sábado, março 30, 2013

JOSÉ SÓCRATES E DUAS CITAÇÕES BEM OPORTUNAS

Desta vez não vou escrever apenas por minha conta: vou viajar por dois textos notáveis, de grande lucidez relativamente à insanidade global deste mundo cada vez mais perigoso, profundamente castigado pela voracidade do dinheiro e do poder, a Europa em perda e os mais poderosos fracturando o que deveria ser uma União solidária na própria pacificação das diferenças.


José Sócrates, ex-primeiro ministro em Portugal, derrotado de forma polémica em 2011, fez votos de silêncio e partiu para França, onde se dedicou, durante dois anos, ao estudo da ciência política. A ausência ainda foi enrolada, pelos "mentideros" de Lisboa, em celofane dourado, boatos de vida luxuosa, mais boatos que é típico, entre nós, fazerem de notícia e alimentarem os jornais. Sócrates, em terrenos de surpresa, voltou a Portugal e, a convite da RTP, concedeu uma entrevista de auto-defesa, retrato do que terá feito de correcto no nosso país e comparando situações, nomeadamente perante o caos de austeridade que nos vai engolindo. Usando uma metáfora, Sócrates comparou a estratégia do governo a um mergulho num poço, no fundo do qual, entre lamas, continua a escavar para aprofundar a famosa austeridade. E disse: se eles se deixassem convencer seria preciso gritar-lhes -- parem de escavar no fundo do poço. Daí nunca mais poderão voltar. É preciso parar a escavação.

Clara Ferreira Alves

«A neurose colectiva fez de Sócrates uma celebridade administrada pela ausência em vez de um chefe político. (...) E os comentários dizem tudo sobre os famosos ajustes de contas. Pode ser que Sócrates tenha regressado para ajustar contas com o Presidente e os outros, mas os jornais usaram esse regresso para ajustar contas com Sócrates. Nem sei bem porquê. (...) Acho tão inútil odiar Sócrates como odiar Merkel. No dia em que em que ao espião privatizado Silva foi oferecida uma sinecura na Presidência do Conselho de Ministros, acto político que nos deveria fazer vomitar, as pessoas escolhem odiar Sócrates. No ano em que soubemos que uma quadrilha de amigos do Presidente não paga o que deve ao BPN e temos nós de pagar por eles, milhares de milhões, as pessoas escolhem odiar Sócrates. No mês em que a nossa saída do euro está por um triz, as pessoas escolhem odiar Sócrates. Que lhes faça bom proveito. (...)
«Se Sócrates fosse o bandido que fugiu para Paris e para uma vida de luxo com dinheiro roubado no Freeport (campanha mais infame do que a da homossexualidade) não tinha regressado. Vi um homem de consciência tranquila. A pergunta que me interessava ninguém a fez. E a Europa? (...) O que faria Sócrates hoje para acabar com a austeridade e garantir os pagamentos? Tenho curiosidade de fazer esta pergunta a  um  líder político  em  vez  de esperar que  um  funcionário, o actual chefe do governo ou o da oposição, me responda.»



Miguel Sousa Tavares

«Primeiro que tudo e para memória futura (até porque o tempo se encarrega de inverter  situações e posições): que fique registado que muito boa gente defendeu, sem pudor, que José Sócrates devia ser silenciado para sempre.
posto isto, a questão imediatamente relevante era a de saber porque quis, ele próprio, regressar agora. "Por direito e por dever e porque está na hora", respondeu Sócrates. Quanto ao direito, com aquela ferocidade e eficácia que é bem conhecida e justamente temida: dois anos da "narrativa" de que todos os males de que padecemos se devem aos dois anos de governação irresponsável de Sócrates, entre 2009 e 2011 -- em que ele sozinho terá contrariado a vontade de todas as forças políticas, todas as forças económicas e todo um povo, que nada mais suplicavam do que poupanças do Estado -- tudo isso ficou seriamente abalado depois da longa prestação televisiva do réu. Compreende-se bem porque o queriam calar para sempre. (...)
«Desde ontem que anda um animal feroz à solta na cidade.»

