quinta-feira, julho 27, 2006

OS DESASTRES PRINCIPAIS

foto de Nasser Nassier
Há dias, na revista Visão, Lisa Beyer escrevia sobre a situação no Médio Oriente: «O Hezbollah, um grupo radical xiita que opera livremente a sul do Líbano, matou oito soldados israelitas no seu ataque inicial de 12 de Julho e, desde então, lançou centenas de foguetes contra Israel, abatendo quatro civis». Desde a «invenção» territorial de Israel, arrancado eufemisticamente a zonas pobres, pouco povoadas, onde outrora tribos ainda nomadizadas se digladiavam por uma pausa em sobrevivência, que os conflitos de rejeição e similares têm marcado o tempo segundo a cadência dos desastres principais, os que tocam de forma indelével a história da humanidade. Digamos que os casos mais graves, envolvendo vários países daquela zona, se situaram em 1948, 1956, 1967 e 1973. Hezbollah, constituído em 1982, não descurou a sua principal finalidade -- a negação e apagamento total do Estado de Israel. Este objectivo tem norteado os vários movimentos que combatem na Palestina, quer se evoquem os mais antigos, sob a batuta de Arafat, quer se refira o Hamas, um dos que mais radicalizaram a sua posição, tendo sido, por estranho que pareça, muito recentemente e de forma maoritária, eleito para enquadrar e dirigir a nova Autoridade Palestiniana. O primeiro ministro desta realidade política, primeira entre todas, nos termos em que se definiu, desde a formação do Estado de Israel, é agora líder do Hamas em Gaza, Ismail Haniya, rodeado de escolhos por todos os lados. Mahmoud Abbas, Presidente da Autoridade Palestiana, procurou, na base inicial das perspectivas entretanto delineadas, estabelecer com Haniya um espaço político onde Israel seria implicitamente reconhecido no quadro das suas fronteiras fundadoras. Israel, contudo, ainda está longe de qualquer aproximação desse género, mesmo se algmas vezes se esboçaram plataformas de entendimento. No momento, com as retaliações dos israelitas em consequência do rapto de um dos seus soldados, a partir de uma operação espectacular desempenhada pelo Hezbollah, os cenários de uma guerra de grandes contornos surge como hipótese temida nos céus da região, contrariando, segundo os turistas em fuga, a missão de Cristo por tais paragens, em nome da salvação dos homens, deixando a marca dos seus passos e das suas palavas, de acordo com a memória bíblica, suspensa do futuro. Um futuro que, bem vistas as coisas, nunca aconteceu consoante o projecto.
Haverá algum dia nesta terra, não uma trégua ou um tempo de paz entre parênteses, mas a verdadeira pacificação de espaços tão erradamente assumidos pelos homens, pelas nações, pelas mitologias religiosas? É terrível, seja qual for a nossa visão do problema, ler o que escreveu, a certa altura do seu texto, Lisa Beyer: «para além dos incentivos que possam obter, o Hamas e o Hezbollah nunca precisariam de uma justificação específica para atacar Israel». Atacar Israel é a sua própria razão de ser. Os Estados Unidos, com ou sem Bush, não podem na sua aliança, e sob pena da destruição universal, amordaçar todo o Médio Oriente, nem o Irão ou o Paquistão podem imolar-se pelas tentações hegemónicas que suscitam um projecto idêntico, com meios de destruição quase total. Mas a verdade é que o pensamento concentrado destes homens distende-se da urgência, porque a história não é feita assim. Para além de um resultado particular, a perspectiva em que funcionam é de longo prazo, sedimentada nos islamitas: «com o tempo, décadas ou séculos, se necessário, Israel acabará por ruir». Seja como for, talvez baste comparar a rapidez e a eficácia dos israelitas em 1967 com o tempo pesado dos últimos anos do século XX, ou mesmo agora diante de um Hezbollah bem treinado e bem armado, para nos interrogarmos, em perplexidade, qual será o fim e a configuração geoestratégica desse anunciado desastre principal. Ou estaremos, também sem data, colocados perante a hipótese de um novo holocausto, com parte dos mesmos protagonistas e outras vítimas, outros milhões de mortos, outras imensas sequelas sem tratamento 8sequer) a médio prazo?

