quinta-feira, julho 30, 2009

MIA COUTO NÃO MIA MAS ESCREVINHA BEM BOM

Mia Couto

Mia Couto é um escritor Luso-Moçambicano, ou ao contrário, que viaja assiduamente em direcção a Lisboa e ao Brasil, mercantilizando a sua imagem e a sua gostosa escrita ou cortejando (no melhor sentido) intelectuais e professores de toda a parte. Os mais preciosistas garantem que o artista se trata de um dos nossos maiores escrevinhadores, desbebendo os vidros do Porto e canecando belas murraças que eu próprio já experimentei em Quelimane, logo logo e esófago enroladiço até cuspir, depois escrementando o almoço em finos cheiros azeverdes.
Aqui há uns meses, havia um certo número de bloguistas que partilhavam um jogo de palavras, as quais eram previamente propostas por um coordenador. Tratava-se de meter as palavras num contexto narrativo ou poético, mais ou menos inteligível. Fizemos um com palavras de Mia Couto, inseridas em «Cada Homem é Uma Raça» e passo ao exemplo possível:

«A miúda andava meigando pelos cantos, mas o pai estava atento, atrás do vento. Viviam na redondura das ilhas e a família era pouca. A Lauridinha gostava das cascas dos mariscos, mas o primo bebia muito e daí que a sala acabava por dar lugar à pontapesaria. As ilhas também são assim, com a maré da alma vaziando-se. A música fazia-lhes bem, aos ilhéus, todo o espaço se fabulava. E quando a morrinha prendia tudo e todos, aí pelo início da tarde, as pessoas entravam devagar, sacundindo gotas de água, todas parecendo tocadas de uma espessa sonolentidão.
De manhã, se o sol batia nas janelas, acontecia quase sempre a par de um verdadeiro chilreino.
Laurinda apressava-se, tinha que aproveitar o bom tempo, pensava me prossigo, e pouco depois voltava ao quarto.Raramente se punha a ruar, como as outras. Ía à missa, desatenta, sabia que o padre duvidava do seu joelhamento. Morrera-lhe o noivo, preferia visitar a campa para se lembrar do sabor do corpo dele. E contudo alguns choros, estremunhos. Mais tarde sonecava ali mesmo, agarrada às flores; e quando se levantava era como se sonambulassa, vaga, em deriva. E em casa, descasada, o espaço sofria de solistência. Os mais n0vos, amafengu, gingavam assim, entre a fome e a brancura. Havia um deles que sonhava com bula-bula, de uma casa onde vendiam ndoé, raranja, esperando pela voz do cocorico.

domingo, julho 26, 2009

AS ESCOLHAS DO PODER POR RETRATOS PRÉVIOS












divulgação do Expresso

Por muito que nos espante, as personalidades candidatas a primeiro ministro do próximo governo português são estas: um homem ainda novo, que nem parece ter sido tão flagelado como aconteceu em quase todo o seu mandato, agora em fim de festa, e uma senhora idosa, em pose de retrato e olhar de soslaio, simulando a bondade aristocrática da poupança e fina lisura de ambições. Dos outros nem se fala: inconstitucionalmente, os partidos tresmalhados, cada vez mais improvisados e improvisadores de altas prestações, mostram ao povo, ensandecido de pasmo, as criaturas indigitadas para se aconchegarem na cadeira do poder. São dois retratos, nada mais. Há mais partidos a concorrer às eleições legislativas, mas como ainda não estão perto desta linha de «alternância», palavreiam na Assembleia e por vezes formam com o PSD ou o PS coligações para maiorias ditas estabilizadoras.
Disseram-me agora que as figuras dos indigitados não deviam aparecer em primeiro lugar, a fim de se atenuar sacralizações apriorísticas. A força que ganhasse teria então possibilidades de propor o primeiro ministro e, com ele, um programa de governo. Assim, afadigam-se a gastar dinheiro, com muitas jogadas já jogadas, andam por tudo quanto é sítio, das feiras às praças públicas ou grandes auditórios, anunciando espalhafatosamente os «amanhãs que cantam», talvez usando palcos imensos, muito som e muita luz, com lugar para 40.000 pessoas, o que, feitas as contas, é menos do que o santificado futebol. Também me disseram que o Manuel Alegre (que já esteve à direita do PS e agora anda muito jubilado pela esquerda exterior ao Partido) não concorreu desta vez, gosta do seu Movimento e talvez esteja e preparar o salto para a Presidência da República, sem reparar que o nosso Durão Barroso é seu concorrente, para além de uma possível troca de madame Ferreira Leite com o europdeputado Rangel rangente. Ela ficaria na Presidência, espiolhando contas, boatos, desfalques, casos de corrupção, e a estudar a forma do rangente primeiro ministro vender ao exterior os submarinos do Portas, deixando cair o caso Freeport. A maldade dos Bancos está em banho maria, pica daqui, pica dali. Já há quem proponha a sua entrega, sem custos, aos dois milhões de pobres e desempregados, eles que tratem do espólio, restos, vendas, recebimentos.

