quinta-feira, agosto 30, 2007

A GRANDEZA DA DÚVIDA

Madre Teresa de Calcutá

Esta mulher que ostentava frequentemente um sorriso, na sua aproximação aos grupos de humanos miseráveis, foi durante décadas dilacerada pela dor, pela dúvida, por uma solidão sem luz e sem a verdade de um convívio caloroso. Ao seu júbilo no entendimento de Cristo, seguiam-se muitas vez horas de angústia e de ausência. A caridade cristã é um domínio que se reveste de algumas obscuridades e que se confronta, todos os dias, com a aparente impossibilidade de minorar a miséria e o sofrimento em muitos pontos do mundo. Madre Teresa de Calcutá era conhecida como a «Santa dos Pobres» e foi-lhe conferido o Prémio Nobel da Paz em 11 de Dezembro de 1979. A sua obra humanitária, eventualmente discutível por alguns pragmatismos, é contudo de uma grandeza insofismável. Mas a sua entrega, longa e penosa, foi atravessada pelas dores da incerteza e do modo de como aceder a Deus. As cartas que escreveu e que havia pedido para serem destruídas após a sua morte, foram largamente conservadas pela Igreja e poderão, publicadas na biografia de Madre Teresa, servir de caminho de reflexão aos homens, sobretudo aos que se julgam pilares inabaláveis da prática diária do catolicismo. Quem julgava conhecer bem esta mulher, nos actos e nas palavras, tem hoje, no seu testemunho mais profundo, sinais dela num sentido por vezes semelhante ao drama do existencialismo nos anos cinquenta. «Como se um dos maiores ícones humanos dos últimos cem anos, cujos notáveis feitos parecem intrinsecamengte ligados à sua proximidade de Deus e que era habitualmente observada em silêncio e em oração, tanto pelos seus próximos como pelas câmaras de televisão, estivesse a viver em privado uma realidade espiritual muito diferente, uma paisagem árida da qual a divindade desaparecera» 1 Do léxico de Teresa de Calcutá fazem parte, numa inquietante autocontradição, palavras tão acutilantes e actuais como «secura», «escuridão», «tortura», «solidão». O sorriso, escreveu ela, é uma «máscara» ou «um manto que cobre tudo». Apesar do desenvolvimento das «Missionárias da Caridade» pelo mundo em geral, Madre Teresa interrogava-se, como que a sangrar: «Trabalho para quê? Se não há Deus não pode haver alma. Se não há alma, então Jesus Tu também não és verdade». Aqui aparece, em duas palavras apenas, a dúvida sobre a existência de Deus. Num documento assombroso, uma carta dirigida a Jesus, Teresa queixa-se de sua condição de sofrimento, de uma «agonia indescritível» E acrescenta: «Muitas perguntas sem resposta vivem dentro de mim com receio de as destapar ( por causa da blasfémia); se existe Deus, por favor perdoa-me. Quanto tento elevar os meus pensamentos ao Céu, há um vazio tão culpado que esses mesmos pensamentos regressam como facas e ferem a minha própria alma. Dizem-me que Deus me ama, mas a realidade da escuridão, da indiferença e do vazio, é tão grande que nada toca a minha alma. Terei cometido um erro em entregar-me ao Apelo do Sagrado Coração?1 Madre Teresa de Calcutá dirigiu ao reverendo Michael van der Peet, em Setembro de 1979, entre outras, as seguintes palavras: Jesus tem um amor muito especial por si. Contudo, em relação a mim o vazio e o silêncio é tão grande, que olho e não vejo, que escuto e não ouço (...) Na minha própria alma, sinto a terrível dor da sua perda. Sinto que Deus não me quer, que Deus não é Deus». Como se não existisse verdadadeiramente. Aos que ouvem assim esta mulher, a questão da vida, da morte e da salvação desfocam-se porventura na própria escuridão de cada um deles.

Madre Teresa de Calcutá morreu em 1997.