domingo, março 17, 2013

UM REQUIEM PARA REFUNDAR QUE PORTUGAL?

jornais e quotidianos de um país que se enganou na Europa

de um filme de Paulo Rocha

Abri mais uma vez o jornal e senti uma grande tristeza e rasguei aquelas folhas de papel atulhadas de fotografias e de letras subitamente encavalitadas na névoa dos meus olhos: pareciam flutuar numa qualquer água suja, fundo de terra afundando-se. Havia por lá palavras como «espécie humana», como «sangue», «recua» ou «Kyoto». Antes de minorar o fumo tóxico que chega a encobrir Pequim, obrigando a população a usar máscara, devia pensar-se no sentido que tomou a actual civilização, nos impérios falidos e nos que se julgam com direitos sobre os pobres que sobraram. Para que serve a arrogância nórdica, incluindo a germânica e a britânica, se o Mediterrâneo ainda está a atear a sua Primavera e a China está para chegar (já poluída) se calhar abraçada à Índia, pujante e fracturada, espalhando violações por grandes manchas humanas sem segurança mas carregadas da maior produção de cinema coleante do mundo.
Portugal fez uma descolonização tão repentina e aberrante como o surto de austeridade da Troika, depois de uma guerra de catorze anos, em que houve tempo para todas as refundações e não se tentou nenhuma, tendo sido espoliados dos seus bens, afectos e velhas famílias, quase um milhar de portugueses, aos trambolhões, numa ponte aérea internacional, voraz, sem que os militares tivessem, no mínimo, assegurado a nossa honra e a dos adversários, que visivelmente não estavam à altura da sua. Mário Soares não tem nada que se molestar com isto, eu estive em Angola e sei o que digo: nem a guerra tinha razão de ser nem o epílogo podia ser decidido por gente ensandecida, apaixonada ou politicamente de cabeça quente. E as forças armadas que não se amofinem, porque se tinham pressa em sair dali, o que já podiam muito antes de haver tentado, no mínimo reformavam-se, a par das populações que o desejassem, e CONTINUAVAM LÁ, em plena independência dos emergentes países, até que os verdadeiros cidadãos e suas naturais reformas fossem transferidos para lugares apropriados, sobretudo na Pátria que segurara as pontas com tanto sacrifício. Salazar pensou assim, recusou emendas, e teve lá o seu voto julgando-se sempre Presidente do Conselho. A sua visão do futuro, mesmo quando a guerra já durara uma década, era mais do mesmo. Essa loucura repete-se hoje, aqui, no desemprego e na fome.
Como agora, numa Europa a que aderimos em jeito cosmopolita, e que, após o desenho da utopia, começa a desmoronar-se, fracturando-se por nações que se habituaram a ser diferentes entre si, respeitando-se assim até lhe derramarem dinheiro novo por cima, desde que cedessem (como aconteceu a Portugal) meios e produções centenárias. Falam no esbanjamento do Sócrates, mas o desastre começou logo com o PREC, com as apropriações de bens alheios sem medida jurídica, sem lei nem roque, sem amanhãs cantando. Aquilo não era bem uma revolução e por isso não tinha nenhuma legalidade revolucionária, o que se pode analisar caso a caso, antes de se restabelecer a justiça (lenta e por vezes mesmo cega) e um princípio constitucional que chegou a estar cercado no edifício da Assembleia que o procurava democraticamente definir.
Por isso chegou a vontade de recolher as algas da maré: calibrando maçãs e laranjas. Mas os frutos bons que não tivessem a medida da Europa caducavam para espaços de mendicidade. Os velhos do vinho foram comprados para venderem as vinhas, os pescadores para abaterem a frota, os agricultores para se aconchegarem em casinhas com uns milhares de euros para a sopa. O governo abriu braços e pernas, desatou a usar dinheiros e fortunas, fundando «fundações» de betão, políticas de crédito à habitação e mil e uma coisas que atingiram as compras lunáticas dos Ferrari. Os grandes impérios económicos, cada vez mais habituados a reinarem sobre ditaduras e democracias, envenenando a economia e  tudo o que a pobreza enganara de sonhos, caíram sobre povos inteiros, uns rebentando do miolo, com o dólar, outros prosseguindo a sua globalização e mandando os credores pararem créditos, exigindo pagamento de dívidas (colossais) com as quais afinal haviam vivido à tripa-forra.
Veio o governo de Passos e de Gaspar. O país estava de rastos e os mais ricos sopravam dinheiros para tudo quanto era sítio seguro. Foi sempre assim. Os «cortes nas gorduras» é uma expressão afinal popular e não técnica; e a mando da Troika a austeridade, com mais impostos e raspagens de emergência, fizeram o país ajoelhar em menos de um ano, sempre num descasque mal esclarecido e sem qualquer conotação com as reedificações económicas perante milhares e milhares de falências e milhares e milhares de desempregados, sobre os quais se somam, pelo menos, duzentos mil emigrantes. Uma espera digna, com manifestações dignas, tem facilitado a vida a um governo de palavras intermitentes e de nenhuma narrativa capaz de explicar cada fase do mergulho. O ministro das Finanças, é cada vez mais um personagem beckettiano e menos ministro.