sexta-feira, julho 21, 2006

A CULPA DE DEUS


para um ensaio sobre o livre arbítrio
Após a pausa que sublinha as primeiras deglutições, eu próprio saboreando o deslisamento do café pelo esófago, agradeço a intervenção de Jerónimo, sublinhando que em parte ela servira de introdução à nossa possível conversa sobre os meus textos, o método empírico mas baseado numa lógica de acasos e estatísticas decisivas, a ideia de uma procura multidisciplinar nas fontes e na informação retida, uma pesquisa ética e estética também, tudo isso em torno da possibiulidade de haver sinais plausíveis, embora relativos, sobre o homem enquanto projecto e prática de Deus, ou seja, a natureza da condição humana, a sua origem, o anátema do livre arbítrio como arbitrariedade antecipada do Criador ou consequência de uma Criação afinal limitada, quase cega, destituída da bondade inifinita a montante do caminho universal e responsabilizadora das escolhas humanas a jusante dessa complicada via, o risco da vida, a fronteira da nossa consciência perante a falta de qualquer dimensão cósmica mensujrável, Coisa indeterminada, efectivamente sem nome, mesmo que lhe aceitemos a transcendência e a absurdidade ao falarmos do que suspeitamos pertencer-lhe. Não é do meu interesse, com este trabalho e os cruzamentos de indormação que ele implicou, entre memórias, tragédias ou perdas irreparáveis, atingir a orla falsamente inteligível do mundo, um sinal furtivo da eventual construção de tudo em volta. O meu trajecto tanto pode ser científico como subjectivo e poético, mas não é fixável, no seu termo, em tabelas conhecidas, em iniciações de base, tecnicamente provadas. O devaneio onde circulam lembranças da guerra, dos afectos, da doença e da miséria, acontece marcado a fogo pela angústia de ser, do ser, observando os ditos e convenções de um pensamento ainda epidérmico, inevitavelmente parecido com o dos meus semelhantes. Pode lembrar uma viagem, esse devaneio, a gestação caótica e mesmo infundada na longa espera dentro da Arca de Noé, o Dilúvio cercando a nossa indescritível fragilidade, enquanto muitos dos recolhidos, mais novos, se instruíam (ou se instrumentalizavam) escrevendo bíblias, invenções para o Antigo Testamento e símbolos ajustáveis aos actos ensurdecedores de um Deus impaciente, contraditório, ainda exigindo sacrifícios e proibições sem sentido. Quando choviam rãs do céu, ou outras coisas assim, os sinais da vontade de Deus, em nada explicados, obrigavam os médiuns sacerdotes a imaginar uma legitimidade para cada horror. O desconhecido, mil vezes mais oneroso e complexo do que a nossa actual ignorância, podia por isso mesmo ser abordado a partir do medo e de abusivas interpretações, sempre as menos dispendiosas - desde o efeito dos astros sobre a terra até às práticas de uma cultura mágica, entre nomadismos e guerras tribais, tendo em vista, mais trade, a conquista do território na lógica de uma produção sedentarizada, pela definição de uma ancoragem assente em grandes defesas e no sacrifício da inocência.
OOO
Extracto do livro «A CULPA DE DEUS», de Rocha de Sousa, que se encontra em vias de ser lançado pela Editora Tartaruga, do Porto.