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1 Este texto foi trabalhado, além das citações, com as páginas dedicadas a Terese de Calcutá, pela «Visão», em 30 de Agosto de 2007

quarta-feira, agosto 29, 2007

A CRUCIFICAÇÃO PÓS-MODERNA DE JESUS


A Igreja Maná, para refazer o conceito de salvação («só em Jesus»), cartografou a sua postagem por terras de toda a nossa geografia e recrucificou-o segundo as novas tecnologias, em poster, sob a anunciação de que o «mundo está a acabar», tempo do Apocalipse, numa chuva de cartazes ilustrativos das destruições, catástrofes, pestes, guerras e outros males aterradores. Este cartaz rasgado pelos infiéis conservou a mensagem suficientemente legível, milagre certamente devido a Jesus, e o endereço electrónico de Maná, lugar virtual para onde as almas salvas poderão transmigrar, para o que bastará dedilhar www.igrejamana.com. Podem os homens pedir mais, desejar maior compaixão, agora que o sono tranquilo lhes está garantido numa outra vida verdadeira?

segunda-feira, agosto 27, 2007

PREPARANDO OS NOVOS DESCOBRIMENTOS

Endeavour acoplada à estação orbital

A nave de acesso orbital à estação que navega no espaço, em torno da terra, na qual se ensaiam projectos científicos e operações de cálculo para viagens tripuladas no cosmos, foi entretanto a Endeavour, um vai-vem com muitos anos de vida, algumas próteses e desenvolvimentos tecnológicos. Talvez seja este o seu último serviço. Novas naves estão projectadas e os russos fecharão uma das fases de construção da «plataforma», transportando para lá equipamento, módulos e técnicos astronautas de substituição. Tudo o que se passa nestas viagens, todo este mundo complexo, esperança no futuro, apoio amanhã de um planeta Terra em crise a vários níveis, tudo isso deveria ser amplamente divulgado, até onde fosse possível, como alerta didáctico para os jovens e fixação de novos objectivos, abertura a outras descobertas que desmontassem a situação de reféns da electrónica de consumo redutor que obstaculiza o sentido da invenção e aprofundamento do conhecimento do mundo.
Repare-se: se a televisão gasta trezentas horas mensais em reportagens sobre futebol, incluindo jogos, como não pensar que metade desse tempo poderia ser partilhado com a conquista do espaço e os seus ensinamentos, como referi atrás?
Os Estados Unidos da América e a Rússia (entretanto um pouco a Agência Europeia de Aeronáutica) têm unido esforços para construir a estação orbital, indispensável para futuras partidas sem tanta carga de combustível. Tal gesta lembra muito o que os portugueses fizeram para desbravar as rotas oceânicas e as terras em volta. Sabems que isso foi mais problemático e grandioso do que a ida à Lua ou estes projectos que também se apoiam numa noca cartografia das galáxias e corpos um dia semelhantes à Terra. Parece pretencioso falar assim, mas ao certo podemos dizer que o povo que levou a cabo a expensão marítima dispunha de dois milhões de pessoas, milhares de vezes menos do que os indivíduos hoje utilizáveis, sem contar com os recursos tecnológicos quase imeditoa a que podem recorrer. A descoberta humana do espaço é muito mais importante para o futuro do que se possa imaginar agora. Sem esse conhecimento e essa experiência morrerão muitos das alternativas de sobrevivência que o homem pode descobrir ou inventar.
Se a televisão gasta centenas de horas por mês a fim de transmitir relatos de futebol e programas inerentes a esse mundo, porque nãp partilhar metade desse tempo com programas de divulgação espacial e ensinamentos daí decorrenntes?

domingo, agosto 26, 2007

NA MORTE DE EDUARDO PRADO COELHO

fotografia de Daniel Mordzinky

devemos lutar sempre a fim de que figuras como
Eduardo Prado Coelho não sejam remetidas para o esquecimento