sábado, julho 25, 2009

ENTRE A SOMBRA E O PARADOXO DAS MARCAS


Algum tempo depois do 25 de Abril de 74, aparentemente vários anos após aquele memorável Primeiro de Maio, mãos dadas e flores, canções de epopeia, Zeca Afonso ao amanhecer, começaram a emergir azedumes na força irracional dos desencontros, obscuras conflitualidades. Um fio de mágoa tocava o coração dos velhos, de alguns resistentes carregados de inocência, a tropa trotando pelas cidades em nome do PREC, ao dizer-se capaz de ajudar a «reconquistar» as coisas do povo, terra, casas, caminhos, o gado. Os latifundiários, diziam os novos comunistas, de casacos aos quadrados, têm de partilhar as terras com o processo revolucionário em curso, com os camponeses e as camponesas. As casas devolutas ocupam-se. As falsas fortunas, fugindo a más horas, nacionalizam-se, toda a banca e todas as fábricas, e quem o disse melhor o fez, arrastando dependências por todos os cantos do país. Houve a Fonte Luminosa, uma resistência com outro nome, enquanto novos partidos, à esquerda e à direita, se fundavam num cada vez maior afrontamento. Da extrema direita à extrema esquerda, 42 grupos procuravam expressão em conteúdos políticos quase todos gastos ao longo do século XX. O CDS, novíssimo à direita, era perseguido como os antigos homens da esquerda. O PCP, com Álvaro Cunhal, fazia uma estratégia institucional e opunha-se ao poder cada vez maior de Mário Soares e do PS. O PSD chamava-se PPD, altura em que perdeu, num sinistro desastre de avião o seu maior expoente, Sá Carneiro. Amaro da Costa, do CDS, também faleceu. Alguns nomes, riscados nas paredes, siglas e contra-siglas, produziam estranhas iconografias, testemunho da fragmentária existência dos partidos políticos. Esquerda, Direita, Centro e extremos, tudo isso se transformava em ansiedade conflituosa, incandescente. Houvera e havia pinturas parietais, muros cheios de riscos sem nexo ou ilustrações «didácticas» que a massa do povo mal aprendera.
Aí as temos, as letras, as siglas, PPD vandalizado com uma violenta suástica, enquanto um vagabundo, em certa vila do interior, se senta por baixo daquela simetria e limpa o nariz, indiferente, assimetricamente. Será este, ainda, o povo português? Este homem tinha vindo à praça, comera pevides e bebera um copo de três. Fazia calor, era um verão quente daqueles que os políticos inventaram. E então, sem nada saber de nada, nem da sua fome, o homem sentou-se no chão, por baixo daquilo, refrescando o corpo e a fervura do vinho. Uma verdadeira e cândida criança dos destinos anónimos.