sexta-feira, julho 14, 2006

A MEMÓRIA DOS LIVROS


Lembram-se daquele famoso livro de Bradbury sobre a morte dos livros, levado ao cinema por Truffaut, a história de uma sociedade futura onde os bombeiros não se destinavam propriamente a apagar fogos mas antes, e ao contrário, a procurar o maior número possível de publicaçõess, queimando-as em praça pública com lança chamas. Pragmático, Truffaut narrava esta monstruosidade quotidiana de forma rigorosa e sucinta, como a coisa mais natural deste mundo. Pensamos em «1984», de Orwell, o mundo globalizado na mais vigiada das ditaduras, na qual a «máquina» da repressão era conhecida por Big Brother. Em Bradbury, ou no filme de Truffaut, a realidade repressiva, a castração cultural pela queima inquisitorial dos livros, todos os livros, tocava sobretudo os cidadãos que sabiam os perigos que corriam se lessem um livro, ou se os tivessem em casa. E todos os que os que não se conformassem com tal amarração silenciosa, como sempre acontece, ou se resignavam ou resistiam. E a palavra de ordem (secreta) era resistir. Resistir consistia primeiro em fazer um esforço para esconder muitas obras em casa, frequentemente descobertas pelos bombeiros-polícias e queimadas. Para além disso, muitos cidadãos procuravam um exílio nas montanhas, nas florestas, e aí os intérpretes dessa atitude passeavan de um lado para o outro, decorando os livros, ou dizendo-os em voz alta, ou ensinando-os aos mais novos. Formava-se assim uma biblioteca universal oralizada de geração para geração. A civilização humana, e com toda ela a sua identidade cultural, acabaria por sobreviver contra as mais sofisticadas tecnologias de apagar o seu verdadeiro rosto, apagando-o do conhecimento das pessoas.
Ao lembrar-me deste filme quero afirmar que penso numa situação semelhante relativamente a nós, com ou sem globalização. As editoras florescem por aqui e por ali, em Portugal, e editam toneladas de livros por semena. O que parece positivo. O que parece progressista. Mas quem tem acesso a essas editoras, que prospecção autoral fazem elas nos meios da escrita e do pensamento, sem ligar ao sopro dos poderosos nos ouvidos? Quais são, enfim, os critérios das suas escolhas? Ao falar com um amigo meu desse sector, e perante as minhas próprias queixas quanto aos verdadeiros casos descobertos, que são repelidos pelas editoras, ele disse-me que os livros continuam a ser queimados. O que chega às bancas são ilustres conhecidos, para quem há bastante tráfico de influências, e depois um monte de traduções, de livros da moda, de um outro novo escritor que conseguiu, sabe-se lá como, furar as malhas das fronteiras do Big Brother. «Talvez não seja tanto assim. Tu é do meio e estás pessinista». E ele, sorrindo de soslaio para continuar a marcha, perguntou-me:«Tens livros para publicar?». Respondi que sim, que tinha pelo menos uns seis originais. Com um aceno, este meu amigo lançou-me um repto: «Então tenta, vai lá falar com os chefes livreiros».
Pausa.
Enchi-me de coragem e comecei a percorrer as editoras, algumas dirigidas por pessoas que conheciam a minha obra pictórica, alguns livros didácticos, e muito trabalho de ensaio jornalístico. Esperei um ano pela primeira resposta: que eu escrevia muiro bem, mas o livro não estava ao alcance do público, sendo demasiado ambicioso; outra instituição, dirigida por um amigo meu, devolveu-me o original no dia a seguir ao da entrega, porque não estava dentro do novo plano editorial agora em vigor na Casa, abocanhada em parte pelos espanhóis; um outro director editorial garantiu-me a excelência da obra, embora soubesse de antemão que não venderia maia de cem exmplares do livro.
O país está queimado, florestal e cultruralmente. Os novos livros, de novos autores, têm que ser entendidos como uma prioridade, sem tráfico de influências, porque grande parte deles é muito importante, representam uma porta aberta para um futuro onde os homens dizem livros na floresta. O embuste cresce, sobretudo quando se faz passar gato por livro, da Vinci em dourados ou relevos, luxos caros e nem sequer asiáticos. Qualquer editora que se prese, e que não queira sucumbir ao mercado global, selvagem, redutor, terá de desenvolver actividade prospectiva, por todos os níveis etários com obras inéditas, e terá de reservar anualmente um tecto, uma cota, em ordem à publicação de livros desconhecidos, de autores desconhecidos, jovens ou velhos, que escrevem por vezes obras primas em breve queimadas nas gavetas.
Se percorrermos os circuitos de um livro, desde a sua génese, à sua difícil fecundação no útero dos livreiros, até aos «distribuidores» e revendedores, compreenderemos que as metodoligias do achamento de obras e de tratamento delas está velho e rodeado por pessoas que julgam saber tudo, até de um marketing que continua a gaguejar. Tudo é velho, rotineiro, sem associativismo, carredado de intermediários que ganham mais por unidade do que o criador da obra. Nas livrarias, emergem meia dúzia de últimas peças de um autor, por exemplo, e soçobram bem depressa para a prateleira, pois a nova tonelada de temas paeudo-religiosos e com letras douradas está a chegar.
Os ouvidores da República, de má fama, servem agora para outras coisas bem menores. O Santo Grall é com eles: o que se vende e o que não se vende