Projecta bonecos e fala palavra a palavra, por vezes redundante, apesar da escrita. Todos, lá fora, o consideram figura de destaque. Os pobres de Portugal não percebem nada disso. Dizem: aquela história da idade do gato era uma saudade qualquer dos gatos que lhe faltam.
Agora faltam ainda, por mais um ano, ou dois, ou dez, ou vinte, mais quatro milhões. Em que país civilizado tais reviravoltas continuavam a ter credibilidade ou gente com paciência para tanta raspagem do tacho sem um abrir de janela. Que não há alternativa. Que vamos no caminho certo. Os gregos aprenderam depressa essa lição. Aqui há tempo, Passos prometeu que «não ia esticar a corda» -- falava da austeridade sobre os portugueses. O pior é que a corda já partiu e ele não deu por isso, continuando a ver passar o rio da austeridade sem saber como pôr o país a flutuar.
António José Seguro ensandeceu, faz demagogia, ergue cada vez mais a cabeça, mas afunda o PS com a actual maioria.
E a alternativa?
Pois meus amigos: lembram-se da ponte aérea e do colonialismo despachado num ápice? É o que temos de fazer. As coisas que estão a mais e ainda disfarçadas devem ser roubadas ou destruídas. As forças de investigação e judiciais devem controlar todas as saídas patrimoniais e, no plano virtual, assaltar os bancos e os grandes vendedores cujo dinheiro voa para parte incerta, desfazendo tais nós e recolhendo valores mal parados. As rendas voltam a subir, pela mão dos tais senhorios bondosos: qualquer buraco custa 800, 1200, 2000 euros. Daqui a cem anos vão chorar porque ninguém pode fazer obras com rendas da 1200 euros. Um estado moral e moderno deveria criar tectos de compra, de aluguer, sempre numa escala que não despejasse as pessoas na rua nem as mandasse emigrar, antes as colocasse num grande plano ordenador do território, entrando pela terra adentro e criando condições novas para a agricultura e cidades redimensionadas. O que há para refundar não é o país, propriamente dito, mas a rede de contradições do governo e a falta de perspectiva  para tornar paralelos o nivelamento ajustador (reequilibrando o que for necessário) e o plano inclinado (a subir) onde já brilham muitos sucessos e faltam outros espaços de produção bem ponderada e inovadora. 
Esse trabalho não pode ser como uma guerra de catorze anos e um milhar de espoliados: está-se a repetir, com duzentas mil casas novas mas vazias, o abandono das propriedades primeiro arrancadas aos famosos latifundiários e os oportunismos perante quem chega de mãos a abanar ou quem parte da mesma maneira. Essa já não pega. As grandes e cegas teimosias alastram pelo território sem nada produzirem. Depois ficam impunes aqueles indivíduos que chuparam o BPN (não gosto deste lugar comum mas é o que temos de mais sensacional, depois das relvas e da idade dos gatos). O medo não é o do filósofo, medo de ser português. O medo é o de não ser português em Portugal, onde há tantos recursos fora do manejo golpista dos dinheiros e das megalomanias estradistas, surfistas, futobolísticas.
Do Editorial Diário de Notícias 17-03-2013
O ministro das Finanças conseguiu retirar o País de uma encruzilhada e empurrá-lo para um beco sem saída. A austeridade não é, como prometeu Vítor Gaspar, o passe matemático que nos levaria ao crescimento. Falhou. Não se trata de deificar as previsões. Todas podem falhar. Até Passos Coelho já diz que «previsões são apenas previsões». O pior é que não são apenas. O País não é uma previsão, a recessão que nos arrasta para a pobreza não é uma previsão, o défice que ultrapassa todas as barreiras não é uma previsão, a dívida que cresce descontroladamente não é uma previsão os direitos perdidos e ameaçados não são uma previsão.
Hoje mesmo Vítor Gaspar disse «não sei», «não tenho plano B, nem plano C», numa conferência de imprensa onde se colocava o problema da inconstitucionalidade eventualmente confirmada até dois mil milhões de euros pelo Tribunal Constitucional. De súbito, a incompetência constitucional do governo pode colocar-se como um impasse e uma demissão. O euro não poderia ter sido desenhado assim nem estar sujeito a uma indevida partilha: quase pleno emprego a norte, colapso quase mortal a sul, já com xenofobias intragáveis.
O líder socialista, que agora assume a ruptura definitiva com o Governo e já não exclui uma censura parlamentar, mesmo que ineficaz, sabe que está mais próximo de ter de assumir as suas responsabilidades.
Mas qual é o caminho para o futuro  que propõe António José Seguro? As sondagens são aterradoras no balanço entre os dois maiores partidos: dir-se-ía que o país não olha para os líderes dos partidos, todos, incluindo o CDS, comentando «venha agora o outro». Não: o que o país, mesmo aquele que não vem para a rua, está a afirmar é que, no termo (ou antes) deste mandato, todos têm de jogar para a mesma baliza. Será uma espécie de ruptura com o sistema, uma obrigação ética, política e nacional.

