segunda-feira, dezembro 11, 2006

PROJECTO K



O Cidadão, chamado ao Palácio, como o agrimensor do Castelo, em Kafka, era consultor do Projecto K. Mas, quando chegou ao Palácio, ninguém lhe respondeu, apesar da sua longa insistência. Usou as campainhas e o forte batente do portão mas, com efeito, não obteve resultados. Resolveu então descer o caminho até a aldeia, no sopé do monte, e foi sentar-se num café que por lá havia. Bebeu leite fresco, esperou o tempo que a paciência lhe consentiu e acabou por fazer uma primeira chamada para o número de telefone que lhe haviam confiado quando da solicitação dos seus serviços. Ao cabo de um ou dois minutos de espera sob a monótona repetição da campainha, retinindo renitente na distância, ninguém veio atender-lhe a chamada. Ficou surpreendido. Fumou um cigarro e esperou um pouco mais. Quando accionou o telefone pela segunda vez, pareceu-lhe que o toque era mais forte, e dispôs-se a falar. A campainha retinia de cinco em cinco segundos, obviamente remitente, e o tempo parecia uma toalha de àgua espalhando-se pelo chão do café, obrigando os freguese a sairem dos lugares, alcançando uma especie de palco onde havia igualmente mesas e um móvel antigo cheio de loiças. O cidadão esperava, desesperava, aterrado com o destino de quem o chamara e lhe dissera da urgência em tratar novos problemas do Projecto K. Pensava, ao fim de três horas de telefonemas, que vivia num Estado de Direito, beneficiando da liberdade própria do regime democrático, e isso conferia-lhe o poder, nestas circunstâncias, de retirar-se. Contudo, procurando achar um pouco de calma, voltou ao Palácio, premiu as campainhas com força e usou o batente do portão com grande veemência. Mesmo assim, nada obteve através dessa mudança no uso dos meios. Olhou para as câmaras de vigilância, imóveis, mas claramente apontadas ao lugar em que se encontrava. Pareciam mortas, as lentes estavam cheias de pó. Ancioso, o cidadão decidiu rever os dados que apontara, retirando da algibeira do casaco um pequeno maço de papéis, nos quais, logo na primeira folha, podia ver as notas que tomara durante a chamada do Palácio - o lugar, o dia e a hora, problemas ligados ao Projecto K. Em boa verdade, ele ignorava em que consistia tal projecto, quais seriam os seus objectivos finais, após anos e anos de trabalho sectorial, em construções principalmente de metal e betão, algo que se parecia, sob o papel e nas maquetas com as antigas refinarias do século XX. O seu trabalho, circunscrito a uma determina área de terras expropriadas, estava no entanto aparentemente ligada à energia de fusão, trabalho secreto, fraccionado para despistar os intuitos mais legíveis. Tudo começara nas fundas caves do Palácio, obra que parecia revestida por sucessivas reconstruções, evocando estranhamente a Idade Média. Paradoxalmente, o primeiro piso surgia bastante iluminado, paredes lisas, paredes brancas, espaço que contornava um grande suporte central de trabalho. Esse "cenário" ocupava pouca gente, apesar da sua amplitude, embora parte dos circunstantes fossem altas patentes militares, tratados com deferência, a par de professores, ciêntistas e muitos técnicos informáticos. Essa gente não primava por grande actividade, aparecia e desaparecia tomando notas, acrescentado aqui e além simulações nos módulos de trabalho e nos computadores portáteis espalhados pela mesa. O cidadão convocado era especializado em fisica das particulas, trabalhara em estudos de fusão atómica, mas ali pediam-lhe sobretudo que operasse cálculos do efeito de certas forças em modelos naturais minuciosamente elaborados à escala.

Naquele dia, suscitado cada vez mais pela importância de tudo o que podia abarcar relativamente ao trabalhos ali em curso, o cidadão decidiu permanecer mais tempo na zona e foi hospedar-se num pequeno hotel da aldeia, espécie de residêncial do século XX. Aí tomou um banho quente, procurando aliviar o corpo e o espírito, acedendo entretanto aos jornais do dia, aos noticiários da televisão, e dispondo-se finalmente a dormir na comodidade desta insólita solidão. Não deixou de telefonar, por vezes e de novo, para o Palácio. Não obtendo nenhum sinal desse lugar, resolveu dormir e esperar tranquilamente pela manhã. Mas não dormiu de forma satisfatória. Estava perplexo. Afinal desejava com impaciência que a luz do dia surgisse. Já estava sentado na cama quando o telefone, colocado sobre a mesa de cabeceira, tocou. O cidadão levantou rapidamente o auscultador e ouviu o recepcionista a anunciar-lhe uma chamada. Depois, do outro lado da linha, a voz de um homem solicitava-lhe que confirmasse com quem falava e disse depois, apenas:

"Diga-me o seu código, por favor".

"Não sei a que código se refere".

"O código de enquadramento no Projecto K".

O cidadão ficou supreendido.

"Mas eu não tenho esse código".

"Não tem? Que quer dizer com isso?"

"Que não tenho nenhum cartão de código respeitante ao Projecto K".

"Mas é a primeira vez que vem trabalhar no Projecto?"

"Não. Trabalho desde da primeira comissão."

Silêncio do outro lado da linha.

Alguém parecia ter tocado na porta. Só então ele acordou de uma noite agitada. Olhou em volta, com a graganta seca. Estava no quarto da sua casa e a mulher (o seu anjo da guarda, como ele a nomeava por vezes) trazia um tabuleiro com frutas e sumos, hábito que mantinha aos fins de semana, desde de sempre.

Rocha de Sousa






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