terça-feira, julho 11, 2006

UMA GUERRA ESQUECIDA

pintura a de Rocha de Sousa: «Acto Irreal» sobre a guerra colonial, salvamento de uma criança, indeterminação dinâmica da corrida, um ser arrancado aos tiros
Ao ver na televisão, quase todos os dias, mas em fragmentos repetitivos e sem geografia, as guerras que incendeiam o mundo na actualidade, lembro-me de uma outra guerra, praticamente já esquecida, para a qual fui mobilizado de súbito, compelido pelas leis que nesse tempo determinavam a obediência obrigatória, e mesmo cega, às determinações do serviço militar. Depois de ter regressado dessa comissão num mundo de assombro, que nos rasgava e pele com os espinhos da selva e deslumbrava perante os crepúsculos cósmicos, as chuvas imensas, o murmúrio dos insectos ou pássaros deslizantes.
Nas palavras de Salazar, essa guerra - «todos para Angola e em força» - consistia no direito supremo de defender e salvar a nossa Pátria, multiracial e pluricontinental. Projecto ao contrário do que dizia o «terceiro mundo» sentado nas poltronas da ONU. Projecto que já tinha exemplos mansos, mas enganadores, e alcançava a sua errática grandeza nos ano 60 com a «capitulação» de deGaulle na frente já muio larga e duradoura que fervilhara na Argélia. Franz Fanon, defensor dos movimentos de libertação nacional e estudioso dos fenómenos étnicos ou político-militares, conhecia perfeitamente como tudo se gerara depois da II Guerra Mundial, as raizes, os apoios, os níveis e as diferenças tribais entre fronteiras de conveniência. Mas o próprio Fanon murmurava, de forma cauelosa e pertinente, os efeitos da repentina transição de povos situados no limiar da história para o centro civuilizacional do século XX.
Não vou abordar esta matéria, dada sua complexidade e os estudos comparados que é preciso desenvolver. Tudo isto veio apenas a propósito de um quadro que evoca a guerra de Angola, entre outros que produzi, e da estranheza que sempre me acompanha quanto à surdez que, entre nós, desabou sobre esses acontecimentos. Não houve um rasgo nacional, uma campanha literária e artística, debates de estudo sobre a natureza dos respectivos fenómenos e sua projecção no futuro. Alguém costuma dizer que o país tinha vergonha, que os mortos espalhavam o seu peso pelas serranias e pelas aldeias, retornados, tardiamente, em caixões de metal. Só os batalhões passaram a fazer encontros anuais, em almoços de confreternização e uma missa pelos companheiros perdidos. Ainda acontece, já de mistura com famílias e filhos. Acontece mas não tem mediatização, não é analisado como fenómeno humano e de afectos leais, de retratos baços, de rostos jovens que se tornaram pesados, sorrindo novas comoções pelas comoções de outrora.
Há livros escritos, breves centenas sem verdadeiro esforço editorial. Versos em edições de autor. Contos em volta daqueles anos estranhos, diluídos entre a ternura e o medo. Mas isso não tem a dimensão dos encontros institucionais que as universidades poderiam ter desenvolvido, com a ajuda de tanta documentação e testemunhos vivos de que dispomos. Não se trata de defender ou negar a legitimidade da guerra, como ela se fez, bem e mal, e se prolongou por catorze anos apodrecendo. Não é disso que se trata. Aprendemos todos o que havia para aprender, após disfarçadas castrações da ditadura. Mas depois da libertação de 74, depois do abrandamento das feridas principais, os nossos homens pensantes deveriam ter-se interrogado fora dos exílios sombrios, deveriam ter colocado os acentos nas palavras, dizê-las, lembrá-las, tornando legível o nosso «Apocalipse Now» enfim apontado pelos meios de comunicação e pelas artes, incluindo os poucos filmes que tocaram o problema ao de leve, iluminando o país ainda mordido de dor, um país a sentir-se absurdamente culpado.
Quando estoirou a guerra civil em Angola, uma guerra muito mais grave e doentia da que os portugueses fizeram sem arrasar cidades nem parar o desenvolvimento, pensei de novo em Fanon. Escrevi «Angola 61, uma crónica de guerra» e disse tudo o que vi, o que senti, o que perdi. Disse então, ao escrever a última parte, que imagem tinha de Luanda, na distância marítima:
« Uma última torre persiste no horizonte, é como alguém que se distinguisse na multidão, como em Alcântara, e nos acenasse um derradeiro adeus. Depois, na atmosfera lilás, tudo desaparece. Angola deixou de existir».

