sábado, dezembro 30, 2006

NOTÍCIA SOBRE A AULA EXTRA





AULAextra

Aula extra foi o nome atribuído à exposição homenageando antigos professores da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Belo trabalho instalador num pavilhão rectilíneo, em esferovite. Uma quantidade de obras de qualidade apreciável, demonstrando como a passagem do tempo tem alterado os meios e os modos de formar, entre várias gerações e autores de cunho actual, representativos do processo contemporâneo português. Obras apelativas que muitos tentaram esquecer ou fazer esquecer. Na inauguração, aliás concorrida, faltava a comunicaçlão social, excepto um solitário câmara man que deve ter filmado durante três minutos. Parece que um canal de televisão dedicou ao acontecimento cerca de 30 segundos.

sexta-feira, dezembro 29, 2006

JANELAS PARA UM MEMORIAL DA INDÚSTRIA CORTICEIRA

fotografias

de Rocha de Sousa





AS JANELAS DO TESTEMUNHO

MEMORIAL DA INDÚSTRIA CORTICEIRA

AS BARCAÇAS FLUVIAIS

AS MIGRAÇÕES DOLOROSAS






As ruas ribeirinhas da pequena cidade do sul, tortuosas, recebiam as grandes vias verticais, radiantes, que desciam o monte arábico. Entre camiões velhos e artesanais carros de tracção aninal, os assalariáveis deambulavam por ali, horas a fio, à espera das barcaças que subiam o rio e vinham carregar fardos de aparas de cortiça. Portugal tem sido o maior produtor dessa matéria vegetal, em quantidade e qualidade. Fechado à exportação do produto virgem, a fim de segurar uma exclusividade transfirmadora, o país retirava deste sector parte importante das suas receitas, rolhas, bóias para redes de pesca, placas para a feitua de tapetes de banho, ariculáveis. Mas a grande concentração de operários, cerca de cinco mil, pelo menos, criava ali um polo de tensão. Nem sequer os salários eram a questão maior deste espaço social.
Manhosamente, oferecido a pressões exteriores e combatendo a força reivindicativa das unidades fabris do sul, o governo decretou no sentido de abrir ao mundo a exportação da cortiça em prancha, preciosidade arancada às árvores de nove em nove anos, com reservas de alternância durante esse tempo, e levada para os cargueiros que a esperavam perto das praias. As barcaças recnvertiam-se para este serviço, aliás praticamente igual, e apontavam, em vabas, aos costados dos navios. Por seu lado, os camiões, com ganhos relevantes, também transportavam as pranchas de cortiça, atadas em torre à caixa traseira do veículo, levando-a para o porto de Lisboa, mais seguro e operativo relativamente a estas operações de grande calado.

A crise fora desencadeada depressa, politicamente, e as fábricas assim acossadas começaram a arder, uma após outra. O material que detinham permitia provocar incêndios colossais, assombrosos, sem que se conseguisse descobrir de forma irrefutável a causa, um processo natural ou provocado. Tudo ardia a velocidade indiscritível e erfam chamados de todos os lados bombeiros para tais batalhas, não tanto a fim de apagarem o fogo mas de evitarem que ele saltasse para outras fábricas e casas em redor. Dias depois, com velhos rebuscando as ruinas fumegantes, os operários partiam para o note, para o Montijo e Alhos Vedros, entre outros sítios. Os donos da empresas deslocavam-nas, com o dinheiro do seguro, para lugares mais compatíveis com a competição dos custos de transporte. Entretanto, os trabalhadores migrados chamavam para junto de si a família, mulheres e filhos. Mas a sua vida profissional abreviava-se: hove bem depressa novos fogos e novas deslocações, fábricas repartidas em unidades menores, salários encolhidos. Na pequena cidade do sul, as ruas estavam desertas e nunca mais tocara o sino ao meio dia, nem se viram os grupos de trabalhadores deslocando-se então, na hora do almoço.

Os potugueses viveram longamente assim. Circularam amplamente nos mares e traziam para o país especiarias do Oriente. Mas não passavam desse lucro para o investimento na transformação e distribuição das novas matérias. Dois milhões de almas, apenas, fizeram o Brasil, usando tudo e todos os escravos possíveis.Quando se lê a história de Manaus, na área da borrecha, onde foi mesmo construído um teatro de ópera, com pedras trabalhadas idas de Lisboa, percebe-se que o sonho é grande demais para sobreviver aos poços que lhe seguem no tempo. Lá ficaram, no Brasil, cidadezinhas interiores, com a sua igrejinha, e engenhos e fazendas, porque, enquanto isso se fazia, o negócio intercalar absorvia toda a criação futura. Como os citrinos do Algarve, que os produtores, incapazes de criarem empresas absorventes da laranja local, bemcomo a sua distribuição, foram soçobrando aos intermediários e muitos deles vendem hoje nos mercados as pequenas e luzidias laranjas vindas de Espanha. Que farão eles, os espanhóis, das nossas belas laranjas?

