domingo, outubro 28, 2007

UM GANHADOR QUE NÃO QUER ENVELHECER

Jardim Gonçalves

O Comendador Marques Correia exprimiu a Jardim Gonçalves, em carta de 22 de Outubro de 2007 a perplexidade que o assaltara perante o clamor que se levantara contra aquele banqueiro inaposentável, clamor que se ficou a dever, pensa ele, às dívidas entretanto pagas (paternalmente pagas) contraídas por um filho algo aventureiro. Disse o Comendador que o mal estava em ter pago os 12.500.000 euros gastos pelo rapazola, o que não altera em nada a salgalhada que vai pelo BCP. O Comendador já não se lembra daqele tempo em que a idade de 70 anos levava à reforma compulsiva. E também não se lembra muito bem, presumo, daqueles senhores que começavam como paquetes e acabavam em gerentes, donde só saíam para o hospital ou para os Jerónimos. Este senhor, senhor Comendador, talvez seja o homem «que não devia pagar». Mas ele é um ganhador que não quer envelhecer.

sábado, outubro 27, 2007

ARTISTAS PORTUGUESES CONTEMPORÂNEOS I Maria João Franco

Seguindo um critério de publicar aqui, aleatoriamente, artistas portugueses contemporâneos, de qualidade reconhecida, recorremos hoje a pinturas recentes de Maria João Franco. Viúva do pintor Nelson Dias, cujo desenho de corpos atingira grande relevância expressiva, Maria João cerrou os dentes com a determinação de prolongar a memória da obra de Nelson, a par das suas pesquisas ainda conotáveis com aquele desenho, mas reivindicando junto de todos a sua identidade, a sensualidade dos corpos, a idea de pele, o rasgão das texturas, metamorfose do homem em bicho, à procura de um verdadeiro nome. A pintora não oscila na identidade institucional e na mesma verdade quanto às formas plásticas. Há um equilíbrio duro entre o ser da mulher e uma quase masculinidade na obra plástica. Por vezes, quando desenha, abre espaço às massas corporais, num claro escuro bem assumido, a superfície tratada com grande subileza de valores. Na pintura, este jeito de abstractizar as formas distingue-se segundo um idêntico calibre e balança para outros ritmos internos, gestuais e texturais. Todos esses materiais anunciam uma problemática para além do plano reico, sugerem a dor, o sofrimento, o grito panteista, o corpo trucidado, um expressionismo que parece anunciar a vontade de viver.
.

pinturas de Maria João Franco

terça-feira, outubro 23, 2007

JOGOS POUCO INOCENTES *

Rodrigo Guedes de Carvalho
Comecemos por uma questão que tem muito a ver com as perversões do sistema editorial e pouco a ver com a literatura: o sistema que consiste em fazer passar por literárias umas pequenas histórias, nas quais se agitam umas figuras astuciosas chamadas «personagens». Tais formas de representação mais ou menos derivadas de um realismo triunfante alimentam-se de ninharias sentimentais, de um psicologismo primário, ou então da reconstituição histórica. Esta fabricação de livros em larga escala e com grande alarido tornou-se bastante permiciosa a partir do momento em que colonizou o espaço público e forneceu uma «imagem» completamente inócua da literatura. Neste sistema, a literatura é exclusivamente o romance, e nada mais existe. Um sinal eloquente deste estado de coisas é a generalizada aberração gráfica das capas dos livros. A fotografia de tipo jornalístico com alguns maneirismos artísticos tornou-se regra e já começa a invadir as capas dos clássicos que vão sendo reeditados. Neste sistema, a figura demasiado pública de Rodrigo Guedes de Carvalho ocupa uma posição de risco - a do jornalista de televisão que escreve romances - na medida em que corresponde a um estereótipo do escritor destinado a um sucesso fácil, isto é, ao sucesso que, no campo literário, nunca se converte em«capital simbólico». Serve este excurso para dizer que Canário responde a exigências que o subtraem ao contexto demasiado «profano» de onde emerge e não se deixa incluir no vasto parque de atracções criado pelo sistema mediático editorial.
__________________________________
Este extracto do artigo «Jogos pouco inocentes» (revista Actual/Expresso) da autoria de António Guerreiro* aborda um problema cada vez mais grave no nehócio dos livros, roda de jogos e sorteios entre tráfico de influências, em que alguns talentos são ostensivamente espezinhados e outros, por lugar e circunstância, se situam no Sistema (em desordem) das editoras que se gabavam de descobrir qualidades e editar obras de referência. Neste livro, diz António Guerreiro, é muito visível o contraste entre aquilo de que o autor é capaz e os lugares onde vacila.

