domingo, abril 28, 2019

A OBSCENA PRECE DO TERROR

 
Há muitos anos, quando escrevi as primeiras palavras desta coluna a que chamam blogue, fiz uma nota prévia em que guardava, acerca dos comentadores pós 25 de Abril, a minha abertura e admiração cultural por duas personalidades: Clara Ferreira Alves e Miguel Sousa Tavares. Esta posição continua clara. E digo isto, hoje, porque leio sempre as crónicas da Clara e também li «O Novo 11 de Setembro», acerca dos  recentes atentados que sopram do Islamismo, assim a falar-nos de forma luminosa e civilizada sobre uma cultura político-religiosa que visa destruir o resto do mundo e não sei se então emigrará para o canto mais infértil do Universo.

Clara começa por nos dizer que «no Ocidente o terrorismo só desperta a atenção depois do massacre. A seguir, a população esquece». É um pouco assim, porque o Ocidente radicaliza-se de outro modo: navegando em dinheiros lavados e sujos, rezando maquinalmente em diversas igrejas, emigrando de fortuna para fortuna, entre países, fazendo tudo para comprar casas amplas e eternas, afundando-se nas massas de turistas, até níveis absurdos, alheando-se da morte do planeta pelas suas próprias mãos somadas às de Deus, indiferente às distorções do trabalho e das classes de salário mínimo e as do salário obsceno no seu vulto e diversos tipos de escondimento. E outros pecados domésticos. Em volta disso e da corrupção generalizada nas classes altas, sobressaem duas formas graves de alienação: o Futebol e a Televisão. 

O texto de Clara Ferreira Alves começa por nos noticiar «Quase 400 mortos de uma vez, no Sri Lanka». Cita os 2997 mortos do 11 de Setembro e pede-nos para pensarmos nas Maldivas. Ou em Bali: «A primeira coisa que vem à cabeça é uma praia com corais vermelhos no azul turquesa e areias brancas». Mas como sabe que este mundo desta nova indústria é falaciosa, convida o leitor a visitar e viver o real dos cidadãos do Sri Lanka. Os que ficam atrás dos bastidores acotovelam-se para vender montanhas dos mais diversos produtos, abundância das classes mitigantes que sobram por esse mundo fora e morrem à mercê da fúria do clima ou da fome e das doenças.
A situação daquelas paragens cobre um texto rico, actualizado e terrível para quem ainda tem consciência do que acontece no mundo da Globalização.
A certa altura, escreve: «O Iraque é do Irão, com uma minoria sunita descontente, e uma guerra perpétua entre sunitas e xiitas. O equilíbrio de todas estas forças antagónicas é posto em causa, e países como a Jordânia e o Líbano correm perigo sério de desestabilização.
No Ocidente, o terrorismo só desperta a atenção depois do massacre. A seguir, a população esquece. Achando que que o califado foi vencido.»  Clara, diz depois: «enquanto o terrorismo não for exterminado na fonte, enquanto as redes sociais continuarem a disseminar o ódio e o credo, o terrorismo continuará e crescerá, mais inteligente, tecnológico, letal e internacional. Mudando organicamente o modus operandi para aproveitar a surpresa e perpetuar o massacre. E todos sonham com o novo 11 de Setembro.»
                     