Eduardo Prado Coelho faleceu ontem, dia 26 de Agosto de 2007, por paragem cardíaca. Enfrentara ultimamente graves problemas de saúde com grande estoicismo e uma imparável prática da esperança. Acabara de entregar a sua última crónica, no Público, jornal onde escrevia há muitos anos e que lhe presta hoje uma comovente homenagem, sem palavras de circunstância e um perfil intelectual muito consistente. Pedro Mexia começa o seu artigo nomeando Eduardo Prado Coelho como o último crítico. Refere-se a um certo tipo de influência, ao prestígio, ao modo sereno como enfrentava os ódios e a relação complexa entre a vida universitária e a prestação de ensinamentos públicos, mediáticos, perante o desgaste de toda uma disponibilidade de espírito notável. Viera ao jornal também para falar de projectos: um regresso à coluna de crítica literária. Chamar-se-ia Sete Rosas Mais Tarde, inspirado em Celan. As suas crónicas tinham frequentemente um sabor poético, mesmo se a fala envolvia temas de natureza filosófica ou política. Esta morte não constituiu propriamente surpresa, dado os problemas de saúde que enfentara e a dificuldade em os superar, mas o peso da perda não é menor por isso. Vou sentir, com certeza, a falta da sua crónica, uma das primeiras coisas que lia no jornal. Era uma prosa que dava sabor especial à límgua portuguesa, a voz quase corrente e a invenção da presença de palavras inesperadas, um sobressalto, um ritmo cuja identidade não se desfocava nunca.
Eduardo Prado Coelho era filho de um dos nossos maiores ensaístas portugueses. Escrevia desde os tempos da faculdade, escreveu sempre até ontem, e oferece ao país uma obra polémica e lúcida, em cerca de vinte títulos, como O Reino Flutuannte e A Noite do Mundo. A sua versatilidade cultural permitia-lhe dar-nos essa reflexão sobre a literatura e o homem, a par de textos notáveis sobre cinema e alguns sobre a forma das artes plásticas. Na década de 80 escreveu acerca do «pós-modernismo», época em que melhor acertou o equilíbrio entre a densidade da escrita, a sensibilidade e o seu lado mais denso mas simultaneamente aberto à comuniação. Figura ao mesmo tempo amável e com apelo polémico, foi político e escritor, soube separar as águas, a honestidade a par da coragem perante situações mais difíceis. Neste sentido, o socialista Ferro Rodrigues afirma, referindo-se à época de 2002: «foi mais um intelectual na política do que um político na cultura.

quarta-feira, agosto 22, 2007

E ENTÃO JÁ NÃO SEREMOS VERDADEIRAMENTE OS FILHOS DA REVOLUÇÃO FRANCESA

Joseph Weiler

QUE REVOLUÇÃO NOS RESTA?

A entrevista que Joseph Weiler concedeu ao expresso, no dia 11 de Agosto, tritura-nos com uma linguagem sacudida e democraticamente aterradora. É preciso reflectir com ele, um homem especializado em Direito Europeu, mesmo que não seja, em rigor, um europeu -- segundo as considerações iniciais das jornalistas Cristina Peres e Luisa Meireles. Se não existe governo na União Europeia, porque «não existe nenhum momento na nossa vida cívica como cidadãos europeus», que fazemos? Há solução para isso?

Joseph Weiler: «Primeiro, temos de admitir o problema e não fingir que ele não existe, ou que as medidas previstas funcionam. Por exemplo, aumentar o poder do Parlamento Europeu. Sabemos que não é a solução completa. É engraçado, é um dos mais espectaculares erros sobre a integração europeia. Há cerca de 20 anos, o meu primeiro livro foi sobre o Parlamento Europeu, e escrevi na altura que a taxa de afluência às eleições era muito baixa. Não era surpreendente porque o PE não tem poder, então porque é que as pessoas iriam perder o seu tempo a votar? Previ -- e esse seria o meu erro mais espectacular -- que, à medida que o PE ganhasse poder real, a afluência às eleições aumentaria. Nos últimos 25 anos, ele foi ganhando imenso poder, tem hoje competência legislativa e poder de co-decisão com o Conselho, mas a taxa de afluência declina consistentemente. Mais poder e menos participação! As pessoas na Europa não parecem estar preocupadas, mas preocupa-me que elas não se preocupem. Isso mostra que já perderam muita sensibilidade cívica. A vida é boa, para quê preocupar-me? Sou um consumidor de resultados políticos, não um cidadão pró-activo.»

A União Europeia pode desaparecer?