O ESTRANHO MUNDO DE FÜSSLI

Il Peccato Inseguito dala Morte

L'Incubo



Cerasmino e Huon Fuggono Davanti a Oberon

Il Fugitivo

Füssli é um autor pouco estudado e pouco abordado entre nós, neste pitoresco lugar de indolentes bizarros e cada vez mais litoral. Hnry Füssli, pintor suiço, de integração na escola inglesa, nasceu em Zurique, em 1741, e morreu em Londres, 1825. O seu pai (johan Kaspar Füssli) dedicava-se à pintura de retrato e à paisagem.
Füssli, que estivera votado à carreira eclesiástica, teve de abandonar cedo a sua terra natural e aportou a Berlim (1763), dedicando-se objectivamente à literatura. Dirigiu-se então para Inglaterra, ainda na perspectiva de desenvolver a prestação literária, mas, no seu contacto com Reynolds, ouviu deste um franco conselho no sentido de enveredar pela pintura. Mais tarde, com essa ideia a consolidar-se, demandou a Itália, como tantos nessa altura, optando por simplificar o seu nome, no trato social, para Fuseli. Foram nove anos de trabalho em Itália, onde estudou sobretudo a obra de Miguel Ângelo. Quando voltou a Inglaterra, em 1779, a conslidação da sua pintura era apreciável. Expôs em 1782 o seu famoso quadro «O Pesadelo». Foi eleito, anos mais tarde como sócio efectivo da Royal Academy. Também se dedicou ao ensino da pintura, na Academia, tornando-se director da Instituição em 1804.
Afinal Fuseli era verdadeiramente um autodidacta e houve que lhe apontasse a incapacidade de dominar de facto os princípios do desenho e da pintura. No entanto, o mérito da sua obra é inegável, apoiado sobretudo no poder do imaginário, aliás segundo a orientação cultural a que aderira e por uma forte expressão romântica. Curiosamente, Fuseli acaba por se opor a Reynolds, aproximando-se entretanto de William Blake, por óbvia percepção e desenvolvimento do movimento romântico. Ganhara popularidade, o que talvez se relacionasse com a sua cultura literária no âmbito de temas medievais, nomeadamente após a publicação de «O Castelo de Otranto» de Horace Walpole. Visionária, Fuseli, ainda à imagem de Blake, reitera a força de Miguel Ângelo e aproximou-se depois da obra de Milton, sobre o qual realizou grandes telas. A par disso, ou ao longo da sua prática da pintura, dedicou-se à gravura, num estilo enérgico e inventivo. O mundo de Fuseli caracteriza-se pela intensidade do imaginário, por configurações grandiosas e marcadas de estranheza, antecipando aspectos de miragens surreais e um peso entre o romanismo e o expressionismo. Teve discípulos que são, nas artes, figuras de referência.

