quinta-feira, agosto 31, 2006

ESBOÇO DE UMA AGONIA


O calor em volta, passos breves na areia, a lua vai nascer. Há um planeta além que serve de bússola aos pescadores. Daqui a pouco, o mar à direita, começam a aparecer vultos na sombra, trabalhadores da candeia, e com eles vem a ilusão de que se acentua o batimento repetitivo das ondas baixas na orla do mundo. Hoje, com a temperatura morna da noite, vou dormir além, junto das rochas, atrás de uma pequena duna salpicada de juncos.
Aqui estou, acabando de comer uma sardinha seca e um bocado de pão duro. Olho de longe a brutal grandeza dos edifícios, ainda a jorrar luz ao longo da curvatura da baía, outrora uma larga praia de areia branca. Quando o terreno se torna vermelho, em formas tubulares que se desmoronam constantemente, o negro toma conta do espaço, encosta deslizante, aqui e além lances de pinheiros bravos.
Ao voltar a estas paragens do chamado mundo global, vagabundo sem abrigo como sempre, espreitando primeiro a cidade atravessada por multidões e mercados que transbordavam para a rua, a lembrar um velho filme de culto, Blade Runner, decidi conceder-me esta deriva de despedida, sentir na pele o alerta, dar descanso à minha solidão de protoplasma, no limite. O medo que alimentava em torno de muitas coisas, e que me retinha em casa a espreitar o mundo pelo buraco imperfeito da televisão, não era o de há pouco, estava implantado em mim desde criança - e assim mesmo, segundo as regras, tive que realizar o meu percurso humano, entre letras e artes, restos das escolhas ainda possíveis, partilhando as coisas e os lugares com escassos amigos, deixando em escrita manual páginas e páginas de uma propriedade trágica, sobre a qual, agora, nem eu mesmo seria capaz de discutir.
A expansão capitalista das necessidades, em efeitos de sedução que o estado redutor do pensamento ideológico permitia, ultrapassava todo o conjunto das necessidades normais de consumo, agravando de forma radical o alastramento das dependências, das novas epidemias, da fome propriamente dita e da fome patética do sexo, com recursos gravosos no trajecto entre ausências.
De madrugada, ou quando amanhece, vejo, da margem em que ainda posso habitar, imensas filas de carros, lado a lado e a perder-se na lomba longínqua do horizonte. No café de plástico que posso frequentar, a televisão vai mostrando as guerras em curso, no Mediterrâneo, na América do sul, Índia, Ásia, Ilhas da Indonésia - e assim por diante. Cinquenta mil mortos em castástrofes naturais, chuvas diluvianas, terramotos. Oitenta mil mortos nas guerras que decorrem, sobretudo a sul, e linhas sinuosas de colunas humanitárias um pouco por todo o mundo.
Sento-me. Como as sardinhas salgadas. Mijo contra a rocha, a cinco metros do meu habitáculo. Fito, durante muito tempo, a estrela que serve de orientação aos pescadores. Vou dormir, ou tentar dormir, mas acabo por vomitar a comida e por fim uma espécie de espuma branca, algo que me recorda a fronteira do mar, pequenas ondas borbulhantes, um murmúrio, a espera. Sento-me de novo. Penso naquela praia deserta, quando eu era criança e vinha com os meus pais de férias para uma casa alugada a gente do mar. Tenho as pernas em chaga, hoje, inchadas e dormentes - e procuro superar-me fixando a luz circular do farol, esse fogo que avisa os homens embarcados, trabalhando na pesca. Adormeço para acordar mais tarde, afinal já de madrugada, febril e nauseado. A luz do farol está apagada.