segunda-feira, julho 10, 2006

O MEIO E O MODO


fig1 fig 2

A propósito dos problemas postos pelas novas tecnologias, a constituição de um meio que atravessa a realidade virtual e pode estabelecer-se nesse mesmo meio, como coisa ou modo, isso não faz desaparecer, nem imutilizar, outros meios, os tradicionais, ou a mistura desse com os outros. A caixa do campo digital que o computador coloca à nosa disposição para vários tipos de registos é um meio elementar de trabalho com o qual, em todo o caso, podemos desenhar e pintar simulando quase por inteiro a manualidade (ver fig 2). Por esta relação, imitando ou libertando a imagem inicial (ver fig. 1) que se trata de um quadro a óleo, podemos observar até que ponto a mudança de meio muda o modo, isto é, a forma, ou se deixa aproximar dela. Esta questão é muito importante no domínio das disciplinas de índole artística, pois a permanência dos antigos e tradicionais meios de operar, dos quais sairam pinturas naturalistas ou violentas no caso expressionista, é uma questão consistente. Não se trata de tornar inúteis os meios entretanto conhecidos, nem a Hitória morreu, como pretenderam alguns, e muito menos a Arte. Vão surgindo novos meios ou processos de manejar os materiais, o que alarga o espectro visual e cultural do nosso espaço. Muitas dessa proposições são arte pública, povoa a realidade urbana, tornando-a mais significativa e habitável.
No exemplo destas duas figuras semelhantes, dois meios diferentes permitiram, por modos similares, obter figuras igualmente idênticas. Não se trata de dizer que isto tem de acontecer ou deve acontecer. A pintura feita a computador mostra diferenças formais advindas das técnica e intrínseca ao meio, mas a outra também não coincide com a realidade conhecida - um homem e um porco, em atitudes terminais, vindos não se sabe donde nem porquê, caíram ali, é uma espécie de metáfora que o pintor inventou. Toda a arte, de resto, passa quase sempre pelo imaginário, mesmo quando imita algum objecto que nos é próximo ou muito familiar. As semelhanças existem, inclusive quando não as sentimos logo. Mas as diferenças de meio para meio, de modo para modo, são incontroláveis. Cada meio tem uma identidade própria