N: apoio no Dicionário da Arte Universal /Ed E.Cor

quinta-feira, outubro 18, 2007

INCOMPARAVEL-MENTE

Benazir Bhutto

Foi considerada uma mulher muito corajosa. Benazir Bhutto, primeira-ministra do Paquistão há mais de 14 anos, foi deposta e reeleita mais tarde, considerando-se por isso «uma sobrevivente». Zulfikar Ali Butto, pai de Benazir, escolheu para a filha o nome de «incomparável». A sua trajectória privilegiada, sendo a irmã mais velha entre os outros filhos de Zulfikar, levou-a a concluir os estudos de Ciências Políticas e Filosofia, nas universidades de Harvard e Oxford, os quais acabou no fim dos anos 70. Nessa altura, o regresso à sua terra foi auspicioso, mas ela terá de passar por mais regressos. Antes disso, conferiram-lhe vários «títulos»: «mulher corajosa», «filha do destino», simplesmente «filha». Carachi é a sua terra natal e lá a esperam após 9 anos de exílio em Londres e Dubai (nada mal convenhamos), talvez milhares e milhares de pessoas. Este é mais um regresso (porventura problemático), mesmo tendo em conta a ideia dos habitantes da província de Sindh, se se considerar que ela aspira de novo ao poder. Há quem a entenda como «uma mulher corajosa, elegante e inteligente», mas há também quem a recorde como «uma grande desilusão enquanto primeira-ministra». Esta última questão também se relaciona, em parte, com a sociedade paquistanesa, muito polarizada e dividida entre os que amam esta mulher e os que a odeiam. O seu casamento, muito negociado pela mãe, não se pautou por uma escolha apaixonada. Casou em 1987, já famosa na política, com Asif Ali Ardari, um quase desconhecido para ela, praticante fundamentalista do pólo e vindo de um estatuto humilde. Este homem insistiu na proliferação de herdeiros e um dos seus «desportos» principais passava por coisas menos chiques do que o pólo -- era a corrupção. Benazir viajara nos anos 90, contra a opinião local, e dizia-se interessada em conhecer bem as relações internacionais, fundo imenso em que acabou por se enredar. Mas os paquistaneses deram-lhe o benefício da dúvida, desligando-a das penas aplicáveis por práticas menos recomendáveis. Voltou ao poder em 1996, dizem que tempestuosa e arrogante. Assumiu-se como o próprio Paquistão. Lembram outra vez, em 1996, a narração das aberrações, contratos, tráfico de todas as influências, casos trágicos da antiguidade e as intrigas dos impérios onde a traição e a volúpia do poder marcavam tudo. A sua prática nessa altura, contra as recomendações da Amnistia Internacional, após acusações de mortes nas prisões, assassinatos sumários, repressão relativamente à oposição, era condenada nas dimensões imponderáveis que alcançou. Quando deixou o poder de novo, em 1996, as aberrações, contratos, tráfico de todas as influências, escapam a uma narração nestas dimensões de espaço e tempo. A história torna-se difícil de sintetizar.É por isso que, como dizem os jornais, todo esse currículo (onde contam anos de prisão) deixa uma pergunta inquietante no ar: «quem é esta mulher que aterra hoje em Carachi?» É, dizem os que sabem, uma mulher muito diferente do que era em 1986. Nessa altura (pode ler-se no Público) tinha o ardor da juventude e voltava para desafiar um ditador. Agora volta mais uma vez, mas para se ligar a um outro. Citamos a sua biógrafa Christina Lamb: «Isto vai tornar difícil ela poder dizer que está a lutar pela democracia». A verdade é que este rosto ainda cuidado e reflectindo uma beleza mítica, um combate antigo, foi, como veremos a seguir, incorporado por outro, ou vingativo, ou arrogante e sem dúvida ávido pelo poder.

N: considerações apoiadas na imprensa do dia, 18.ou.07, em especial o Público.

DENTRO DO ROSTO

Jodie Foster
A ESTRANHA EM MIM

Este filme, tendo em vista os actores e os meios de produção entre Austrália/EU, podia tratar mais o estranho que, em certas circunstâncias, passa a viver, irreversivelmente, dentro de nós. Ou seja: poderia cuidar menos do efeito exterior, na transformação «vingativa», e sobretudo das sombras com que temos lidar, em silêncio. Jodie Foster, apesar de tudo, é uma actriz adequada para estes géneros de papéis, mas a natureza morfológica e fisionómica do seu rosto faz mais por ela do que o inegável talento que possui. No filme, o namorado é assassinado e ela fica gravemente ferida. Depois, a longa cura da personagem, digamos assim, porque algo passou para dentro dela, ficou habitada, como alguém a houvesse incorporado, numa espécie de posse do seu psiquismo.
Agora é que se deve dizer que esta ideia, apesar de habitar, inegavelmente, um respeitável filme, poderia ter sido trabalhada menos fisicamente -- a estranheza de um interior mudado, misterioso, incontornável. Mas o argumento (americanizado) coloca Erica a patrulhar as ruas, após ter comprado uma arma. De um ponto de partida profundo e independemente dos bons meios, dos bons actores, o espectáculo dessa outra vida que destroçou a natureza da rapariga teria ganho em escapar à via do mercado, ao desejo do sangue, à entrega a uma forma visual que tem meios para seduzir mas resulta por vezes redutora.