sábado, setembro 29, 2018

NA MORTE DE HELENA ALMEIDA

Helena Almeida



Em dias de convívio, sobretudo nas sessões relativas às exposições de arte, ouvi e vi muitas vezes esta nossa invulgar pintora (que fez depois da fotografia e da mancha um mundo inovado, performativo) a dizer as suas palavras, por vezes como que invisíveis na visibilidade fotografada de escolhas em performance. Tudo desde os tempos da sua beleza, feita de modo avançado, e certa altura geométrica e luminosa e contrastada. Escrevi textos sobre esta amiga cujo enleio no mundo, na companhia do marido, arquitecto Artur Rosa, fotógrafo emérito que logo se ligou às urgências expressivas da sua companheira, em poses fotográficas que se desdobravam em atitudes na pintura a fingir, o azul cuspido da boca, os relevos de dedos pressionando grandes panos brancos, esticados e submissos perante a luz. 
Helena Almeida levou muito longe (até à Bienal de Veneza) a mobilidade criadora do corpo no espaço e da pintura espalhada pelo chão ou derramando-se da mão direita, enquanto a pintora se dirigia para o fundo, o  nada de uma parede branca, por exemplo, o papel enganador no clássico devaneio sobre o estirador. Toda esta obra, conceptual, mordaz ou em paralítico, fez de Helena Almeida exemplo de achados muito raros, certa visão de um mundo construído em cenas reveladoras de uma ideia, invisíveis e de súbito redescobertas pelo nosso olhar, entre o desejo e a percepção. Era a magia sagaz dos enganos e das simulações, passando pela geometria do papel, telas, espaços frios. E nem sempre isso acontecia entre Helena e a tinta. A certa  altura os seus passos eram laterais a um pó negro, caindo rectilíneo no chão, escorregando dos dedos leves e dobrados. Pólvora, exclamou alguém. Podia ser terra fina. Mas a ideia da pólvora sublinhava o último minuto ao fundo, a explosão. Mas a sua morte não foi assim, A Natureza levou-a no dia 26 deste mês, Setembro, 2018. É sempre estranho que a luz de uma vida, feita de passos de descoberta e belas ocasionalidades, desapareça assim, por nada e para nada, embora seja nossa reflexão a que nos conduz à memória da vida, dos factos, das obras, sempre a envelhecer mas ao mesmo tempo voltando a anunciar, no quadro do futuro, o exemplo pronto a nos enlaçar em nossos próprios sonhos de amanhã.
Helena Almeida iniciou a sua carreira no final dos anos 60 e foi sem dúvida uma figura incontornável no panorama artístico português. É um caso bem singular no quadro desta nossa contemporaneidade, entre dois séculos e sempre certeira nas teses de cada imagem. A sua arte que mais passou pela fotografia e pelo gesto suspenso é um caso raro no plano da multiplicidade de ideias que a arte, no seu melhor jogo de enganos, nos oferece e nos orgulha além de todos os limites do pensamento. Um dia morremos e de nós fica o testamento de uma humanidade afinal refeita, dizendo a hora em gritos e silêncios de pedra.
Com o mais interior sentimento da vida e da morte, por Helena / Rocha de Sousa 

quarta-feira, maio 23, 2018

NA HORA EM QUE JÚLIO POMAR MORRE A SUA MAGNÍFICA OBRA FICA SEMPRE.

JÚLIO POMAR

O Almoço do Trolha

Mais tarde, Pomar, misturava modos de formar
trabalhando o gesto e a memória de imagens à
flor da pele ou emergindo da fúria

Não há espaço nem técnica para gravar aqui uma escrita digna deste grande artista, Júlio Pomar, um artista inteiro, que antecipava a História quer pela pintura quer pela escrita. E também pela palavra, em longas cenas de convívio, que todos apreciavam, ouvindo, contrapondo, abrindo caminhos que explicavam o seu modo de ver e de ser, a sua marcha pelas veredas da História, descobrindo a forma plástica em diversos sentidos de pausa e força, cavalos que corriam ao nosso encontro, carroças após um neo-realismo erudito, Maria da Fonte, o Almoço do Trolha, dezenas de anos depois sabendo traduzir essa estranha raiva que foi o Maio de 68 e um dia, em Lisboa, entre peles de animais nobres, as senhoras bidimensionais de Lisboa, moda de Paris, uma inquietude sensual que se plasmava ao jeito de um "jornal de parede".
«Celebrado por muitos como "o pintor mais imediatamente talentoso da sua geração e o mais brilhante dos cultores do neo-realismo de 45",  Júlio Pomar está referenciado em todas as exposições e publicações onde se faz o balanço da arte em Portugal desde a segunda Guerra Mundiial.»
Esta nota colhida na Internet deixa-me preso à memória que tenho desta cavaleiro do gesto e da mobilidade visual, entre cegueiras e deslumbramentos, cavando para além dos homens da terra e sabendo parar a tinta na grande batalha das misturas, metendo entre parêntesis uma coisa imóvel, celeste, um rosto de poeta, uma letra encontrada no caminho da sua energia mágica, tudo à mão (ou quase tudo) embora a sua fotografia dilatasse o próprio imaginário e mostrasse que a arte pode ser sempre imensa e esplendorosa sem o ferver actual das tecnologias que nos devoram a fingir que nos servem.   
                                                                                                                Rocha de Sousa 