sábado, julho 18, 2009

TER OU NÃO TER PISADO A LUA, EIS A QUESTÃO



A 20 de Julho de 1969, há portanto 40 anos, o astronauta americano Neil Amstrong pisava o chão poeirento da Lua. A frase que pronunciou, não sendo uma pérola inesquecível, entrou na História pela importância da viagem até ao nosso satélite natural, senhora de poetas e muitos enigmas. Ao assentar o pé naquela terra, e através da rádio, ouviu-se Neil dizer: «é um pequeno passo para o homem, um salto do gigante para a humanidade». Não sou um céptico relativamente a esta e outras alunagens do projecto Apollo (aqui o da Apollo 11), mas também não imagino que esta frase tenha sido espontânea: penso antes que foi pragmaticamente preparada e com a devida antecedência. Quase tudo o foi, o que de resto se justifica para um instante com tão elevado siginificado. Após uma viagem, com alguns amigos, a Peniche, voltámos tarde mas a tempo de poder organizar a recepção televisiva na hora avançada em que estava prevista. Para nós, os mais ligados culturalmente, a istória do evento, era imperioso não nos dispersarmos, o que nos levou a atrasar as verdadeiras chegadas a casa de cada um. E assim nos juntámos na casa de um colega, um salão grande ali para os lados da Estrada da Luz. Jantámos, conversámos, vimos televisão e ouvimos relatos de vários pontos do Globo. Mas quase toda a gente foi cedendo ao sono, deitando-se no chão e nos sofás da sala onde tínhamos ancorado. Contudo, eu e um amigo que estivera comigo em Angola, ficámos a pé, entre as notícias e a varanda, fumando de expectativa. E depois, acordando os outros, alinhámos os olhares e vimos. Vimos com espanto e uma pontinha de decepção. Porque a singeleza do sinal e outras imperfeições do tempo, retiravam grandeza e valo espectacular áquele plano fixo, salpicado de ruídos visuais e da rádio. Vista assim, a Lua era qualquer coisa como um campo de futebol pelado, o horizonte ali à mão. E isso fez-mos pensar no que teriam sido as primeiras e longas viagens marítimas dos nossos navegadores: o tempo todo, a tormenta e a fraqueza, mortos alguns, por vezes muitos, pelos caminhos do Oceano. Alguns meses mais tarde, um velho amigo dos tempos de escola, agora comunista ferrenho e anti-americano primário, sorria para as imagens coloridas do Projecto Apollo, artigo ilustrado numa revista de fundo. Era o primeiro céptico sobre o assunto com quem podia conversar: segundo ele, nada daquilo tinmha acontecido, os americanos, para acertarem a competição com os russos, haviam encenado toda a viagem numa base remota, creio que no Estado do Nevada. Para nós, crentes, parecia mais difícil simular tanta coisa complexa do que ir à Lua. É verdade que houve depois filmes (de ficção) abordando directamente a questão. Um deles era exactamente como descrevera o meu amigo da esquerda rude. Tratava-se de uma obra vulgar, mas de absoluta verosimilhança cénica, na NASA, no espaço, na alunagem, nos procedimentos que entretanto se tornaram bem histórico e cultural de todos nós. A certa altura, na obra fílmica, um técnico do rastreio rádio, julga perceber que o sinal rádio não lhe chegava do espaço, antes de perto da terra ou dela mesma. O técnico foi bem depressa descoberto e arrastado dali, não sem que o realizador nos deixasse de mostrar a «verdade» do voo, tudo certo, impensável, excepto quando a câmara de filmar, pelo ângulo e pelo enquadramento nos desvenda a colossal estrutura de toda aquela «antecipação». Era esplendoroso e, ao mesmo tempo, aterrador. Este filme multiplicou o númeor de cépticos, havendo na América mais de dez milhões de pessoas que não acreditam no que viram. A «teoria da comspiração» também se propõe à nossa reflexão, voltando-se no sentido menos imaginável.


