sábado, setembro 29, 2018

NA MORTE DE HELENA ALMEIDA

Helena Almeida



Em dias de convívio, sobretudo nas sessões relativas às exposições de arte, ouvi e vi muitas vezes esta nossa invulgar pintora (que fez depois da fotografia e da mancha um mundo inovado, performativo) a dizer as suas palavras, por vezes como que invisíveis na visibilidade fotografada de escolhas em performance. Tudo desde os tempos da sua beleza, feita de modo avançado, e certa altura geométrica e luminosa e contrastada. Escrevi textos sobre esta amiga cujo enleio no mundo, na companhia do marido, arquitecto Artur Rosa, fotógrafo emérito que logo se ligou às urgências expressivas da sua companheira, em poses fotográficas que se desdobravam em atitudes na pintura a fingir, o azul cuspido da boca, os relevos de dedos pressionando grandes panos brancos, esticados e submissos perante a luz. 
Helena Almeida levou muito longe (até à Bienal de Veneza) a mobilidade criadora do corpo no espaço e da pintura espalhada pelo chão ou derramando-se da mão direita, enquanto a pintora se dirigia para o fundo, o  nada de uma parede branca, por exemplo, o papel enganador no clássico devaneio sobre o estirador. Toda esta obra, conceptual, mordaz ou em paralítico, fez de Helena Almeida exemplo de achados muito raros, certa visão de um mundo construído em cenas reveladoras de uma ideia, invisíveis e de súbito redescobertas pelo nosso olhar, entre o desejo e a percepção. Era a magia sagaz dos enganos e das simulações, passando pela geometria do papel, telas, espaços frios. E nem sempre isso acontecia entre Helena e a tinta. A certa  altura os seus passos eram laterais a um pó negro, caindo rectilíneo no chão, escorregando dos dedos leves e dobrados. Pólvora, exclamou alguém. Podia ser terra fina. Mas a ideia da pólvora sublinhava o último minuto ao fundo, a explosão. Mas a sua morte não foi assim, A Natureza levou-a no dia 26 deste mês, Setembro, 2018. É sempre estranho que a luz de uma vida, feita de passos de descoberta e belas ocasionalidades, desapareça assim, por nada e para nada, embora seja nossa reflexão a que nos conduz à memória da vida, dos factos, das obras, sempre a envelhecer mas ao mesmo tempo voltando a anunciar, no quadro do futuro, o exemplo pronto a nos enlaçar em nossos próprios sonhos de amanhã.
Helena Almeida iniciou a sua carreira no final dos anos 60 e foi sem dúvida uma figura incontornável no panorama artístico português. É um caso bem singular no quadro desta nossa contemporaneidade, entre dois séculos e sempre certeira nas teses de cada imagem. A sua arte que mais passou pela fotografia e pelo gesto suspenso é um caso raro no plano da multiplicidade de ideias que a arte, no seu melhor jogo de enganos, nos oferece e nos orgulha além de todos os limites do pensamento. Um dia morremos e de nós fica o testamento de uma humanidade afinal refeita, dizendo a hora em gritos e silêncios de pedra.
Com o mais interior sentimento da vida e da morte, por Helena / Rocha de Sousa 

quarta-feira, maio 23, 2018

NA HORA EM QUE JÚLIO POMAR MORRE A SUA MAGNÍFICA OBRA FICA SEMPRE.

JÚLIO POMAR

O Almoço do Trolha

Mais tarde, Pomar, misturava modos de formar
trabalhando o gesto e a memória de imagens à
flor da pele ou emergindo da fúria

Não há espaço nem técnica para gravar aqui uma escrita digna deste grande artista, Júlio Pomar, um artista inteiro, que antecipava a História quer pela pintura quer pela escrita. E também pela palavra, em longas cenas de convívio, que todos apreciavam, ouvindo, contrapondo, abrindo caminhos que explicavam o seu modo de ver e de ser, a sua marcha pelas veredas da História, descobrindo a forma plástica em diversos sentidos de pausa e força, cavalos que corriam ao nosso encontro, carroças após um neo-realismo erudito, Maria da Fonte, o Almoço do Trolha, dezenas de anos depois sabendo traduzir essa estranha raiva que foi o Maio de 68 e um dia, em Lisboa, entre peles de animais nobres, as senhoras bidimensionais de Lisboa, moda de Paris, uma inquietude sensual que se plasmava ao jeito de um "jornal de parede".
«Celebrado por muitos como "o pintor mais imediatamente talentoso da sua geração e o mais brilhante dos cultores do neo-realismo de 45",  Júlio Pomar está referenciado em todas as exposições e publicações onde se faz o balanço da arte em Portugal desde a segunda Guerra Mundiial.»
Esta nota colhida na Internet deixa-me preso à memória que tenho desta cavaleiro do gesto e da mobilidade visual, entre cegueiras e deslumbramentos, cavando para além dos homens da terra e sabendo parar a tinta na grande batalha das misturas, metendo entre parêntesis uma coisa imóvel, celeste, um rosto de poeta, uma letra encontrada no caminho da sua energia mágica, tudo à mão (ou quase tudo) embora a sua fotografia dilatasse o próprio imaginário e mostrasse que a arte pode ser sempre imensa e esplendorosa sem o ferver actual das tecnologias que nos devoram a fingir que nos servem.   
                                                                                                                Rocha de Sousa 