quinta-feira, julho 06, 2006

continuação da postagem anterior

cenário interior









TERCEIRO EPISÓDIO
fornatação e sentido

Voltando propriamente à telenovela (em geral) como tema que nos aproximou da televisão e das pretensões dogmatizantes que a têm envolvido, e apesar da colonização brasileira, devemos primeiro reconhecer que nos últimos anos a ficção novelística neste domínio, incluindo algumas séries de teor histórico e de época, subiram exponencialmente de nível. Provou-se que a formação no plano da representação natural não era nenhum bicho de sete cabeças e que a língua portuguesa tem potencialidades expressivas de bom e variável recorte. Por outro lado, o enquadramento dos técnicos nestas exigências, desde a qualidade do registo à orientação lumínica ou ao desenho e construção dos cenários de permanência, alcançou patamares de verdadeira relevância profissional. A vaga de actores jovens tem mostrado como havia sido necessário, desde há muito, a sua ancoragem nos cânones modernos desta actividade artística.
Muitos aspectos da revolução nas artes plásticas, durante o século XX, a par dos estudos científicos que a despoletaram, trouxeram claros benefícios ao domínio das outras artes. E aqui, a fim de os sintetizarmos a esta escala, teremos de optar (em contradição útil) por alguns termos daquele vocabulário sobre o qual se esboçaram reservas e os acertos possíveis.
1 Roteiro: na esteira dos brasileiros, os guionistas portugueses, salvo dois ou três casos de excepção, procuram ainda (certamente porque a produção quer audiências por essa via) as histórias de absurdos conflitos entre maus e bons, os monstros que armadilham a comunidade para tirar de cada sucesso importantes proveitos, as vinganças retorcidas, os loucos perigosos, a realidade interclassista a um nível sociologicamente difícil de verificar.
2 Edição rotineira: a composição das cenas, o seu desnvolvbimento e motivações espaciais, tropeçam com frequência num jeito maquinal (coisa já metida na concepção dos registos) e muitas vezes sobreponível entre três peças que estejam a ser emitidas numa espécie de bloco. As semelhanças formais daí resultantes alienam a leitura inventiva e obscurecem prestações intercalares de valor decisivo.
3 Ruído: a sobreposição à acção dos actores de um excessivo efeito de ambientação, concentração de elementos insignifiativos na cena, tudo isso compromete a clareza de direcção e desempenho dos personagens. No mesmo sentido, o entrechoque de canções ou músicas batidas com a voz dos actores, por vezes exactamente ao mesmo tempo, e até com um terceiro registo de som ambiental, a isso, como sabemos, chama-se ruído - e o ruído, excepto quando exemplarmente justificado pelas circunstâncias expressivas, impede, com largo prejuizo físico, psicológico ou conceptual, a apropriação clara da forma cénica e dos ses sentidos menos epidérmicos.
4 Ruído visual: excessos idênticos aos anteriores, não justificados quanto à realidade expressiva, adereços a mais, um «labirinto» capaz de comprometer o trabalho dos actores, deve ser evitável; e também hoje os designers e técnicos do embiente cénico conseguem por vezes conjugar de forma certa e calorosa os dados solicitados, como acontece com a casa do «professor João» na novela da TVI, «Dei-te Quase tudo». Aquele lugar tem a marca da passagem do tempo, tem os percursos ambíguos das velhas casas onde os livros e outras coisas ganham presença forte.
5 Iluminação: trata-se de um elemento estrutural da composição da cena e pode assim tornar verosímil, a certa hora do dia e da noite, o conjunto de coisas e seres. Durante muito tempo, porventura em consequência de limitações técnicas, oa brasileiros iluminavam as cenas das suas telenovelas por forma a que não percebíamos se elas se passavam de dia ou de noite. As passagens de iluminação não se distinguiam entre essas horas. Esta é uma questão hoje geralmente ultrapassada. Alé do mais, é preciso ter em conta que a luz, além de estrutural, assume um valor expressivo (e até simbólico) cujo manejo obriga a um particular tratemnto no espaço e no tempo.
6 Luz e expressão: como na pintura, no teatro, no cinema, a luz em televisão é, como vimos, um elemento estrutural absolutamente decisivo. Embora possa dar apenas consistência real ao cenário e aos personagens, ela pode, com toda a vantagem, ser utilizada em termos de subtileza numa linha poética de claro-escuro, acentuação maior ou menor do clima expressivo.
7 Lugares: para além de intrigas básicas ou impensáveis - a que a excelente capacidade actual dos actores confere alguma dignidade - limitações de concepção e talvez financeiras definem os lugares onde a acção decorre, casas, salas, quartos, escritórios, criando aí atmosferas pretensamente condizentes com os seus frequentadores, gestos, sensações, sentimentos; ora essa estreiteza e repetição das posturas técnicas ou de entradas e saídas, teatraliza a expressão. De resto, há quase sempre um ângulo morto que não nos é dado ver, dedicado ao dispositivo das câmaras e justificado na rapidez de produção. O espectador confronta-se com os mesmos sítios, os mesmos ângulos, aproximações ou mediações, ao ponto e se tornar possível, a um espectador avisado sobre a gramática fílmica, predizer, diante de um plano, qual o tipo de plano seguinte, e de quem e observado donde.
Não façamos de notas como estas qualquer esboço académico de uma parte desses manuais que circulam entre nós sobre esta matéria. Gostaria que estes pontos de vista, servindo eventuais debates, pudessem iniciar o nosso juízo crítico perante um produto cujos vícios ainda não mataram uma importante direcção de actores - e o constante achamento deles.
A telenovela, de raizes escassas e de utilização comercial pela televisão usadas como expectaiva subjugante de audiências, pode contudo basear uma boa e frutuosa produção no género, com densidade artística e cultural. Mas, em vez de se acentuar a sua agressividade fácil, é preciso criar equilíbrios entre a tensão e distensão, rompendo com a rotina do enredo caseiro (estamos quase sempre dentro de casa) enquanto os exteriores, repetidos, separam algumas sequências de transição mais acentuada.