Presos a uma crise, presos à cauda desta Europa mole e sonolenta de mordomias, os portugueses continuam a traficar: vem jogadores de futebol, com intermediários e tudo.

Rocha de Sousa


quarta-feira, dezembro 27, 2006

UMA GUERRA SEM INIMIGOS


dos jornais

Se, durante a longa guerra colonial, o nosso país registou, em catorze anos, cerca de nove mil mortos, imangine-se quantas perdas se registaram na antiga Metrópole, nas estradas, em igual período de tempo. Por outro lado, antes das auto-estradas (e mesmo com estas) as filas de trânsito foram alcançando densidades irreparáveis e muitos acidentes. Causas: cansados, os portugueses ouvem há dezenas de anos, invariavelmente, as mesmas -- velocidade excessiva, abuso do alcool, manobras perigosas.


Esta sinopse da tragédia revela-se claramente redutora e peca pela falta de uma análise mais exaustiva: em Portugal, por exemplo, é possível enfrentar uma ultrapassagem em rampa limpa, sem sinalização, que afinal, e de súbito, se trata de uma lomba e oferece hipóteses terríveis de desastre.


Os sinais dentro das localidades constituem uma espécie de jogo do adivinha, labiríntinco, sem nexo, nem o devido escalonamento no sentido das saídas ou das entradas. Nas estradas os pecados institucionais são muitos: falta de sinalização, nenhuma razoabilidade das nuances de cada percurso. A velocidade máxima é única para todo o lado, quer num percurso de curvas, quer numa recta de oito quilómetros, aberta de ambos os lados.


E quanto à metodologia da polícia de trânsito, ao contrário do que se diz, a «prevenção» é feita de esperas, armadilhas mecânicas ou estratégicas. Parar. Vasculhar tudo. Criar tensão e nunca distensão. Radar, vídeo, carros disfarçados a duplicarem a infracção de quem perseguem. Além do mais, patrulhas estacionadas entre os arbustos, na berma da estrada, na modorra da tarde. Ao lado é o trânsito denso, os camiões e as filas de carros por quilómetros. Tudo isso ntraumatiza e leva facilmente o condutor a cometer erros. A polícia não tem que esperar ninguém, de radar na mão. A polícia tem que dispor de meios móveis (motas, por exemplo) para acompanhar o trânsito, o seu pulsar, decidindo quando deve desfazer uma fila, parando os camiões durante minutos e descomprimindo os ligeiros da excessiva pressão acumulada. Assim abrirá espaço e gestos soltos, evitando-se os disparos de irracionalidade dos condutores enlatados.


Aqueles carros estacionados, com agentes por ali, que levantam de tempos a tempos o sinal de paragem, são uma forma arcaica de exercer vigilância. O sinal de paragem usado assim é psicologicamente errado, simula a vontade totalitária, torna-se aleatório em demasia. Nada disso tem a ver com a vigilância e tratamento do trânsito rodoviário, nem com a necessidade de minimizar as estatísticas da morte. É preciso estudar toda esta problemática, a par dos traçados e outros aspectos das rodovias, acabando-se com as confusas explicações para a habitual carnificina.

APOCALIPSE NOW

quinta-feira, dezembro 21, 2006

PREFERÊNCIAS




Quero deixar aqui bem expressa a minha confiante admiração

por estes dois jornalistas e colonistas ou comentadores.

Quero declarar que a voz certa de Sousa Tavares

tanto nos alerta

seriamente para os bens e os males do mundo

como sobretudo a escrita de Clara Ferreira Alves

numa espécie de nomadismo antropológico e sociológico,

nos compromete através das suas crónicas na Única.

Digo assim a minha posição, num voluntarismo que a alguns

pode parecer mitificante ou político,

mas que se circuncreve ao olhar e à percepção

que tenho das coisas,

o gosto por elas, e também a viagem através da escrita

destas pessoas

invulgarmente apetrechadas no seu campo de trabalho.

A lucidez de ambas, passando pelo nosso crivo de avaliação,

convida-nos a melhorar a nossa própria prestação

nos meios e pelos instrumentos

onde e com que nos afirmamos.








