. E falam os comerciantes da imagem mergulhada em poucas palavras, julgando poder assim encher o tempo e o gosto alheios, no cumprimento das regras da livre concorrência. Julgam que ocultar uma obra de Tarkosky às duas da manhã, ainda por cima rasgada por proibitivos blocos de publicidade, lhes alivia a consciência e lhes permite a maior das devassas, a vertente de todas as inutilidades, no chamado prime time, onde nem sequer se cultivam pequenos inserts aliciantes sobre a vida e a invenção do futuro.
Não tenho medo da imagem: tenho medo de perder o sentido dela.

quarta-feira, outubro 04, 2006

O GOSTO DO PÚBLICO É QUEM MAIS ORDENA

Se responder correctamente à pergunta seguinte poderá receber um prémio no valor de 200 euros. Que pergunta? Se estiver em Lisboa deve nomear o monumento onde se encontra a pedra mais degradada a partir de 1325. É impossível? Nenhum prémio é fácil, mas qualquer prémio, por lei, tem de estar dentro dos limites considerados possíveis, à luz da ciência actual. Não queria naturalmente que lhe perguntássemos os nomes dos jogadores do Benfica, ou do Sporting, ou do Porto. Porquê? Porque os sabe todos. Pode, em todo o caso, optar pela música, citando a obra completa de Beethoven, ou enviando-nos os títulos por e-mail até às 19 horas de hoje. O quê? Faltam vinte minutos? E então, queria que lhe pedíssemos para nos dizer o nome de um intérprete da música pimba portuguesa? Claro, é isso mesmo, precisava apenas de dois minutos para escolher e para enviar nome. Era excessivo facilitismo. E as bandas? As Bandas de todos os cantos do mundo? Incluiria essa informação mo capítulo da música? E sabe o nome das bandas de grande espectáculo do mundo inteiro? Mais ou menos não é resposta. E Portugal? Em Portugal conhece todas - isso sim, é obra. Ah, pois, mas tinha de dispor de mais tempo para as escrever sem falhas. Então nada feito. Nada. Nada mesmo. Em todo o caso, um pouco à margem, vamos dar-lhe a oportunidade de concorrer no domínio da literatura. Como? Não costuma ler muito? Mesmo assim, a pergunta é fácil: terá apenas de nos dizer quem é que escreveu «Amnésia», de 1962, e o nome do prémo Nobel desse ano nessa modalidade. Não se lembra? É uma situação comum entre nós, lá isso é verdade. Mas sabe quem meteu o golo do Benfica no início da temporada e qual o presidente desse mesmo clube. Claro? Acha que sim? Olhe que há muita gente que seria incapaz de tamanha proeza, embora conhecendo, noutro capítulo, um desportista português que se chama Carlos Lopes, por exemplo. Já não é praticante de desporto? Está gordo? E a Teresa Mota, diz-lhe alguma coisa? Calculava que lhe dissesse. O quê? Está velha e magra, dedica-se à caridade, já não pode competir. Nem a história lhe vale, coitada. Vejo como a sua cultura borbulha um pouco nesta área. Mudando de assunto, saberá então quantos anos tem José Saramago e quem escreveu «Alegria Breve», ou se Agustina Bessa Luis conhece Manuel de Oliveira, se a Maria João Pires toca clarinete, ou também se Columbano foi companheiro de Júlio Pomar e quem é José Quaresma, e ainda a quem pertencia, depois da conquista do Algarve aos Mouros, a praça de Alvor? E o primeiro rei de Portugal, lembra-se do nome? Muito bem, acertou. O Conde Andeiro, sin senhor. João Fernandes Andeiro, de seu nome completo. O senhor tinha o nome na ponta da língua, mesmo na ponta. E olhe: embora a título excepcional, visto que o nosso plano não era este, decidimos que tem direito de levantar junto do Marquês de Pombal uma varinha mágica, de boa marca, se se apresentar à nossa representação dentro de dois minutos e desde que seja possuidor do cartão de sócio, com as quotas em dia, do Silves Futebol Clube. Sabendo o nome completo do Marquês de Pombal, obviamente.

domingo, outubro 01, 2006

A DOLOROSA PERPLEXIDADE DA GATA

prólogo

Estamos em Outubro, escrevo no seu primeiro dia, e queria apenas agradecer a todos os que me leram ou visitaram, embora lamente que os contactos ou possíveis conversas não resultem de uma mais aturada leitura uns dos outros, independentemente da cultura redutora dos nossos dias de pressa e acumulações indizíveis. Grato por tudo, em todo o caso.
Queria contar-lhes o seguinte, ainda a propósito da morte de meu irmão, fatalidade pela qual recebi o vosso apoio.
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Pouco depois de meu irmão se ter sentado ao computador, com o qual teqrminava um grande projecto de um grande e humanitário hospital, sucumbiu de forma fulminante, sem connsciência da queda que logo aconteceu. Em casa, uma empregada leal, feita gente de família, que tratava o meu irmão por pai, ouviu o estrondo e correu para o escritório: o pai estava deitado no chão, morto, com uma ferida na cabeça por ter colidido num vaso de flores. Ela abraçou-se a ele, chamou por ele, gritou para fora, telefonou para tudo quanto era eventual sítio de auxílio. Pouco depois, entre outros, dois médicos amigos confirmaram o óbito, ajudaram a arranjar as coisas, na ideia dos procedimentos necessários. O escritório ficou abandonado, silencioso, lavado de alguns fios de sangue escorridos da cabeça.
Daí a pouco, contudo, quando a turbulência dos humanos se diluíu e terminou em toda a casa, alguém podeia ter visto, como aliás aconteceu por acaso, a gata que vivia ali e ali acompanhava o meu irmão, num afecto interminável. A gata deitara-se, numa espécie de dor perplexa, à espera do impossível, no lugar onde o corpo estivera tombado. O nosso sentido imperfeito de transcendência fica por aqui, sem palavras.