quinta-feira, fevereiro 15, 2018

revista CRISTINA cancro REBECA


             
         QUE O AR SE PURIFIQUE SEMPRE




Cristina Reis, vedeta da TVI, arejada e gritante, apresentou ontem a revista de que é directora,
justamente chamada Cristina. Por muito que se estranhe, embora a artista se estivesse a  referir
a Rebeca, cantora portuguesa que sofreu de cancro e novamente, com estoicismo, foi atacada pela pela mesma doença, erguia e publicitava revista de hoje, CRISTINA, dizendo «está amanhã nas bancas. Penso que a hora e a situação não era para a forma usada pela Cristina Reis embora a saibamos descontraída. Mas ela iria gritar,  chamar de  longe por alguém, rir-se, num  velório ligado porventura a pessoa amiga e conhecida.
Ontem, no programa que regia, Cristina Reis dizia: «Fiquei sem chão. Era o último dia do ano  e abri o meu mail. Tinha uma mensagem da Rebeca, a cantora portuguesa, »Como é possível outro cancro? Ainda agora comecei a quimioterapia e, se estar sem cabelo é doloroso, os outros efeitos secundários são horríveis. As únicas pessoas que sabem são a minha família, alguns amigos próximos e agora tu».
A notícia é tratada com outras fotografias, na capa, no interior e dados sobre a cantora. Mas não haveria maneira de não se fazer (abertamente) publicidade à publicação, havendo a própria pessoa ou foto dentro da montagem? E se todos os pivots da TVI começarem a anunciar, entre parênteses, os seus paralelos profissionais? Discos, Livros, Trabalho num restaurante. Modas. Habilidades de alunos? Há aqui uma pontinha a falhar na deontologia. 
      Dizia um outro: «Não eeraaa  neeceesssáriiiio.»

A TELEVISÃO 
          NÃO NOS OBRIGA A NADA
                                    

segunda-feira, janeiro 08, 2018

PRECISAMOS DE UM MILAGRE

Sou um leitor assíduo de Clara Ferreira Alves. Quase não perco uma das suas crónicas no Expresso. No último número da revista, logo na primeira página como sempre, Clara brindou-nos com mais um belo texto que eu colocaria, nas minhas letras ou pinturas, com o já repetido título Desastres Principais. Ela repete o grito de uma sem abrigo de Nova Iorque, apelo brutal dito em plena rua sob uma temperatura de 23º negativos: "PRECISO DE UM MILAGRE" .
Depois de uma pungente narrativa sobre aquela cidade, ruas vazias  e cobertas de neve ou gelo; depois de abordar o problema odioso do comportamento dos ricos perante os mais pobres dos pobres; depois, ainda, de descrever os montes de cartão, peças de embalagens, restos de coisas desconhecidas, mantas, ruídos de sonos apavorados ou silêncios de gente ali dormindo (talvez tentando) e outros porventura já incapazes de respirar, Clara Ferreira Alves dá-nos a ver e a ouvir o grito de uma rapariga nova, envelhecida pelo terrível sofrimento desta vida sem abrigo, noites de inferno, tempo que só Deus poderia reconsiderar. 
O grito repetia-se: Preciso de um Milagre. Precisamos todos,  uns mais do que outros, à medida dos paradoxos e das conflitualidades do mundo  e dos   desastres principais que parecem estar prestes a expulsar a humanidade de  algum discernimento colectivo e por último do próprio planeta, pelo destino próprio e pela nossa ajuda demente.
Ainda cito o fim da crónica de Clara, porque esse direito lhe pertence e agora também a todos nós.

«Ninguém conseguiu ou quis resolver, ou tentou, o problema dos abandonados e vagabundos, os doentes mentais que Reagan resolveu despejar nas ruas e fechar os hospitais psiquiátricos, dos desempregados sem morada certa, dos drogados e alcoólicos, dos loucos de origem misteriosa, dos veteranos de guerra, dos negros, dos adolescentes e dos abusados sexualmente que fogem de casa, das mulheres violentadas e refugiadas nas ruas de todos os que cairam em desgraça  e escaparam pelas malhas do sistema. (...)  Muitos sem abrigo foram atirados para os subúrbios, despejados no tempo de Giuliani. Estão agora debaixo das pontes e nos vãos do Massachusetts ou de  New Jerssy. Estão, finalmente mortos».