quinta-feira, agosto 24, 2006

TUDO ABSURDAMENTE TUDO

AS CICATRIZES SEM ROSTO

UM CÂNTICO PARA AS QUATRO ESTAÇÕES
Aqui estamos de novo. Agosto é uma ficção. O tempo não pode decidir em meu nome o que devo fazer ou quais as escolhas que podem caber-me em manhãs assim. Mas eu posso perceber os sinais dele, do tempo, a favor de quem fui, e contra a definição cronológica das cicatrizes, rasuras imprecisas na vagarosa presença dos muros ou das portas que se fecharam para sempre. Eu sei que estas coisas nunca tiveram um nome verdadeiro, contentam-se com alguns adjectivos. E sei por isso que elas não se olham da janela em movimento, entre as lágrimas produzidas pela brisa. São precisos os passos, a contemplação, o apelo à profundidade do olhar. Passos e paragens decididas, o corpo oferecido à exigência de cada situação, quer na obliquidade que nos permite observar a branca oscilação das paredes empobrecidas, quer nos vestígios de tintas assim. Posso dobrar a coluna para a frente, na aproximação óptica em direcçãao ao objecto, fenda, pedra, um pouco de cal, o cristalino a mover-se para fingir o que fingem as máquinas fotográficas partindo daquela relação orgânica ligada tanto à arquitectura do olho como à sensibilidade do ver.
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Um dia os passos vão acontecer fora do tempo e o olhar terá de perceber o cerco do mundo numa guerra e cheio de lixo. Não bastará a fenda exposta no muro de qualquer fábrica corticeira. Tudo será aburdamente tudo.
O sol queima a pintura antiga das paredes, abrindo pequenas crateras, casca breve e solta, desprendimentos reveladores de outros rostos já sem data, à clara luz do dia. Na esplanada, a manhã ainda fresca, os jornais dizem parcialmente, como é habitual, em página efectivas e titulares...

terça-feira, agosto 22, 2006

TEMPO ENGANADOR DE FLORES E FRUTOS



O sol aparece então queimando vagarosamente os rostos litorais e acentuando a poética das flores. Aparecem assim os jardins suspensos das árvores, o esplendoroso amadurecimento dos frutos. E há uma luz branca que começa a respirar mesmo antes do sol nascer, lembrando a natureza da pintura antiga e o seu encarniçado empenho na representação do real impossível, a morder com ternura os muros de pedra que separam as terras, minifúndios herdados de uma gente longínqua, talvez camponeses enlameados da Idade Média.
Na esplanada, a manhã ainda fresca, os jonais exploram as mitologias do local, manipulando páginas em efectivas e titulares, enquanto os conflitos do Médio Oriente são encobertos temporariamente, nas suas histórias de loucura e barbárie, orientados os objectivos de novo para o Afeganistão, reino inacreditável onde, em nome da civilização, as potências bem armadas acharam por bem escorraçar as gentes de lá, os que mandavam, os talibãs, oa que obrigavam as mulheres a se vestirem da cabeça aos pés, e as imagens eram por sua vez interditas, as estátuas, as pinturas, as fotografias, os livros profanos, o cinema ou o teatro. Os meninos, por outro lado, recolhidos em escolinhas quadradas, em volta de mesas quadradas, aí só aprendiam oralmente o Livro Sabrado, que recitavam liturgicamente horas e horas a fio. A par disso, ouviam as vozes que sangravam o Ocidente, inimigo e senhor de todo o Mal.
Desse lado, com efeito, mal ou bem, as sociedades investem cada vez mais nos grandes espectáculos, trinta mil pessoas sob o choque sonoro de tempestades ensurdecedoras, como aliás no cinema e nos largos espaços do consumo mais frenético do que nunca, apesar de haver gente conservando a memória de uma outra dimensão sagrada e do mítico Extremo Oriente.
A verdade é difícil de iluminar. Os meninos talibãs, depois de rapazes, não confundem tanta informação e consumo como no Ocidente. Se descobrem uma Mullher da Primavera, de pés descalços e rosto destapado, havendo sobre isso indícios de adultério ou coisa muito semelhante, os rapazes quadrados levantam breves autos de acusação.
A Mulher da Primavera é então sumariamente morta à pedrada.