quinta-feira, fevereiro 15, 2018

revista CRISTINA cancro REBECA


             
         QUE O AR SE PURIFIQUE SEMPRE




Cristina Reis, vedeta da TVI, arejada e gritante, apresentou ontem a revista de que é directora,
justamente chamada Cristina. Por muito que se estranhe, embora a artista se estivesse a  referir
a Rebeca, cantora portuguesa que sofreu de cancro e novamente, com estoicismo, foi atacada pela pela mesma doença, erguia e publicitava revista de hoje, CRISTINA, dizendo «está amanhã nas bancas. Penso que a hora e a situação não era para a forma usada pela Cristina Reis embora a saibamos descontraída. Mas ela iria gritar,  chamar de  longe por alguém, rir-se, num  velório ligado porventura a pessoa amiga e conhecida.
Ontem, no programa que regia, Cristina Reis dizia: «Fiquei sem chão. Era o último dia do ano  e abri o meu mail. Tinha uma mensagem da Rebeca, a cantora portuguesa, »Como é possível outro cancro? Ainda agora comecei a quimioterapia e, se estar sem cabelo é doloroso, os outros efeitos secundários são horríveis. As únicas pessoas que sabem são a minha família, alguns amigos próximos e agora tu».
A notícia é tratada com outras fotografias, na capa, no interior e dados sobre a cantora. Mas não haveria maneira de não se fazer (abertamente) publicidade à publicação, havendo a própria pessoa ou foto dentro da montagem? E se todos os pivots da TVI começarem a anunciar, entre parênteses, os seus paralelos profissionais? Discos, Livros, Trabalho num restaurante. Modas. Habilidades de alunos? Há aqui uma pontinha a falhar na deontologia. 
      Dizia um outro: «Não eeraaa  neeceesssáriiiio.»

A TELEVISÃO 
          NÃO NOS OBRIGA A NADA
                                    

segunda-feira, janeiro 08, 2018

PRECISAMOS DE UM MILAGRE

Sou um leitor assíduo de Clara Ferreira Alves. Quase não perco uma das suas crónicas no Expresso. No último número da revista, logo na primeira página como sempre, Clara brindou-nos com mais um belo texto que eu colocaria, nas minhas letras ou pinturas, com o já repetido título Desastres Principais. Ela repete o grito de uma sem abrigo de Nova Iorque, apelo brutal dito em plena rua sob uma temperatura de 23º negativos: "PRECISO DE UM MILAGRE" .
Depois de uma pungente narrativa sobre aquela cidade, ruas vazias  e cobertas de neve ou gelo; depois de abordar o problema odioso do comportamento dos ricos perante os mais pobres dos pobres; depois, ainda, de descrever os montes de cartão, peças de embalagens, restos de coisas desconhecidas, mantas, ruídos de sonos apavorados ou silêncios de gente ali dormindo (talvez tentando) e outros porventura já incapazes de respirar, Clara Ferreira Alves dá-nos a ver e a ouvir o grito de uma rapariga nova, envelhecida pelo terrível sofrimento desta vida sem abrigo, noites de inferno, tempo que só Deus poderia reconsiderar. 
O grito repetia-se: Preciso de um Milagre. Precisamos todos,  uns mais do que outros, à medida dos paradoxos e das conflitualidades do mundo  e dos   desastres principais que parecem estar prestes a expulsar a humanidade de  algum discernimento colectivo e por último do próprio planeta, pelo destino próprio e pela nossa ajuda demente.
Ainda cito o fim da crónica de Clara, porque esse direito lhe pertence e agora também a todos nós.

