sexta-feira, agosto 17, 2007

UMA MÁSCARA DE CORDAS, A OCIDENTE


O homem andava precariamente, com o rosto vendado por voltas de cordas, num aperto que simulava a sufocação. Estendia os braços, o homem, abria as mãos de forma branda, as palmas voltadas para cima, como se esperasse um aviso subtil e supremo da divindade acrediata por quase todos.
Arrastava os pés na poeira branca do caminho e atrás dele seguia muito povo, povo atónito, que nunca assistira a esta forma de castigo, martírio ou penitência. Cada vez havia mais gente, incluindo crianças que se aproximavam daquela criatura tão erstranhamente amordaçada, cega, ou nobre ou plebeia, porque os sinais de classe haviam sido trocados pelos carcereiros e o resto sujeito à chuva, à lama, ventos enfim aterradores de pó e cinzas. A região estava ocupada por contingentes militares, legiões de grande porte, logística e armamento, acorrentando uma boa parte da população que adorava Cristhus, um jovem supremo e subtil, orador enigmático, acabando por traí-lo perante a própia lassidão ou desinteresse das autoridades e pedindo a sua morte, o que aconteceu entre muitos outros casos menos relevantes. Não havia mais de três anos. Agora aquele homem com o rosto, os olhos e a boca bem apertados num abraço de cordas duras, espessas, oleadas em azeite já queimado.
«Este sim, este é o verdadeiro Cristhus, andou pela Galileia a apregoar a libertação dos povos e falando de um Pai invisível que espalhara muitas em diferentes moradas pelos confins da abóda celeste.»
«Quem é que te disse tais coisas, Eremias?
«O Senhor do Templo, aquele sacerdote que já tem mais de cem anos e que afirma a eternidade de Cristhus, o sangue derramado para nada. Por isso é que ele está, vagueia não se sabe para onde.»
«Acreditas tantgo na voz ensandecida do Senhor do Templo? Não há eternidade. Há apenas a cegueira.»
«Cristhus morreu diante de toda a gente, da própia mãe, da mulher e dos filhos. Mas essa é a dor dos homens comuns: Cristhus ressuscitou ao fim de três dias e desapareceu para sempre, julgou o povo. Aqueles que mais falavam com ele, ao entardecer, depois de uma refeição frugal, contaram histórias vividas assim e pensamentos perturbantes que ouviram da boca daquele companheiro».
Enquanto decorria esta conversa mal atada e sem sentido, entre dois caminhantes, uma coluna de guerreiros a cavalo aproximou-se do grupo, vinda em sentido contrário. A coluna parou junto do homem amarrado e o comandante, com escudo de frente e uma espada erguida na vertical, num modo de quem quer dar a conhecer-se, indagando gestualmente que gente era aquela. Olhou intensamente o homem que se arrastava pelo efeito das cordas, do calor e do pó, e perguntou:
«Quem és tu? Que fazes com esta gente, a caminho do deserto?»
O provácel Cristhus disse:
«Eu não tenho nome senhor. Não conheci família e vivi, por caridade, em mosteiros que se erguem nas montanhas a Leste.»
«Mas então comandas assim essa pobre canalha que se acumula atrás de ti?»
«Não, senhor, não comando ninguém e só conheço meia dúzia desses companheiros.?
«Mas alguma coisa fazem em conjunto, assim, numa marcha arrastada?»
«Que eu saiba, não, nada. Eles estão aí porque me seguem, apenas isso. Eu sei apenas que vou para diante, para ocidente.»
O comandante da coluna pareceu incomodado com tanta evasiva. Disse entre dentes:
«Tudo isso é muito evasivo.»
O homem com o rosto coberto de cordas, concordou assim:
«Tem toda a razão, senhor. Tudo é evasivo porque o mundo não tem limites não sabemos quem somos.»
Do alto do cavalo, para onde voltara a trepar, o comandante escarneceu:
«Sois tolo, nada mais. E para que servem essas cordas que te apertam a cabeça?»
«Não são cordas, senhor, são espinhos».

1 comentário:

P. Guerreiro disse...

O antagonismo de Cristhus em Cristhus “Eu não tenho nome senhor.”. Gente sem nada, gente com muito mas com pouco, gente que procura um nome, talvez Cristhus, talvez o homem com as cordas apertando-lhe a cabeça, talvez os espinhos, “Tudo é evasivo porque o mundo não tem limites, não sabemos quem somos”.