quinta-feira, agosto 17, 2006

A FACE DO TEMPO OUTONAL






foto rocha de sousa
Setembro vive a sua passagem para as contingências da face outonal do tempo. Entre esperanças de recomeços, a fome. Entre olhares para a distância, o sonho. Soltam-se nas cidades reactivadas os jovens da decadência universal e os combates, pelas mais diversas razões, acontececen um pouco poor toda a parte. Os grandes espectáculos do consumo são máquinas de exploração trivial mas engordam comerciantes e gestores de futilidades.
Ali pelo Alentejo, a cheirar a brisas, há um palacete antigo, de latifundiarios emigrados, que se tornou sede do município e foi pintado de um amarlo intenso. Amarelo entretanto esbatido, tocado por manchas vazias, como grandes sobras inertes.
Os velhos, despojados das searas, sentam-se em bancos de pedra, olhando por vezes o cinsento da casca dos sobreiros e ouvindo, longe, bem longe, o ruídos dos carros passando na autoestrada. Os cães, também sem trabalho e gemendo a sua fome e a sua ternura, passam pelos velhos, ficam a olhar para eles, à espera de uma voz, de uma dádiva. Só bem tarde, e antes dos velhos, se arrastam para dentro das casas, sentindo a escassez dos próprios cheiros e deambulando pela tijoleira à espera do osso do jantar.
Neste como noutros casos, os ossos foram sempre duros de roer.

segunda-feira, agosto 14, 2006

O BRANCO LENTAMENTE








fotos rocha de sousa


Um dia, em Setembro, o céu tornou-se branco cinza. Uma aragem cortante atavessou o litoral e deixou as águas do mar paradoxalmente aquecidas. Depois, quando despertou em mim a idade da razão, funcionando cordenadamente com a abertura da consciência, começei a ouvir falar de uma guerra distante, que já abalara o Verão anterior, e que mostrava entretanto as primeiras estratégias a fim de se deslocar para Leste, sob o peso de invernos colossais e temperaturas dezenas de graus abaixo de zero. À noite, em Dezembro, eu ficava a olhar, perplexo, para a figura de meu pai debruçada sobre o rádio, o ouvido colado ao aparelho na expectativa de aceder às notícias emitidas em ondas curtas pela BBC. Durou muito tempo, essa guerra - Segunda Guerra Mundial, sempre se disse - e entretanto a escassez de bens básicos de consumo começou a fazer-se sentir. Eu ía comprar o pão com senhas de racionamento e via as mulheres dos operários corticeiros muito pálidas, brancas de morte, brancas de Inverno, esperando a sua vez na comprida fila de pessoas. Pensava para comigo, vendo a cortiça ser exportada de Portimão em grandes cargueiros, não sei para onde: «a guerra é tão longe, Portugal nem está metido nela, e mesmo assim há esta pobreza imensa, combates visíveis da praia, entre aviões inimigos». E um dia, passeando com um primo meu pelo deserto (nesse tempo) de Monte Clérigo, vi ele correr a fim de observar o corpo carbonizado de um piloto germânico cujo avião fora abatido quase sobre a espuma das manhãs, fogo e frio, carvão sangrento e areia branca, as dunas.
O branco das cidades do sul, inventado pelos árabes por razões têrmicas, acinzentava-se lentamente, ganhava fendas e cicatrizes, retinha a humidade das nuvens em bolsas de cal.