«Ninguém conseguiu ou quis resolver, ou tentou, o problema dos abandonados e vagabundos, os doentes mentais que Reagan resolveu despejar nas ruas e fechar os hospitais psiquiátricos, dos desempregados sem morada certa, dos drogados e alcoólicos, dos loucos de origem misteriosa, dos veteranos de guerra, dos negros, dos adolescentes e dos abusados sexualmente que fogem de casa, das mulheres violentadas e refugiadas nas ruas de todos os que cairam em desgraça  e escaparam pelas malhas do sistema. (...)  Muitos sem abrigo foram atirados para os subúrbios, despejados no tempo de Giuliani. Estão agora debaixo das pontes e nos vãos do Massachusetts ou de  New Jerssy. Estão, finalmente mortos».

quarta-feira, novembro 01, 2017

CÓDIGO PENAL OU A BONDADE BÍBLICA

                                                                   MOCA ATENTA

quarta-feira, outubro 25, 2017

CÓDIGO PENAL, A BÍBLIA E A MORTE


Portugal, com séculos de moldagens e sentenças religiosas ou aventuras culturais, tem por vezes entrado em colisão com diversos juizos retorcidos de cada tribunal, quer no plano dos direitos, que no espaço dos deveres. Tem havido juízes de valor e outros julgando através de retóricas fora da simetria do triângulo que integra a justiça.

Recentemente, perante o caso de uma mulher casada que cedeu aos apelos do adultério e que, posteriormente, foi espancada pelo marido com uma moca crivada de pregos, o juiz Neto de Moura, secundado pela colega Maria Luisa Arantes, redigiu, no Tribunal do Porto, o acordão de 11/10/2017, em termos hoje insustentáveis, como podemos avaliar pelo conteúdo no dito documento (Diário de Notícias | 24 de Outubro, 2017)

«O arguido, homem munido de uma moca dilacerante, foi condenado a um ano e três meses de prisão, pena suspensa na execução, por ter agredido a mulher com uma moca munida de pregos --  tendo em conta que esta teve uma relação extraconjugal.»
    
       Estou a citar páginas do Diário de Notícias e do texto intitulado "Cultura do Machismo na Justiça "
     São apontados vários acordãos em que o desembargador Neto Moura, do Tribunal da Relação do Porto, tem recorrido à desculpa da conduta de agressores domésticos, casos de agressão no quadro da violência doméstica.

                                              ASPECTOS do  ACORDÃO

      «Este caso está longe de ter a gravidade com que, geralmente, se apresentam os casos de maus tratos no quadro da violência doméstica. Por outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem.»
            «Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Líbia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1888, artigo 372º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando  sua mulher nesse acto a matasse.»
           «Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso se vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher»
              «Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida»

    
          O que se disse no "Diário de Notícias mais à frente, por Teresa Martinho Toldy sublinha que não é suposto o juiz fundamentar decisões com base na bíblia. Em boa verdade, no caso em referência, o que o juiz faz é legitimar a deia patriarcal de que o adultério é alguma coisa ligada à mulher, que é um ser pecaminoso. Nesta conformidade, que deveremos dizer aos assassinos cruéis do ilusório Estado Islâmico ou à cegueira sanguinária dos Talibãs, ensinando só as palavras de Alá às crianças, proibindo a música, o teatro e o cinema. Que farão essas pessoas a julgar, a ensinar, ou que intimidade consente no domínio privado à sua mulher de casamento. O mundo perde-se cada vez mais numa balbúrdia global, entre o fogo e as infinitas ondas que os tufões namoram, atirando o luxo da «honra humana» para as covas da peste por ela mesma produzida milénio a milénio.

Rocha de Sousa