Weiler: Não. Mas pode haver uma mudança profunda na maneira como pensamos em nós próprios. Veja um exemplo perigoso: na Grécia, as pessoas dão aos seus filhos nomes de Hector ou Helena e falam uma língua que se parece com o grego antigo. Mas não existe conexão entre esta gente e a cultura da Antiguidade. O mesmo se passa no Egipto, não existe nenhuma relação entre a sociedade egípcia actual e a grande civilização dos faraós. O perigo não é que a União Europeia desapareça, mas que continuemos a acreditar que somos filhos da Revolução Francesa. Não há uma conexão real com a herança do Iluminismo. A herança da Revolução Francesa é o Estado Republicano, o Estado dos cidadãos. Isso desaparecerá. Continuaremos a dizer as palavras, mas já não seremos verdadeiramente os filhos da Revolução Francesa. Este é o grande perigo e é trágico. O défice no processo de governança europeia contribui para isso.

sexta-feira, agosto 17, 2007

UMA MÁSCARA DE CORDAS, A OCIDENTE


O homem andava precariamente, com o rosto vendado por voltas de cordas, num aperto que simulava a sufocação. Estendia os braços, o homem, abria as mãos de forma branda, as palmas voltadas para cima, como se esperasse um aviso subtil e supremo da divindade acrediata por quase todos.
Arrastava os pés na poeira branca do caminho e atrás dele seguia muito povo, povo atónito, que nunca assistira a esta forma de castigo, martírio ou penitência. Cada vez havia mais gente, incluindo crianças que se aproximavam daquela criatura tão erstranhamente amordaçada, cega, ou nobre ou plebeia, porque os sinais de classe haviam sido trocados pelos carcereiros e o resto sujeito à chuva, à lama, ventos enfim aterradores de pó e cinzas. A região estava ocupada por contingentes militares, legiões de grande porte, logística e armamento, acorrentando uma boa parte da população que adorava Cristhus, um jovem supremo e subtil, orador enigmático, acabando por traí-lo perante a própia lassidão ou desinteresse das autoridades e pedindo a sua morte, o que aconteceu entre muitos outros casos menos relevantes. Não havia mais de três anos. Agora aquele homem com o rosto, os olhos e a boca bem apertados num abraço de cordas duras, espessas, oleadas em azeite já queimado.
«Este sim, este é o verdadeiro Cristhus, andou pela Galileia a apregoar a libertação dos povos e falando de um Pai invisível que espalhara muitas em diferentes moradas pelos confins da abóda celeste.»
«Quem é que te disse tais coisas, Eremias?
«O Senhor do Templo, aquele sacerdote que já tem mais de cem anos e que afirma a eternidade de Cristhus, o sangue derramado para nada. Por isso é que ele está, vagueia não se sabe para onde.»
«Acreditas tantgo na voz ensandecida do Senhor do Templo? Não há eternidade. Há apenas a cegueira.»
«Cristhus morreu diante de toda a gente, da própia mãe, da mulher e dos filhos. Mas essa é a dor dos homens comuns: Cristhus ressuscitou ao fim de três dias e desapareceu para sempre, julgou o povo. Aqueles que mais falavam com ele, ao entardecer, depois de uma refeição frugal, contaram histórias vividas assim e pensamentos perturbantes que ouviram da boca daquele companheiro».
Enquanto decorria esta conversa mal atada e sem sentido, entre dois caminhantes, uma coluna de guerreiros a cavalo aproximou-se do grupo, vinda em sentido contrário. A coluna parou junto do homem amarrado e o comandante, com escudo de frente e uma espada erguida na vertical, num modo de quem quer dar a conhecer-se, indagando gestualmente que gente era aquela. Olhou intensamente o homem que se arrastava pelo efeito das cordas, do calor e do pó, e perguntou:
«Quem és tu? Que fazes com esta gente, a caminho do deserto?»
O provácel Cristhus disse:
«Eu não tenho nome senhor. Não conheci família e vivi, por caridade, em mosteiros que se erguem nas montanhas a Leste.»
«Mas então comandas assim essa pobre canalha que se acumula atrás de ti?»
«Não, senhor, não comando ninguém e só conheço meia dúzia desses companheiros.?
«Mas alguma coisa fazem em conjunto, assim, numa marcha arrastada?»
«Que eu saiba, não, nada. Eles estão aí porque me seguem, apenas isso. Eu sei apenas que vou para diante, para ocidente.»
O comandante da coluna pareceu incomodado com tanta evasiva. Disse entre dentes:
«Tudo isso é muito evasivo.»
O homem com o rosto coberto de cordas, concordou assim:
«Tem toda a razão, senhor. Tudo é evasivo porque o mundo não tem limites não sabemos quem somos.»
Do alto do cavalo, para onde voltara a trepar, o comandante escarneceu:
«Sois tolo, nada mais. E para que servem essas cordas que te apertam a cabeça?»
«Não são cordas, senhor, são espinhos».

