sábado, fevereiro 12, 2011

A VONTADE POPULAR QUE DESTRONOU O FARAÓ

Aspecto geral (nocturno) da praça Central do Cairo, Egipto, no auge do delírio libertário, noite de 11 de Fevereiro de 2010, quando o Presidente Mubarak acabou por ceder às pressões nacionais e internacionais e abandonou o poder, delegando no Exército a coordenação das operações de transição. Este homem que governou o Egipto durante 30 anos, e sucumbira às obscuridades dos manipuladores do poder, manteve-se agarrado à lógica anterior num discurso em que apelava à unidade. Por sua parte, depois de duas semanas de resistência, Mubarak afirmou não ter intenções de se candidatar a novo mandato, em Setembro, devendo o país reorganizar-se a partir daí. A expectativa colossal em que se mantinha a multidão, silenciosa, de olhos ao alto, explodiu ao sentir-se traída desta maneira. O que terá acontecido entre os restantes membbros activos da presidência, logo a seguir à emissão do discurso, só um dia se saberá. É que, pouco tempo depois de haver reiterado o seu cargo, Mubarak optou por se demitir. A notícia fez explodir a alegria dos egípcios ali concentrados. A liberdade passa por aqui! - - dizia-se. Graças a
Deus! O Egipto é um país livre!
O grito da liberdade


A voz do povo transcende as habituais esperas e negociações entre grupos em conflito. Há os que temem a dificuldade de fazer esta transição de forma sustentada e profícua. Sabe-se, todavia, algumas coisas importantes. Há dados de naturesa assinalável: muitas das pessoas que se manifestaram eram nacionalistas de boa educação, indivíduos que vivem em cidades e que querem ter oportunidade de construir uma democracia que lhes permita viver melhor. Não nos podemos dissociar dos factos históricos desde a fundação do Egipto moderno, a falta de tradição democrática, a fragilidade das instituições, embora o Exército possa, dada a sua força e o apoio do povo e de potências aliadas, criar as estruturas constitucionais para a formação de um país cujos meios podem alargar-se e comsolidar-se acima do mais.


Uma frase «lapidar» de Mubarak quando falou ao país,
sustentando a sua continuidade no poder até setembro.

Dentro e fora do país, em nações como a Rússia, as multidões criaram fenómenos de contaminação considerável. Os gritos e os sinais da nova situação, apoiada pelos militares, permite ter como fiáveis uma transformação bem sustentada do Egipto

Um curioso acto de fé

O poder está agora nas mãos do Conselho Supremo das Forças Armadas. A revolução não poupou o número dois do regime, Omar Suleimam, que a maioria dos manifestantes da praça Thair dizia ser a extensão de Mubarak Depois de tudo o que de trágico e de eufórico aconteunaquele lugar (Thair) nas últimas semanas, havia que dar o salto e tentar uma manobra mais arrojada: uma marcha até ao próprio palácio presidencial

a dada altura, surgiu a notícia de que Mubarak
estava em fuga. Apesar das dúvidas imediatas, os sinais penderam para uma verdade há muito esperada, numa luta sem armas. Afinal foi a festa

ANIVERSÁRIO E HISTÓRIAS DE PAULA REGO

Paula Rego
Dia de aniversário para Paula Rego, uma das mais importantes artistas portuguesas e europeias, e dia de júbilo para quem aprecia a sua obra, desde os anos 60, ou para quem, de alguma forma, se reconhce nela. Trabalhava eu no Suplemento Literário do «Diário de Lisboa» e para séries sobre arte da RTP1, tive o privilégio de ser uma das primeiras pessoas a entrevistar a pintora, na altura em que se documentava a sua primeira exposição individual em Lisboa, Galeria de Arte Moderna da S.N.B.
Durante algum tempo, a equipa de reportagem filmou a pintora Paula Rego, ainda jovem, a colar e a pintar estranhas formas sobre um suporte horizontal apoiado no chão. O que sobrou da edição desse trabalho, teria bastado para um poema audio-visual projectável integradamente em rubricas culturais. Foi lamentável, contudo, a imagem a preto e branco, porque aconteceu numa altura em que a cor ainda não tinha chegado à RTP.
fragmento de uma peça de Paula Rego

fragmento de um mural a tinta de água de Paula Rego


Quando se fez uma pausa técnica durante as filmagens atrás referidas, aproveitou-se o tempo para a entrevista que haviamos combinado com a artista, eu e ela sentados perto de uma janela. Só nesse instante, perto um do outro, é que me apercebi da invulgar beleza daquele rosto, da sua modelação suave, da busca das palavras, entre gestos vagos, palavras que pareciam ter pouco a ver umas com as outras. Já faziam lembrar as histórias que Paula Rego veio a desenvolver mais tarde, desde um clima surreal e onírico até a uma espécie de realismo expressionista, passando pelos desenhos de grande escala, em pinceladas livres, que podemos observar no segundo fragmento de uma das suas mais decisivas histórias, nesta técnica, que se desenrolavam como desenhos para crianças, percorríveis ao longo da sua alegria, ruído e musicalidade. (2ª imagem).
Quando perguntei a Paula se a sua pintura atendia ao real, nos seus instantes e nos seus protagonistas,
ela pareceu meditar muito, com os olhos parados.
Mas de súbito, disse, com a voz na garganta:
Sim, clado que sim. (pausa) Mas porque pergunta?
Vejo-a como se estivesse alheia a esse problema, recortando papéis e colando, recortando e pintado.
(El a riu-se brevemente):
Eu não sei o que é a pintura e o que é o real. Mas tenho uma ideia. Não pinto porque exista o real e porque ache que ele tem de ser atendido. Ou talvez melhor: entendido. (pausa, tinha um dedo na boca e recomeçara a pensar): Olhe, eu sei que o real é importante para certos artistas. Eu gosto mais de reflectir sobre a realidade da pintura. É um jogo, sabe, e por vezes regista coisas da nossa vida. Faço-a com a colaboração dos meus filhos, dos seus rabiscos, das suas pinceladas, formas a que eles chamam nomes de bichos. (Apontando ao quadro, no chão) Veja, estão ali, são papéis, bocados dos riscos deles, um cão com o rabo de fora, flores, e o meu arranjo por dentro e por fora. Ao contar estas histórias, talvez absurdas, sinto-me de novo menina. Menina sujando tudo em volta.
Os seus quadros, os que vimos na SNBA, são por vezes gritos do tempo passado, episódios da história do país. Ou não?
(Ela olhou-me, num frio segundo, e disse:)
Mas quando pintei esses quadros, além da saudade, havia perdido pelo menos uma pessoa importante. A morte pode não provocar dor mas imobiliza-nos a pensar. Seja como for, eu estava estudando histórias da História, «O Regicídio», por exemplo. Não é só o rei que morre, é uma parte do nosso país que se perde.
Acha?
Sim, porque não? Um amigo meu disse que esse quadro, bem como outros desse género, lembram menos o meu olhar e mais as minhas mãos. Ele gosta das cartolinas cortadas. Ou de mim. Mas as histórias da História, embora sejam também engraçadas, devem ter... ter mais permanência.
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Este excerto, reelaborado da gravação para a TV, dá-nos
um discurso muito mais estranho do que esta parte mais
«líquida». Paula, para o fim do nosso «tempo», lembrava
certas falas do teatro de Becket. Hoje continua bem aten-
ta, ainda muito activa, desvendando nas histórias de que
não se lembra cenas e sequências que nem a represen-
tação pode sustentar.