quarta-feira, julho 05, 2006

continuação da postagem anterior






a exploração do grande plano com
forte aproximação expressiva



SEGUNDO EPISÓDIO
linguagem e identidade

O vocabulário qualificativo usado e desenvolvido na área da linguística estendeu-se, não por culpa dos seus cultores, a um significativo número de campos artísticos, o que lhes conferiu estatuto científico, mais afinidade entre os diversos modos de formar, do desenho ao cinema, da pintura à televisão. Passou a ser usual falar-se de linguagem gráfica ou de discurso pitórico. Sendo certo que esta adopção de terminologias se usou noutros tempos e com menos rigor, a verdade é que ela cria pontes funcionais entre disciplinas, entre meios de expressão cuja nomenclatura tem outro intuito. O que parece certo é que esta trasladação linguística acaba com frequência por desaguar num oceano poluído, onde podemos a todo o momento encalhar em coisas estranhos vogando nas águas. A contingência destas permutas e pequenos desastres (uma espécie de globalização nas designações do mundo das artes) parece irreversível, e é bom dizer que, salvo casos patéticos, as escolhas daqui derivadas, bem como as suas aplicações, não tornaram redutoras nem a essência de cada campo nem a sua legibilidade analítica.
Com a televisão - e a novelística que produz- este problema seguiu um caminho idêntico: fala-se sem pudor no discurso televisivo e no maior ou menor número das suas adjectivações. Mas a televisão, em sentido corrente, e porque nela se resolvem, com efeito, exemplos de comunicação articulada temporalmente, suporta bem o entendimento de linguagem, embora se trate de um meio, muito rico de efeitos, que alberga e difunde várias linguagens do domínio audiovisual. A simplificação da televisão enquanto linguagem já não é tão líquido na pintura, ou em formas de expressão de suporte fixo, intemporais, sem uma linha narrativa digna desse nome, mesmo quando o adopta, tradutora de valores do espaço mas imóvel durante toda a sua contemplação, a despeito dos sentidos de tempo e de mobilidade visual ou formal que os espectadores podem eventualmente accionar na sua deriva. E entretanto deve dizer-se que uma das grandes questões da televisão é o factor tempo, algo que se torna determinante no espírito da telenovela. Tempo de programas, tempo e ritmo das formas, tudo aquilo que os aficcionados chamam linguagem específica da televisão. Claro que, dada a relação aparelho/recepção, algumas questões se colocam: o uso mais frequente dos grande e médio planos, a menor percentagem de planos gerais, com menos incidência estatística no caso das novelas quando estas se desenrolam sobretudo no interior de arquitecturas e similares. Os mesmos aficionados defendem, para a narrativa de televisão, um ritmo veloz, a curta duração dos planos, a dinâmica e possível simplicidade da história, a clareza do discurso.
Uma dogmatização deste género não pode aplicar-se indiferentemente ao mundo das novelas: nesse caso, tudo conta como nas outras artes narrativas, a vertigem não é regra, a curta duração dos planos só se aplica á funcionalidade do discurso, o tempo tem de resultar psicologicamente de tudo o que interessa aos temas e aos assuntos, ao sentido de tudo isso. A viagem de um personagem num elevador, pronto a saltar no andar que escolheu, disparando o seu revolver, é psicologicamente mais longa se o realizador estudar e pretender transmitir a expectativa e a ansiedade da situação. Uma viagem dessas, mas de regresso e se nada aconteceu, pode parecer calma e curta, mas todos sabemos que o elevador leva o mesmo tempo tanto num caso como no outro.
Fora da problemática da novela (coloquemo-nos aí, por instantes) tudo na televisão gira à volta da publicidade: um dos maiores inventos do século XX, na comunicação auciovisual, só funciona com toneladas de publicidade, na lógica selvagem dos mercados incontrolados, sob a ditadura alucinante das audiências (todas manipuladas), enquanto os «responsáveis» por cada estação insistem (sábios) que a grande menoridade dos conteúdos corresponde apenas ao gosto do público, o que grosseiramente é falso. As escolhas do público sobem e descem, nunca evoluindo, em função de necessidades geradas de fora, são conquistadas pelos mais básicos truques de expectativa e apelo ao nosso plano animal. Está demonstrado que a publicação de duas telenovelas em paralelo, sem recurso à psicopatia, funcionam junto do público, a seu tempo, com maior apelo pela de melhor nível geral, da produção à realização, actores, intencionalidade profunda, grandeza humana dos personagens. O público sai facilmente da desnecessidade com que somos brindados todos os dias e deixa-se conquistar por outros produtos contrariamente de qualidade insofismável. Como no cinema, onde um filme de acção pode estar cravado de milhares de planos curtíssimos, enquanto outro, reflexivo e tematicamente mais difícil, pode decorrer com planos por vezes de grande duração e ser louvado. Cuiriosamente, desde séries televisivas («O Pão que o Diabo Amassou») até filmes longos que já passaram na televisão (Bergman e Tarkosky, por exemplo) contra os quais não consta que tenha havido levantamento de massas. Todos sabemos, de resto, que o cinismo dos roteiristas de programação televisiva se empanham em publicar grandes obras do património fílmico da humanidade, e mesmo teatro sério, a partir da madrugada, frequentemente entre as 24 e 1,30 horas.
O problema, para a educação dentro e fora da Escola, é esse: a televisão, podendo ser por natureza um meio de linguagem autêntico, pedagógico e cultural, ainda não conquistou, vivendo em permanente competição de subprodutos, a sua verdadeira identidade.