quarta-feira, agosto 15, 2007

ESTE É O SEU MUNDO

Este é o título que a revista «Visão» aplicou à exposição com as melhores imagens do fotojornalismo mundial e nacional feitas em 2006. Esta aproximação de espaços que se contradizem entre si, pela guerra, pela miséria, pela riqueza, pelas doenças avassaladoras, é realizada no Museu da Electricidade, em Lisboa. Na abertuta do texto daquela revista (sobre este acontecimento) pode ler-se «o universal é o local sem paredes», indicação original e poderosa, de Miguel Torga, um dos nossos maiores poetas de sempre, cujo centenário do nascimento se comemora por estes dias e a cuja primeira manifestação faltaram quase todas as personalidades representativas do Governo e da cultura.
A fotografia é um dos mais importantes meios de expressão, tecnologicamente muito avançada, de que o homem do século XXI pode dispor, como já aconteceu no século anterior. Mas entretanto os meios avançaram substancialmente, não propriamente superando o sistema analógico no seu melhor, mas permitindo velocidade e concentração de registos. A objectividade parecia ser garantida pela aparente verdade de cada imagem, outrora como agora, colocando o mundo decisivamente sob os olhos do espectador. Contudo, como aliás aconteceu com outras artes, a veracidade (ou grau de reconhecimento das coisas) foi sofrendo idênticas distorções em nome de uma recriação do visível, também ela, a fotografia, permitindo metamorfoses inesperadas, acentuações, nivelamentos, o próprio trabalho de encobrimento de certas verdades, apesar de garantir outras por conveniência estética, cultural ou politica. Seja como for, por este meio podemos, mais do que em diversos casos de mobilidade, acompanhar com alguma imparcialidade e acesso a lugares remotos de grande parte do planeta em que vivemos.
A 50ª edição da «World Press Foto» recebeu a concurso 78083 imagem de 44600 fotógrafos oriundos de 124 países. O Prémio Fotojornalismo (de entre 6100 fotografias de 215 autores. A fotografia aqui publicada refere-se ao primeiro prémio na categoria de acontecimento/Notícias.