terça-feira, agosto 08, 2006

FUNDAÇÃO INFUNDADA

Guerra Civil Salvador Dali
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Esta obra fabulosa de Salvador Dali poderia servir de base a uma grande instalação a construir em qualquer dos nossos espaços museológicos - com a vantagem de nos ser dado a ver nela os terríveis males do século passado, as dantescas guerras e os milhões de mortos, advertindo as gentes de hoje, ainda embrulhadas em panos manchados de sangue, para os sinais do apocalipse que parece aproximar-se, trabalhado pelo homem e pela própria nNatureza. Artistas importantes, quer no passado, quer nos dias que correm, seguiram e seguem este caminho - em parte como Picasso com a Guenica - enquanto outros, conceptualmente, o fazem de forma obscura, algo reticente, ao mesmo tempo carregada de angústia colada ao fascínio. E tudo isso me ocorre agora, duvidando dos sonhos e da arte como verdade, ao ler uma notícia sobre Cabrita Reis, artista que se tem notabilizado no nosso país e no estrangeiro, por potencialidades de génio próprias e por acenos e apoios que em Portugal se concedem aos privilegiados, mesmo correndo o risco da desconstrução moral como sucedeu há bem pouco tempo com Maria João Pires, pianista que o país venera e que ela, generalizando, tratou de forma indecorosa, já instalada no Brasil para onde partiu definitivamente, como os reis de outrora - ou os ricos, património às costas, também viajando para aquele país (tão português que nem sabe) na altura conturbada do pós 25 de Abril de 1974.
«Esvaziar-se a grande galeria central do Centro de Arte Moderna Azeredo Perdigão tornou mais pertinente as dúvidas que existiam sobre os planos para o respectivo museu e a sua colecção, além de também ter vindo sublinhar a falta de uma exposição de primeira grandeza no início das comemorações do cinquentenário da Fundação Gulbenkian. Mas o talento e o brio de Pedro Cabrita Reis serão certamente suficientes para ocupar o espaço que lhe foi entregue por Rui Vilar, com vista à criação de uma instalação de grandes dimensões que aí vai ficar exposta até Abril de 2007. Cabrita Reis está diariamente no CAM a instalar à vista do público a sua obra, a que chamou Fundação, com recurso a alguns materiais e objectos vindos dos aramazéns da Gulbenkian e usando também paredes de tijolo, estruturas de acço e lampadas néon. A inauguração será só no dia 15 de Outubro»
(revista actual, Expresso, 5 de Agosto de 2006).
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Estas atitudes, tomadas entre nós num circuito intermitente da megalomania, aplica-se por inteiro ao actual caso (novo caso) de Cabrita Reis, e é, com efeito, de uma desproporcionalidade gritante, coisa gigantesca onde «flutuam» os materiais do costume: tijolo, madeira, aço, e o muito reaparecido néon. Sou admirador do percurso do autor, tendo seguido a sua produção e reflectido sobre ela, mas para comemorar os cinquenta anos da Fundação Gulbenkian não era preciso, nem talvez conveniente, voltar a isolar o trabalho de Cabrita Reis, como se fez em Veneza, como se faz quando calha, num dos mais fortes cultos de personalidade que as artes também perfilharam outrora, aliás bem assumido e bem gerido pelo autor no que lhe compete, em termos artísticos e pouco mais. A problemática ultimamente abordada por Cabrita Reis inscreve-se em modelos estéticos da actualidade e a prestação dele, em volta de tal campo, é culturalmente muito inteligente e bem coordenada, saborosa na encenação que faz das suas próprias coisas e de si mesmo: ali estava ele, na fotografia da revista, de pé, sem capacete de protecção, fato escuro, um charuto entre os dedos, instalando a obra ao vivo, necessariamente com apoio de operários qualificados. Dos materiais já se falou, juntam-se por uma lógica que nem sequer é recente, e aos quais Cabrita Reis adiciona por vezes coisas capazes de importarem para o domínio do absurdo, restos ou memórias da pessoa humana no seu detalhe anímico.
Sem excluir Pedro Cabrita Reis, se ele aceitasse estar com os outros, penso que esta comemoração deveria aspirar ao que foi a abertura da Gulbekian, as centenas e centenas de artistas que ajudou, as interactividades que gerou: então justificava-se esvaziar o museu e reconstruí-lo de forma plural, na diversidade de meios e explorações, portanto pedagogicamente, científica e poeticamente, onde muita gente se poderia reconhecer. Descontando a desavisada, mas eficaz e grandiosa, construção de dez estádios de futebol, o sentido nacional da obra, que era obviamente de todos para todos, como se viu, agarrou a população numa verdade interior, numa dimensão que Portugal, macerado do século XX, parece sentir necessidade de reencontrar, mesmo imolando-se por vezes no consumismo supérfluo e nas viagens pseudo-turísticas. Serão poucos, apesar de muitos, os visitantes que irão circular durante um ano em volta da soberana instalação de Pedro Cabrita Reis.
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sábado, agosto 05, 2006