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domingo, dezembro 17, 2006

AS NOITES DOS SEM TECTO



O que vemos aqui é apenas o que resta de uma sociedade profndamente marcada por processos de exclusão, cujas noites albergam milhares de pessoas sem tecto, os sem-abrigo, vidas inteiras dormindo nos recantos da arquitectura, sob a bruma das luzes ou a claridade das montras ainda acesas. As fotografias aqui propostas são da autoria de Paulo Alexandrino, a quais, entre outras, ilustraram um trabalho de entrevista a sem-abrigos desenvolvido por Carla Amaro. (revista do Diário de Notícias, 3 de Dezembro, 2006.

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A CÉU ABERTO

Jacinto achava soberba a reabilitação do Carlos ao livrar-se da dependência do álcool. A sua língua, enregelada pelas drogas, não deixava por isso de chalacear sobre o papel dos ricos nessa reconversão. Mas há códigos de honra entre esta gente da noite, os sem tecto, os sem-abrigo, o que implica a partilha de certos valores e bens -- a comida, por exemplo. Jacinto só leva a comida que lhe é distribuída «para evitar que uns comam duas ou três doses e outros nenhuma» Tem as suas exigências: «Este pão não é de hoje. E ouça lá, trouxe-me os pijamas que lhe pedi? Onde estão os cobertores casaco-cama que me prometeu na semana passada? Os que tina roubaram-me. A mim roubam-me tudo. Mas não estou para apanhar porrada dos meus semelhantes, já bastam os pontapés que às vezes levo dos putos ricos que saiem bêbados das discotecas. Que é isso do albergue. Já lhe disse que não me deixaram ficar nesse sítio com a desculpa de eu ter abandonado o programa de desabituação do consumo de álcool.Também não me quiseram nos Ascólicos Anónimos porque não gostavam que eu usasse nas reuniões a bomba da asma. Nunca mais lá pus os pés. Há vícios e vícios. No Intendente, contam-se pelos dedos os que não são viciados em heroína. O padre Henrique aparece por aí. Diz que a sua missão é tirar da rua os que puder. Mas os nossos traumas fazem com que gostemos destes cantinhos em pedra, sentimo-nos com mais liberdade. Que raio, o pão está mesmo duro. Eles pensam que, lá por não termos onde cair mortos, perdemos o paladar, comendo por comer, comendo tudo só para encher a barriga. Digo mesmo que alguns desses pãozinhos-de-leite que andam a dar-nos sopa, mais valia que se metessem nas casas deles, confortáveis e quentinhas. Como isto anda, é caso para lhe dizer: aproveitem as casinhas enquanto as têm. A mim já me tiraram tudo, só não me tiraram a vida. eAí a sonhora da máquina fotográfica o que pensa que anda a fazer. E aquele que escreve tudo o que digo? Vieram espreitar a pobreza alheia? Se calhar ainda a acham bonita, era só o que nos faltava. Ó minha senhora, para que quer saber a minha história? Vai resolver o meu problema? Arranjar-me um emprego? Vá-se lá embora que a minha miséria não interessa a ninguém,

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Esta recriação em torno da entrevista já referida respeita as frases citadas, embora aqui aglutinadas em forma de fala única como reforço da sua intenção expressiva e de testemunho.

3 de Dezembro de 2006

dois graus positivos







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segunda-feira, dezembro 11, 2006