Penso que hoje há meios para provar a existência na Lua dos despojos das várias viagens. Nem sequer é caro. O Hubble, e mesmo recentes rádiotelescópios na Terra, poderiam artografar de perto as zonas anunciadas e mostrar se houve ou não uma casca de banana em tudo isto. Das sondas, cujos feitos parecem largamente comprovados, haveria uma erivante simples: retornando um pouco no programa sobre o Cosmos, seria perfeitamente realizável colocar uma câmara em órbita lunar, escolhida com o rigor que se conhece, a vasculhar tudo.
A Revista do «Diário de Notícias aventurou-se a fazer manchete desta história, com as imagens que chegaram do espaço. «E se o homem não tiver pisado a Lua?» Interessante ler os argumentos, as eventuais falhas de escala, de luz, de gravidade. É um sonho ao contrário, ao mesmo tempo risível e perturbador.
Para os mais curiosos, direi que, numa das alunagens do projecto Apollo, entre outras coisa, os astronautas deixaram, no chão da Lua, um reflector laser, com o qual, desde então, os cientistas trabalham a sério, explorando o retorno dos feixes que enviam para lá. Isto seria impossível se não tivesse havido nenhuma alunagem. Por outro lado, os alinhamentos dos radiotelescópios e de outros receptores de ondas rádio, não se enganaram na orientação para receberem, daquela distância e num azimute correcto, as comunicações ocorridas entre a base e o módulo lunar. Muitos outros aspectos poderiam ser rebatidos, desde o horizonte próximo ao tamanho da imagem da terra, diferente entre duas fotografia.

quinta-feira, julho 16, 2009

A PIANISTA REBELDE OU OS CANTOS DO EXÍLIO

Maria João Pires

Parece que algumas das mais importantes personalidades do nosso meio artístico e cultural, zangadas com a mediocridade do país, a tacanhez dos gostos e dos governos, a falta de zelo pelas actividades artísticas, começam a ponderar o abandono deste lugar de tantos ostracismos, procurando o Brasil como terra para novos enquadramentos. Sempre tivemos este tipo de de exílios, dantes sobretudo para França, onde ainda hoje, ligados às artes plásticas e ao cinema, são referência gente como Maria de Medeiros, Bértholo, Lourdes de Castro. Coisa semelhante acontece com londres, cidade onde Paula Rego tem um ponto de ancoragem, entre outros, ou mesmo a Holanda, país arduamente escolhido por Maria Beatris para fazer carreira. Na semana passada lemos as queixas de Sousa Tavares, agora mais público e publicado, em rota de aterragem no Brasil, onde o tratam bem e não o conhecem nas ruas. Conheço engenheiros, homens de letras ou artistas, que emigraram para o Brasil, sem protecção de rectaguarda, pessoas que acabaram por voltar, não muito tempo depois, em face de se se sentirem discriminadas e repelidas polidamente pelas classes privilegiadas das grandes cidades, apesar do convívio, como altos quadros, que mantinham nas empresas com os sues homónimos. Pode ser que isto tenda a mudar. Sabemos de casos, de gente mais comum, que tem baterias de rectaguarda e não alimenta tanto a vontade de ir viver e morrer no Brasil, em nome de uma solução que a pátria desolada não lhes assegura minimamente, mesmo em Lisboa ou Porto. Maria João Pires, pianista de excelência, portuguesa por inteiro mas dotada de capacidades invulgares, talvez perto de geniais, louvada e aplaudida em muitos pontos do mundo, entre prémios, homenagens e audições históricas, é agora (também) um dos últimos casos de exílio no Brasil, país ao qual parece ter dito que pediria a respectiva nacionalidade. Trata-se de um agravo conhecido, que tem implicações mais pesadas do que as telúricas vontades de Sousa Tavares, desconfortos perante os políticos, governos, instituições desse domínio, todas e todos em geral acusados pela pianista de desleixo, a par de indiferença ou recusas quanto ao projecto que ela tinha em andamento - o Centro de Belgais (Castelo Branco), iniciativa que envolvia muito empenho de artistas portugueses e estrangeiros. Continuo a pensar que as figuras de decisivo recorte público, de grande talento e por vezes muito mediáticas, não são as mais indicadas para contraírem síndromas de impertinência no seu país, pois constituem, de facto, uma frente que tem meios de luta e que pode, inclusive, arrastar consigo admiradores, forças aumentadas, coligadas, capazes de fazerem exigências perturbantes de direito à cultura. Os anónimos, os que vivem no fundo do poço, pessoas correntes e de vida por vezes penosa, esses têm por vezes resistido (apesar da diáspora que nos representa no mundo) com sentido de associação, protesto, edificação de espaços produtivos por muitas áreas. Os artistas deveriam ter igualmente esta força, estão mais apoiados e para a sua mediatização nem sequer precisam traficar muito, como nos casos extremos, em que avançar pelas televisões é penoso, humilhante, mas conduz alguns carentes a conseguir no dia seguinte milhares de dadores de coisas várias, na grandeza e no infortúnio. Com isto não quero nem julgar nem condenar as opções de ninguém. Não é disso que se trata. A própria Maria João Pires, cuja rebeldia é amavelmente citada, cujos actos têm revelado posturas de sustentação e dignidade, também não pediu direitos de autor quando, em muito nova, preferia brincar trepando pelos telhados ou fazendo «coisas malucas». A liberdade de transgredir faz parte de certos direitos tendencialmente reconhecidos aos criadores de nomeada e em várias disciplinas de índole artística. Num filme conhecido, A Bela Impertinente, de Jacques Rivette, a irrequietude de um modelo feminino leva o pintor, segundo razões pessoais, a combater perante o corpo que lhe escapa e a memória de amor distante que deseja recuperar. Eu acho que o artista sai vencido, mas também sei que os nossos caprichos de representação, em torno de um real ou de uma lembrança dele, nada reconquistam, pouco constróem. Compreendo que a pintura de Frenhofer o levasse a desejar maior superação do cerco, metáfora que tantos de nós subscreveriam, e acho louvável que, apesar de tudo, o pintor da história tenha permanecido ali, ainda que transitoriamente. Por vezes, os anjos procuram-nos na morada habitual e não num endereço apagado.