quarta-feira, outubro 17, 2007

A IDADE DAS TREVAS


CITAÇÃO


«A cena é tórrida, uma escultural estudante sueca convida o professor de arqueologia para jantar.Ao longo das aulas, a criatura já tinha espantado o professor com os seus dotes e generosos decotes. Durante a comezaina, a sensual nórdica olha nos olhos o professor e diz-lhe ter uma fantasia gastronómica. 'Quero fazer uma sopa de peixe com leite das minhas mamas', repetiu ela, como se dissesse a coisa mais natural do mundo. Colocou a mão no seio esquerdo e espremeu-o de modo tal que o mamilo espreitou pela borda do decote. 'Gostava de provar?' Tomás sentiu uma erecção gigantesca a formar-se-lhe nas calças.»
________________________________
Codex 632
Dizem os jornalistas da Focus (entre outros) que esta é, provavelmente, a passagem mais conhecida do livro Codex 632, do locutor José Rodrigues dos Santos. Os críticos, injustamente, chamaram-lhe a pior sena de amor de sempre. Alguns alvitram que o arqueólogo, que já conhecia a rapariga, naturalmente, tinha sobretudo uma predilecção pelas suas nádegas. Para o caso, tanto faz, estamos na Idade das Trevas, tempo em que a mediatização e a calculada provocação levam estes livros a vender 400.000 exemplares, o que dá bem a medida para onde caminhamos todos, embalados pela «fórmula do sucesso». Fala-se muitos das fortunas dos políticos e dos gestores, mas esta espécie de venda da alma (pré-literária) por tais processos deveria obrigar os editores a publicarem com um bocado de mais ética e pudor.
Aqui há dois meses, deixei numa editora de referência um original nos termos em que o editor dizia estar mais interessado. Tratara-me sempre com luxuosa simpatia e, não tendo coragem para publicar «Angola 61», teve pelo menos o mérito de propor a obra à extinta Contexto, ao Manuel de Brito, homem que percebeu que o texto, contando situações reais, era literariamente bom e por isso falível. Mas publicou com desvelo. Na outra editora, que mostrara preferir coisas mais ensaísticas, apresentei «A Culpa de Deus», logo recusado porque era complexo e tinha uma escrita difícil para o público. Sempre com a lembrança do ensaio, acabei por voltar áquela casa de grande zelo ensaístico (contabilístico por ter colaborado nas calculadas travessuras do Rodriges) e deixei lá a «Culpa de Deus», enfim publicado por gente mais ecológica (oferta com dedicatória) e uma carta propondo uma peça de carácter ensaístico, com trechos autobiográficos, «Coincidências Voluntárias», de acordo com o que sempre me tinha dito. Recebi dois dias depois o original devolvido e uma espécie de reprimenda: «você só me mete em sarilhos, este tipo de livros não se vende e ten hoje aqui uma casa com empregados cuja vida depende da empresa, a vida deles e dos filhos»...etc. «O senhor editor ainda me disse que os livros eram grandes, tinha lá tempo para ler, nem sequer o livro oferecido sabia se teria capacidade para o ler.»
O que é que se responde a uma carta destas? Quem é este senhor que uma vez me passeia pela editora, predisposto a publicar um livro muito elogiado por um professor da universidade de Los Angelos, e agora já nem lê, portanto está incapacitado de gerir uma editora, nem só de assessores se sustentam os deuses.
O meu caso é desconhecido (ou quase) excepto os livros que publiquei sem código nem evocações de Da Vinci. Mas a promiscuidade nesta área, o tráfico de infuências, as ideologias do dinheiro, tudo isso não vale um par de mamas. Mais valia republicar a tradução do Miller. Se a espectacularidade, a todos os níveis, afunda toda a boa poesia portuguesa, literatura, ensaio, música verdadeira, ciência, então é porque nem os 3% nos salva. Vale tudo, na Idade das Trevas.

terça-feira, outubro 09, 2007

A LONGA AGONIA DAS ESPÉCIES

revista Visão


Milhares e milhares de anos depois desta nossa época turbulenta, cheia de sinais, entre avisos e genocídios, a Terra, ameaçada no seu próprio corpo pelo aquecimento dos elementos da sua estrutura atmosféria e marítima, terá o seu declíneo marciano, amargamente recortada por continentes perdidos, mares secos, transformados em crateras, planícies e rochas abismais, enfim desertificada, sem vida animal ou mesmo vegetal, gretada como o indica a fotografia aqui publicada, um grande habitante das profundidades, quase de súbito sem condições de vida, morto e apodrecendo. Enquanto o tempo passa e os homens insistem num futuro da abundância, a verdade é outra, esconde-se nas florestas delapidadas, nota-se nas cento e trinta espécies de seres vivos que se extinguem por dia. Os próprios homens, apesar da sua sofisticação tecnológica, produz futilmente e deixa que avancem no espaço e no tempo novas doenças fatais, fruto de uma genética abalada em si mesma. Dezenas e dezenas de genes acusam a sua anomalia, criando agentes propícios a distúrbios muito graves, entre os quais Alzheimer parece um imenso castigo de Deus, apesar da Sua absurda Omnipresença. Sida, tuberculose, distúrbios arteriais, depressões, diabetes, cancro, obesidade -- e a fome que mata em lugares cujo suporte natural seria uma reserva futura inalienável, África, preciosidades roubadas por poucos, sem compaixão pelos próprios irmãos que abandonam, sob a crueldade de chefes tiranos, em campos de concentração, milhares e milhares de mortos todos os anos. Os sistemas ecológicos degradam-se e abortam, os rios passam sujos de terra, óleos, peixes mortos, sobrevivendo ainda à nossa volta, milhões de insectos cada vez mais vorazes.

Quantas toneladas de habitantes do oceano terá comido aquele pesado espécime, ali morto, apodrecido, picado de mosquitos do futuro?