PROJECTO K



O Cidadão, chamado ao Palácio, como o agrimensor do Castelo, em Kafka, era consultor do Projecto K. Mas, quando chegou ao Palácio, ninguém lhe respondeu, apesar da sua longa insistência. Usou as campainhas e o forte batente do portão mas, com efeito, não obteve resultados. Resolveu então descer o caminho até a aldeia, no sopé do monte, e foi sentar-se num café que por lá havia. Bebeu leite fresco, esperou o tempo que a paciência lhe consentiu e acabou por fazer uma primeira chamada para o número de telefone que lhe haviam confiado quando da solicitação dos seus serviços. Ao cabo de um ou dois minutos de espera sob a monótona repetição da campainha, retinindo renitente na distância, ninguém veio atender-lhe a chamada. Ficou surpreendido. Fumou um cigarro e esperou um pouco mais. Quando accionou o telefone pela segunda vez, pareceu-lhe que o toque era mais forte, e dispôs-se a falar. A campainha retinia de cinco em cinco segundos, obviamente remitente, e o tempo parecia uma toalha de àgua espalhando-se pelo chão do café, obrigando os freguese a sairem dos lugares, alcançando uma especie de palco onde havia igualmente mesas e um móvel antigo cheio de loiças. O cidadão esperava, desesperava, aterrado com o destino de quem o chamara e lhe dissera da urgência em tratar novos problemas do Projecto K. Pensava, ao fim de três horas de telefonemas, que vivia num Estado de Direito, beneficiando da liberdade própria do regime democrático, e isso conferia-lhe o poder, nestas circunstâncias, de retirar-se. Contudo, procurando achar um pouco de calma, voltou ao Palácio, premiu as campainhas com força e usou o batente do portão com grande veemência. Mesmo assim, nada obteve através dessa mudança no uso dos meios. Olhou para as câmaras de vigilância, imóveis, mas claramente apontadas ao lugar em que se encontrava. Pareciam mortas, as lentes estavam cheias de pó. Ancioso, o cidadão decidiu rever os dados que apontara, retirando da algibeira do casaco um pequeno maço de papéis, nos quais, logo na primeira folha, podia ver as notas que tomara durante a chamada do Palácio - o lugar, o dia e a hora, problemas ligados ao Projecto K. Em boa verdade, ele ignorava em que consistia tal projecto, quais seriam os seus objectivos finais, após anos e anos de trabalho sectorial, em construções principalmente de metal e betão, algo que se parecia, sob o papel e nas maquetas com as antigas refinarias do século XX. O seu trabalho, circunscrito a uma determina área de terras expropriadas, estava no entanto aparentemente ligada à energia de fusão, trabalho secreto, fraccionado para despistar os intuitos mais legíveis. Tudo começara nas fundas caves do Palácio, obra que parecia revestida por sucessivas reconstruções, evocando estranhamente a Idade Média. Paradoxalmente, o primeiro piso surgia bastante iluminado, paredes lisas, paredes brancas, espaço que contornava um grande suporte central de trabalho. Esse "cenário" ocupava pouca gente, apesar da sua amplitude, embora parte dos circunstantes fossem altas patentes militares, tratados com deferência, a par de professores, ciêntistas e muitos técnicos informáticos. Essa gente não primava por grande actividade, aparecia e desaparecia tomando notas, acrescentado aqui e além simulações nos módulos de trabalho e nos computadores portáteis espalhados pela mesa. O cidadão convocado era especializado em fisica das particulas, trabalhara em estudos de fusão atómica, mas ali pediam-lhe sobretudo que operasse cálculos do efeito de certas forças em modelos naturais minuciosamente elaborados à escala.

Naquele dia, suscitado cada vez mais pela importância de tudo o que podia abarcar relativamente ao trabalhos ali em curso, o cidadão decidiu permanecer mais tempo na zona e foi hospedar-se num pequeno hotel da aldeia, espécie de residêncial do século XX. Aí tomou um banho quente, procurando aliviar o corpo e o espírito, acedendo entretanto aos jornais do dia, aos noticiários da televisão, e dispondo-se finalmente a dormir na comodidade desta insólita solidão. Não deixou de telefonar, por vezes e de novo, para o Palácio. Não obtendo nenhum sinal desse lugar, resolveu dormir e esperar tranquilamente pela manhã. Mas não dormiu de forma satisfatória. Estava perplexo. Afinal desejava com impaciência que a luz do dia surgisse. Já estava sentado na cama quando o telefone, colocado sobre a mesa de cabeceira, tocou. O cidadão levantou rapidamente o auscultador e ouviu o recepcionista a anunciar-lhe uma chamada. Depois, do outro lado da linha, a voz de um homem solicitava-lhe que confirmasse com quem falava e disse depois, apenas:

"Diga-me o seu código, por favor".

"Não sei a que código se refere".

"O código de enquadramento no Projecto K".

O cidadão ficou supreendido.

"Mas eu não tenho esse código".

"Não tem? Que quer dizer com isso?"

"Que não tenho nenhum cartão de código respeitante ao Projecto K".

"Mas é a primeira vez que vem trabalhar no Projecto?"

"Não. Trabalho desde da primeira comissão."

Silêncio do outro lado da linha.

Alguém parecia ter tocado na porta. Só então ele acordou de uma noite agitada. Olhou em volta, com a graganta seca. Estava no quarto da sua casa e a mulher (o seu anjo da guarda, como ele a nomeava por vezes) trazia um tabuleiro com frutas e sumos, hábito que mantinha aos fins de semana, desde de sempre.

Rocha de Sousa