quarta-feira, julho 08, 2009

MORREU, BRANCO, O CANTOR MICHAEL JACKSON

Esta era a imagem de Michael Jackson quando do lançamento do vídeoclip Thriller, em 1984, obra considerada das melhores de todos os tempos. Não há sinais das borbulhas afirmadas na adolescência e o trabalho de imagem adequava-se à pujança dos meios vocais e do gesto, dança invulgar, indiciada por muitos dos ritos urbanos, sobretudo onde florescem diversas misturas rácicas e mitomanias assmbrosas. Fala-se de uma infância problemática, difícil, aliás bem cedo explorada pela própria família na dança e num tom vocal específico, preso também à vontade do próprio Jackson, menino de vocações exploráveis. Um articulista, ao falar desta época, intitula a sua prosa com o título «uma estrela à custa de cinto». Joe, o pai, não admitia falhas aos filhos e recorria à violência para lhe incutir um rigor fanático. O tempo levou esta figura, tão poderosa em Thriller, a uma estranha metamorfose, duvidosamente fundada em certa doença da pele, que empurrou o cantor e dançarino para um caminho alucinatório, por vezes fascinante mesmo sob o peso das suas marcas, das sucessivas operações ao corpo, à derme, às feições do rosto, um rosto enfim ocultável e patético, ilustração inquietante dos ídolos em decadência, dos vícios que entretanto os cerca de solidão e crises depressivas de grave recorte. Jackson não era um monstro e morreu de forma abrupta, sem recurso, tratado das mais diversas sequelas derivadas da sua vida e das lesões que provocava a si mesmo. Teria estranhos hábitos, na sua relação com crianças e bichos exóticos, assaz perigosos, que chegou a ter em casa, com ênfase. Que desejaria ele daquela sala onde, em determinada altura, coleccionou manequins que declarava serem os seus amigos? Metáfora contra a solidão? Resistência à exploração da indústria dos espectáculos? Mas ele próprio os queria assim, talvez sem os saber gerir com vontade bem activada, cultura e bom senso. Seja como for, sem falar em genealidade, o seu talento era insofismável e a sua obra fez história. Nada que justifique, para além do respeito que lhe é devido nesta hora, a hipertrofia dos processos megalómanos em que envolveram as cerimónias da sua despedida e da quase sacralização do ídolo. Assim nos enganamos cada vez mais, sendo certo que os actores dos grandes espectáculos passam ao futuro pelo estreito caminho do envelhecimento irreversível.
este foi o rosto que Michael Jackson impôs a si mesmo,
não se sabe em nome de quê