terça-feira, agosto 14, 2007

aos homens que souberam esperar pela manhã

Não, tu não sabes nada. Basta de palavras sem sentido. Tu não o conheceste, eras mais velho, sonhavas com as estrelas do cinema e, bem vistas as coisas, nem percebias que o cinema estava muito para lá da sua ostentação mediática. Quando nos levaram para Caxias, naquelas carrinhas pretas, depois de uma terrível viagem de combóio, tinhamos chegado para férias, a barba mal aflorava na pele do nosso rosto, retratos perdidos, gavetas que hoje podemos esvaziar sem que nelas encontremos um único sinal desses pobres adolescentes acabados de aceder à Universidade. O teu irmão sabia muito bem o que fazia, os riscos que corria, mas assumia sobretudo o traço ético das relações, a solidariedade nas conversas murmuradas ao cair da noite. Estás enganado, ele nunca aceitou verdadeiros contactos com o Partido. Se deixaste de o ver é porque te remeteste para as festas da tua tia, beneficiando de boas instalações, melhores contactos, numa clara ambição de chegar à magistratura, presumindo facilidades nos estudos e uma carreira na estrada dos priveligiados. Não? Não como? A tua participação nas defesas do Estado Novo foram meros acenos de brincar, a fatiota de estudante cravejada de marcas e rótulos sem origem? Não te lembras de nada melindroso, nem dos lusitos, nem dos actores que iriam reger o teu perfil, a tua pose de Estado, porque atiravas os sumários para o caixote do lixo, com displicência? Eras muito mais velho do que nós e andavas de cara sem barba, talvez por falta de hormonas masculinas ou pelos cremes que usavas no casino da praia. Eu sei, tenho a ideia precisa da distância que nos separava em férias ou em Lisboa. Isso não te garante o direito de apontares ao teu irmão, pelas ideias que o moviam, a repetição de que apenas recebias ordens superiores e que, de face obediente, aquele tribunal de normas específicas era tão legítimo como qualquer outro. Claro que não era, nem passava pela tua natural cara de efebo, apesar das honras e distinções que te pouparam a muitos sacrifícios. A tia, sim. A ideia meio achada de um brasão ostentado pelos antepessados. Não tem nada a ver uma coisa com a outra? O que é que queres dizer com isso? Ah, pois claro, aceitaste uma oferta, eras mais velho, começaste primeiro a via da tribuna e a roda de doutores que cercavam o teu tio, ministro da ordem pública, senhor dos deslizes encobertos. O André não badalava liberdades e subversões, nada disso, mas é certo que tinha o direito de partilhar as suas ideias acerca do país e do mundo com os colegas, com os amigos de café. Nunca tivemos, enquanto estudantes, senão essas tertúlias de uma privacidade legítima e respeitável. Quando passaste a gerir o vértice do tribunal, juiz acima de toda a suspeita, ainda tiveste a grandeza de salvar aquele médico que tratava o teu pai. Bem sei que julgar pode não se relacionar com uma simples memória de camaradagem ou de agradecimento. Mas não foi esse o teu juizo sobre as falsas acusações que atingiram o teu irmão e o atiraram para uma fuga sem medida. O regime era assim e os tribunais nunca foram impolutos, ainda que, em certras circunstâncias, o pareçam. O julgamento do André foi uma farsa, depois de cair nas malhas da polícia política, de ser acusado de movimentos subversivos (eufemismo mal amanhado) e de pertencer ao Partido na clandestinidade. Não queres ouvir estes disparates? Há sempre mal entendidos que te deixam de fora. Claro que aceito que não sabias das diligências em torno daquele grupo da faculdade de Direito. Ainda por cima. Aceito, ou melhor, acredito; o que não altera a parte de responsabilidade que te coube no julgamento hipócrita e na sentença cujo destino (o Tarrafal) te fez, enfim, assinar como vencido. Vencido de quê, se a tua argumentação marcava definitivamente o André e podia ter as consequências que veio a ter? Choraste? Mas que lágrimas foram essas, se nem os deveres de família cumpriste. Nós temos as gavetas cheias de fotografias dessa época, imagens amareladas, cartografia dos lugares que ocupaste desde a infância até às visitas à velha casa do sul, duas janelas ainda voltadas para a praia, antes da venda aos empreiteiros do muro que nos separa do mar. Longe, nesse mesmo mar, no oceano sulcado pelos tais antepassados cuja história se coloriu de glória, o Tarrafal foi um arrebatador monumento à insanidade dos governantes, dos juizes especializados, da modernidade que o poder se esforçava por anunciar com os argumentos paradoxais da sua negação. O teu irmão não foi julgado com justiça, não teve verdadeiramente culpa formada. Partiu ao cair da noite para a ilha do campo de concentração, em nome da defesa do Estado. E nunca mais voltou. Enterrado no chão calcinado pelo sol, ele que suportara trinta dias de solidão escaldante, só regressou ao nosso lugar pela parte generosa com que a revolução de Abril salpicou alguns monumentos da resistência e as cabeças brancas que vogaram no seio da multidão daquele primeiro de Maio. Achas que não? Achas o quê? O saneamento provisório do teu cargo foi apenas um gesto simbólico. Só agora o André chegou ao cemitério da nossa terra, em urna metálica como os soldados que o precederam nas colónias, e nem uma página, uma carta, um selo de esperança nos resta como memória desse esquecimento ilegal e monstruoso. Ah, essa nostalgia de Salazar não fará dele um verdadeiro herói: foi tardiamente saudado pelos votos incautos de um ridículo concurso de televisão. Deixa lá a Comédia da Vida. Abre as tuas gavetas e arruma os escassos valores que lá encontrares.