A CASA REVISITADA





Cheguei ontem e decidi ficar. Ficar assim, olhando os restos de quem fui, ou de quem foi por mim, entre palavras. Tenho a casa toda para esta disponibilidade porventura irreversível, com o rascunho da morte empilhado ali, num monte de papéis velhos, tinteiros, carimbos, canetas de aparo, postais já sem destinatário.

Alguém morreu no quarto ao lado, ficaram os objectos. Coisas, retratos, roupa escura, ou essas marcas enigmáticas nos calendários de cores desbotadas. Alguém morreu desse modo, um pequeno caos em volta, passos, eu chegando e partindo como se o futuro se atrasasse por cada viagem de novo. Mas o futuro chegou mais cedo, quando a casa se enchia do perfume da roseira, depois de inscrever quase súbitas rasuras no rosto de quem o esperara de outro modo. Chegou a esse rosto, à clara luz do sol, deixando-lhe estranhas assimetrias na boca, a voz soletrada, um fio finíssimo de saliva ao canto dos lábios. Assim, breve, contra a paisagem de cal.

Abertura do romance e Rocha de Sousa, A CASA REVISITADA, distribuído prla Dislivro e impresso na gráfica J&L. A obra divide-se em duas partes: 1 nostalgia dos anos intencionais. 2 reencontro no murmúrio das raizes.