A PROPÓSITO DA TELENOVELA


PRIMEIRO EPISÓDIO
caracterização do meio e novelística

A telenovela é uma formulação audiovisual, do âmbito ficcionista, operada tecnologicamente em suporte vídeo ou vídeo digital, organizando-se perante o espectador em episódios diários, de cerca de trinta a quarenta minutos cada, e cujo conteúdo rola muito na área do entretenimento, narrando histórias de maior ou menor densidade expressiva, quer no campo da comédia, quer no espaço das efabulações dramáticas. Hoje puplica-se, quase exclusivamente, na televisão. As origens deste género de obra têm muitas vertentes, mas entre nós ela remonta à chamada literatura de cordel, em fascículos e por vezes ilustrada, que chegava ao público em assinatura e segundo determinadas cadências temporais. A banda desenhada de maior fidelidade à sequência e ao modelo do «ecrã» teve alguns autores que a aproximaram da ideia de telenovela, mas nunca tanto, obviamente, pela natureza dos conteúdos, entre cortes. Por outro lado, as novelas radiofónicas, mais ou menos realistas e com desenvolvimento em sequência, incluindo as mudanças de plano, mudanças de lugar e de tempo, publicadas dia a dia ou com intervalos pequenos, empolgou muita gente, mesmo quando os seus temas não passavam de paixonetas e intrigas opacas, em geral idiotas.

segunda-feira, julho 03, 2006

recado do autor


O meu texto «NOMADISMO E AVALIAÇÃO DOS PROFESSORES» suscitou, junto de colegas e amigos uma avaliação positiva e um protesto sobre a extensão do mesmo. Alguns, mais rodados nestas coisas e na doutrina que já se sacode em ciência sobre a linguagem do blogue, lembraram-me do problema poposto pela televisão e da necessidade da sua linguagem contar com especificidades inalienáveis. «A dinâmica intrínseca da televisão obriga ao encurtamento dos planos e a uma especial montagem dos planos». Este equívoco é velho. Dizia um realizador de televisão americano que, nos audiovisuais, os princípios formadores da linguagem são idênticos e por isso, entre tais meios, os discursos flutuavam em inerente semelhança.»
A verdade é que o blogue é um espaço pessoal de reflexão e comunicação, pode suportar textos mais ou menos longos, pequenas notas, diários, avisos aos combóios, comportando imagem como reprodução de várias fontes. Em defesa do meu texto, direi: aceito que ele não esteja de acordo com as normas da globalização, mas o meu intuito é o de, no tempo real, defender certas ideias sintetizadas no título.