sábado, agosto 11, 2007

PORTUGAL DESENVOLVIDO VISTO DO FUTURO




Dubai faz a admiração e o nojo de muita gente. Esta concepção dos espaços para milionários, em pleno mundo da crise, é sem dúvida aberrante e coloca os problemas do lazer e do território novamente na balança das avaliações. As mais atrevidas, luxuosas e caras ideias do espectáculo, dos exclusivismos do bem estar, tudo isso, exposto aos nossos olhos, obriga-nos a passar depressa a barreira dos mimetismos gulosos, a impossibilidade moral de tanta riqueza para nada, e confrontar-nos com esses desastres principais que tomaram conta do mundo e do próprio planeta, entre avalanches de gelo a desfazer-se e chuvas diluvianas que arrasam populações, alojamentos, estruturas logísticas, uma inquietude cósmica, perante a qual, a médio e longo prazos, a ideia da sofisticação urbanística, engenhos conquistados ao oceano, terão de soçobrar em nome da sobrevivência. As antecipações da ficção científica deverão, em certos casos, aparecer como profecias, embora todos saibamos que muitas dessas obras partem de conhecimentos consolidados, restando-lhes a verdade da matemática para dizer o resto dos números. Dubai pode ser uma experiência cheia de erros e de surpreendentes ofertas, feira de propósito para negociar cinicamente com os clientes ricos, susceptível de declarar plausível mercados assim, prontos para receber o dinheiro sujo dos prepotentes do mundo, daqueles que governam povos em estado de miséria no interior de uma redoma imensa, no fundo da qual pode cheirar a petróleo ou existirem caixas blindadas carregadas de diamantes e de armas.
Lembro-me da Idade Média: é como se estivesse a ver e a rever o anverso e o reverso de uma medalha, talvez da moedsa que nos controla. As obras megalómanas, ou simplesmente públicas, colidem com a urgência em mudar os objectivos das sociedades e das civilizações, não apenas segundo a estranha mistura de desenvolvimento com crescimento, aumentando tudo, desvastando o habitat, imaginando mais poder do que mais equilíbrio.
Relendo a importância da reflexão sobre esses problemas, Miguel Sousa Tavares escreveu no «Expresso» sobre vários aspectos desta vasta lista de questões partindo de notícias locais, provincianas e talvez aterradoras. A propósito de obras públicas e privadas (ou tudo à mistura, como também acontece), ele começou por noticiar: «O primeiro Ministro foi ao Algarve anunciar mais sete megaprojectos imobiliário-turísticos, os quais, segundo acusações do engº Macário Correia, determinaram o adiamento da entrada em vigor do PROTAL, o plano de ordenação do território aprovado pelo próprio Governo: é que, à luz das normas do plano, e se este já estiver em vigor, os projectos não poderiam ser aprovados, nem como PIN. Assim, movido pelas melhores intenções, o Governo dispõe-se a pôr alguma ordem no ''desenvolvimento'' do Algarve. Mas, movido ainda por melhores intenções, trata primeiro de aprovar aquilo que possa contrariar as suas próprias leis. Na ria de Alvor, uma das raras paisagens naturais ainda preservadas de Portugal, o primeiro ministro deleitou-se a ouvir sete empresários chegarem-se sucessivamente ao microfone para elogiar a grande compreensão demonstrada pelo Governo em prol do ''desenvolvimento''. E, imaginando já uma paisagem PIN, semeada de hotéis, golfes, vivendas e milhares de camas, onde antes só havia verde, Redes Natura, ''habitats'' protegidos por directivas europeias e ''obstáculos'' quejandos, José Sócrates contemplou este Portugal do futuro e, embevecido pela sua visão, exclamou: Haverá sempre quem faça críticas, mas é disto que o país precisa»
Agora direi eu: como é que este primeiro-ministro, cujo programa inicial apontado ao país parecia incluir uma concepção geral, e bem contextualizada, da tecnologia correctamente aplicada à construção equilibrada, vem agora confundir as normas e as coisas, aceitando Dubais absurdos para uma província cujos erros no território obrigariam a implodir pelo menos metade do caos estabelecido? Picasso sabia bem o que dizia ao afairmar: «Um quadro é uma soma de destruições». O assessor do senhor primeiro-ministro para os assuntos das artes não lhe falou destes temas? Apetece recorrer de novo a Sousa Tavares: «O Governo encomenda, os bancos financiam, os escritórios de advogados do sistema fazem os contratos, as construtoras constroem e os contribuintes pagam. O país está cheio de porches e ferraris que sairam directamente do nosso bolso para ajudar a ''desenvolver'' Portugal.»