segunda-feira, julho 06, 2009

SOUSA TAVARES, LANZAROTE, BARÃO NO BRAZIL

Miguel Sousa Tavares numa das varandas da sua casa
que dispõe de uma soberba vista sobre o Tejo



Há dois ou três anos, escrevi neste mesmo blog um auto de homenagem a Sousa Tavares: eram palavras de quem apreciava a frontalidade e lucidez do jornalista, agora escritor, filho de duas personalidades que ainda conheci e que me confrontaram com a coragem de afirmar uma luta, uma arte, a habitual e cobarde intriga da nossa vida, incluindo a intelectual e a política. Sousa Tavares não me desiludiu. E de súbito o EQUADOR, obra legítima, interessante, mas que lhe cortou, em todo o caso, a geografia da identidade e deixou-o a fazer acrobacia na latitude entre separa Portugal do Brasil, sequioso dos grandes espaços e de mais carga inspiradora.
Caro concidadão, a sua entrevista ao jornal «Diário de Notícias», ontem, domingo, é das peças mais decepcionantes que já sairam do nómado adolescente que ficou a residir no seu retrato inconsciente: porque foi muito desconfortante vê-lo reclinar-se na fama, rebolar na boca as quantias que ganhou, o júbilo de um discutível viajante, uma coisa assim a parecer-se com o pequeno salto de Saramago, ele que foi só amar entre as pedras e espreitar daí, sem as pujanças do tal país novo que é o Brasil, o mundo em volta, Lisboa que você também cantou, o deserto global atravessado por artistas corredores, arranhando-se até ao martírio só para gritarem: «quase no fim da colúna, meus amigos, más chéguei: agora sou de Dakár.» Este é o lado mais pueril dos portugueses, postura pela qual ganharam mundos ao mundo para logo os perder, alcançando terras do fim da Terra, e fugindo para o Brasil pela ameaça exterior, mas fugindo para sempre, com barões e baronesas atrás, barcos carregados de meio Portugal para instalar na terra da salvação, lugar dos engenhos, dos escravos, da imensidão que dana a maior parte dos burgueses, montes de mordomias que brotavam da insanidade das pessoas e da exploração alucinada de riquezas jorrando um pouco por toda a parte, era só apanhá-las e levar à côrte. A loucura teve a sua beleza, a sua grandeza, e dela até saíram coisas absurdas e fascinantes como Manaus.
Apetecia-me dizer, à maneira de Caeiro: «eu sou desta terra, vejo e penso a terra, faço pinturas e escrevo livros, não há mais nada para fazer até ao fim daquele outeiro». É verdade, o Sousa Tavares já ouviu falar nos meus livros? Não ouviu. Mas eu, que nem sequer sou pior escritor do que o meu caro concidadão, não venho em nenhuma página, em nenhum telejornal, não viajo quatro vezes ao Brasil só com a massa de uma edição ou duas ou três. E sabe porquê? Porque, depois de vir de Angola, tive de esgaravatar tudo, palmo a palmo, sem jeito para pedir o favor de um destino inteiro, nem o berço onde me caísse do céu uma nuvem de açucar. E como eu há muita gente por aí, os que deveriam ter a oportunidade de sentir na pele essa doçura de cortesia de que você fala. Não, não pense nisso: o homem que lhe fala é bem mais velho do que você e não tem nenhum azedume pelo triunfo dos outros. Mas nos regimes actuais, o triunfo tem uma indústria por trás. Você é um produto dessa indústria e teve berço e esperteza para saltar a sebe. Está aborrecido com o país (um escritor que almoça, telefonado, com Sócrates) e julga ter urgência em apanhar um abanão, pensando que dessa forma alcançará um pouco do tal elixir da juventude, o sal de um inapagável talento. Precisa de inspiração, foge para o Brasil. É verdade que não tem a obrigação de usar a sua sorte e o seu jeito numa verdadeira causa por Portugal. Se somos macambúzios, geramos Vergílios Ferreiras (sem Nobel). A lista não terminaria. Porque os países velhos, são sobretudo antigos, e é nessa nobreza que a experiência escorre para dentro de nós. Juan Gris dizia que a grandeza de um artista se media, sobretudo, pela quantidade de experiências que ele trazia dentro de si. O Brasil serve para experimentar, para exprimir. A força de Angola, mesmo despida da demografia brasileira, mesmo na passagem pela floresta em guerra, deu-me estados de espírito inquietantes, deles retirei «Angola 61». E você a dar-nos recados, sem se importar com a ofensa que nos lega, porque a sua mobilidade também teve o nosso contributo, que é que pensa?
«Vou para o Brasil. É um país novo, de que eu gosto há muitos anos. E sou muito bem tratado sem ser popular na rua, o que é óptimo. É um país optimista, não está cansado, não está desiludido, sem esperança. Mesmo que agora haja tanta asneira feita no Brasil, todos os dias, não é? Só que que eles têm espaço e tempo para uma maior dose de asneira do que nós». O caro concidadão quer espaço e os emigrantes brasileiros vêm até aqui por sufoco e não acham o português (conforme os contextos) assim tão macambúzio. Podem é ter perdido quase todo o cosmopolitismo que já usaram (Eça de Queiroz devia ressuscitar) e por isso agem de forma mais pagã, nas festas tradicionais, com o património cultural de que dispõem. E os ricos fazem como os ricos paulistas. Mas olhe, Sousa Tavares, cuidado com o espaço, não se meta a ser um «sem terra», porque logo-logo terá terrinha para escrever, mas será rondado por outros sem-terra, muitos outros que nunca mais acabam, e você, macambuzado, pensará na bela casa da Lapa, com vista para o Tejo, decidirá vender a terrinha (que é o que eles todos fazem), virá a Lisboa comer uma boa cabeça de cherne, trocará o Algarve pelo Alentejo, e visitará, com algum esforço, compreendo, o «nosso» Saramago, lá nas pedras de Lanzarote. É mais verdadeira, esta ideia, e só tenho pena que o Nobel Português (da literatura) não se tenha curado das antigas solidões. Não é por acaso que ele diz de si, com algum sarcasmo, está bem de ver: «ele que vá para o Brasil ou para Marte, tanto me faz». Alguma coisa há-de fazer. Pois se um génio-para-si-mesmo-sonhando, aqui em Campo de Ourique, lhe está a dizer estas coisas, é porque alguma distorção ética haverá na sua preferência, tanto mais que, se há coisa que você é, e muito bem, é português. Devia estar mais ofendido com as garotadas que você disse aos jornalistas, como se se babasse de ir participar numa fulgurante imitação dos prazeres colonialistas. Mas não fico ofendido: acho apenas que você se desentendeu. E garanto-lhe, eu que conheci de perto o seu pai, em pleno PREC, tenho contactado com muito poucas pessoas tão portugueses como você, meu caro concidadão. Já não diria o mesmo da senhora sua mãe, que muito apreciei, e cuja obra nos legou, em português.