quarta-feira, agosto 02, 2006

O HOMEM DA ILHA



A Madeira é uma ilha portuguesa, com estatuto de autonomia, cujo aspecto, tocado pela vegetação e pelas flores, e hoje também pelo cimento, lhe confere de há muito, na gíria popular, o nome amável de «Jardim». Uma configuração destas, vogando majestaticamente em pleno oceano Atlântico, atrairia na época moderna cada vez mais turistas e a respectiva indústria, transatlântico iluminado à noite, pérola das mais raras e mais sedutoras. Este jardim flutuante tem o seu governo, o seu capitão ou governador, como é próprio de articulações geopolíticas assim. Mas o que surpreende àqueles que apreciam metáforas, trocadilhos ou coisas parecidas, estrangeiros do norte, por exemplo, gente do sul, mediterrânica, é a coincidência da ilha, dita jardim por analogia com esse género de ornato ambiental, ser governada por um homenzinho pitoresco que se chama Jardim, ocasionalidade assaz discordante quanto à configuração dos dois protagonistas. Isso não singnifica que o Governador, homem da ilha, não seja flor que se cheire. Ele apenas se bordaliza através das suas travessuras e pelo rosto de pequenos olhos cuja semelhança com pérolas é coisa longínqua, ostentando uma cabeça redonda e polpas faciais. Portugal, dizem os optimistas, é um país de brandos costumes e as gentes das ilhas, arquipélagos da Madeira e dos Açores, são particularmente doces, afáveis, com um sotaque na fala que mais acentua a ideia de simplicidade e o sentido insular da espera.
João Jardim, o Homem da Ilha, Governador incontornável da Madeira, não tem a grandeza mítica de Fidel de Castro, mas garante que revolucionou o território - e há trinta anos que o engorda com hotéis e grandes apertos de cimento, correndo riscos próximos de matar a galinha dos ovos de ouro, como terá de acontecer no Algarve, mesmo sem autonomia. O desenvolvimento, que não se confunde com crescimento, pode tornar-se explosivo quando se mistura com este ingrediente para além do limite que a Natureza e a natureza humana são capazes de tolerar e (por fim) de sustentar. Até porque a miséria não se irradica à sombra de hotéis de dez estrelas. esse problema tem de passar pelo verdadeiro desenvolvimento social, da coordenação do trabalho e das vocações etárias, de uma economia que não corrompa o ambiente e a justa distribuição da riqueza.
O Homem da Ilha tem os seus talentos, ninguém os nega, mas, talvez por se conservar no poder há trinta anos, perde dia a dia o sentido de Estado e a noção de respeito que deve aos outros, na linguagem e nas contradições. Estou a ser brando, para fazer jus à tradição do país, mas a verdade é que só uma nação pequena em quase tudo consegue arranjar pachorra e silêncios benignos perante as provocações que o senhor Jardim lhe atira, algo que, da última vez, incluía um achincalhamento inacreditável e, como sermpre, um conjunto injustificado de alcunhas O Governador Jardim grita que a Constituição do país, e o próprio Sistema Político, têm de mudar, porventura à sua imagem e semelhança, mas esquece-se do seu frequente comportamento inconstuticuional, na extensão sancional imaginável. A verdade é que aquele Documento, benigno e comprido, não garante, a muitos títulos, medidas fortes contra certas prevaricações - a própria destituição dos líderes partidários malcriados, deputados inconvenientes perante os seus colegas e a comunidade. O Homem da Ilha, ao assumir tais comportamentos de falas soezes, lembra o perfil de certos ditadores sul-americanos, de agora e de outro tempo. Neste caso atirando ditos corrosivos, atrapalhando as liberdades e o sentido da comunicação social, político em desproporção ao cumprir três mil inaugurações numa semana, gente perplexa em volta ao imaginar o que terá acontecido naquele território, a este ritmo, durante trinta anos. Jardim não se detém, muito menos na fala, e por ele os seus colegas, na rua e no parlamento, em Lisboa, são cubanos, canalhas, trafulhas e caloteiros, palhaços incompetentes na Assembleia da República, todo um vocabulário do destempero, do manobrismo, pois a própria dívida económica da Madeira ao país é metida na algibeira do paletó, enquanto se faz apregoar a falta de financiamento à região, apesar do muito milho gasto por lá em termos megalómanos.
Meus senhores - e o dr. Jardim que me desculpe - a verdade encoberta, ou esventrada, é de certeza um dos pecados maiores. Do Jardim insular até ao Inferno são apenas meia dúzia de quilómetros. A Madeira é Portugal e Portugal está certamente sulcado pelos milhares de inaugurações efectuadas, entre impropérios, ao longo de três décadas. Há gente assim, habituada a fazer guisado dos princípios e da ordem democrática. Tais cidadãos não têm vocação para o trabalho imenso que, pela acção governativa, se reflecte na educação das populações a par da edificação harmoniosa do território. Não sou jornalista mas sei que não é preciso escrever despachos ordenando os orgãos da comunicação a se apresentarem decentes nos lugares como a Assembleia Regional e outros lugares litúrgicos. Tenho orgulho no meu sentido de cidadania, deste direito de me expressar na Madeira, como agora, e aqui reitero que considero irreflectidas muitas das afirmações atrás referidas, bem menos adequadas ao bem parecer do que os fatos de trabalho dos homens dos jornais e televisões. É perfeitamente inconcebível que um governante ofenda os seus pares, em Lisboa, no Funchal ou na Europa, sem que o mais leve sinal lhe seja comunicado. Fala-se de cobardia ou de indiferença. Mas uma coisa não anda longe da outra e a educação dos portugueses passa pelo exemplo de quem gere o seu futuro.