segunda-feira, agosto 06, 2007

UM DOLOROSO ERRO DE CASTING


Margarida Vila Nova, jovem actriz de grande talento, hábil a utilizar o estudo que faz sobre as personagens, tanto na televisão como o teatro e no cinema, aceitou interpretar o papel de uma personagem baseada na ex-companheira de Pinto da Costa, a autora do livro bibliográfico Eu, Carolina. Carolina, de súbito personalidade do jet set do mundo do futebol, passou também e exibir o estatuto de vedeta reveladora das situações e quadro moral desse mundo, do presidente do Futebol Clube do Porto em particular. O livro não tem perfil literário de qualquer nível assinalável, mas, dada a especial cultura que os portugueses se habituram a linguajar, por falta de alimento verdadeiro, alcançou várias edições e tem sido alimento de muita casa alfacinha.
Por estranho que pareça, ou pelas razões da conquista popular, João Botelho, realizador de cinema, resolveu fazer um filme baseado naquele «romance» eticamente duvidoso. Sustentado rapidamente pelo nome de Margarida para interpretar a inenarrável Carolina, papel que aceitou e que estudou, com o profissionalismo de sempre, as vozes do burgo cruzaram-se de entusiasmo e desdém. Nada de importante, valha a verdade. Mas o realizador amenizou, desde logo, as razões de iras várias, dizendo que o filme não ilustrava nem a vida nem as contradições daquele casal, passando um pouco ao largo do livro e escavando algumas peripécias meramente ficcionistas, embora impulsionadas pelo fenómeno editorial já referido. Quando soube da aceitação do trabalho pela Margarida, uma sombra indecisa poassou pelo belo rosto da actriz. Mas compreendi a sua possibilidade de defesa, justamente no domínio do enquadramento estri-tamente profissional, inclusive como desafio aos seus méritos. Mas, por muito que pintem aquele rosto jovem, por muito que o vistam com a roupa da outra, por muito até que o desempenho da actriz seja notável (o que não é difícil imaginar) a sua escolha continuará a ser, do meu ponto de vista, um erro de casting. Há valores, raridades, sonhos até, que não são susceptíveis de apertar numa caixa pequena, envernizada para um contexto pouco credível, apesar dos méritos do realizador.

quarta-feira, agosto 01, 2007

NA MORTE DE MICHELANGELO ANTONIONI


Anteontem de manhã, quando morreu Ingmar Bergman, muitos cineastas reflectiram sobre a existência de Michelangelo como o último representante de uma era de ouro desta arte soberba.
Afinal, doze horas depois morria tranquilamente o realizador italiano cuja grandeza, no ser e na realidade inalienável, marcara o seu tempo e o pensamento humano de forma profunda. Por estranho que pareça, uma espécie de destino conferiu simultaneidade e sentido simbólico ou trágico à morte destes dois homens. Aqui os lembramos, sonhando com a perenidade da sua mensagem.
No jornal O Público, Inês Nadais acompanha-nos assim:
«Chamar-lhe o cineasta da incomunicabilidade era outra forma de lhe chamar ''cineasta burguês'' -- mas, para ele, em 1950, já não havia outro cinema a fazer: era mais importante parar nas personagens para ver o que é que, de tudo o que se passava (a guerra, o pós-guerra, coisas que eram importantes de mais para não terem deixado vestígios nas pessoas) . Antonioni pensava então: «Comecei assim a analisar as condições de aridez espiritual e de frieza moral da burguesia. Precisamente porque me parecia que nessa ausência de qualquer interesse além do seu, nesse estar totalmente virado para si próprio, sem um contraponto moral, parecia existir matéria suficientemente imporante para um exame» Do realizador em 1961.
A maneira despojada como olhava para o mudo era transportada para uma câmara lenta e fria: a prótese adequada para o cineasta indagar os estados de alheamento, a lassidão dos gestos, o modo indeciso, desprendido, como as pessoas se afundavam no espaço urbano, em parte abandonadas pela luz, mascarando o quotidiano e encobrindo a incerteza do desejo.




Antonioni com Wenders:
tendo perdido a fala, Michelangelo
realizou o seu último flme em
colaboração com aquele colega




Mónica Vitti
«Obberwald













Eclipse ____________ _____________ Zabink Point