domingo, março 03, 2013

VILA MORENA CANTADA PELO POVO HUMILHADO

Grândola Vila Morena


 Ontem, sábado, dia 2 de Março de 2013, poucos meses depois de uma grande manifestação contra as medidas de austeridade a que se chama tecnicamente ajustamento, o povo voltou a sair à rua na boa ordem com que tem enfrentado os famosos "cortes orçamentais", brutais, cujo caminho visa acertar o déficit e seguir, até perdas que já chegaram ao fundo, o passo desta derrocada civilizacional, pelo eixo torto da assombrada Globalização, talvez a mais ignóbil maneira de "juntar tudo no mesmo cesto", unificando os ricos nas suas grandes redes internacionais e massificando o dilúvio universal da pobreza, a próprio Europa (que já foi uma bela utopia) escangalhada perante a pressão dos países do norte e de maior poder, alheios a um sistema de facto solidário, vinculador das realidades nacionais a um governo central, presidente eleito por todos os países do euro, Banco e Fundo coordenando projectos, orientando ajudas "a fundo perdido" e com retorno, sem que as pseudo-elites do Norte pudessem humilhar os tais pigs, os «sonhadores preguiçosos do sul».


  A História não ensina nada disso e a Alemanha, que conseguiu ignorar o parlamento europeu, a Comissão, o Presidente, "batendo o pé" ao Banco Central, e enquanto Merkel não ganha as eleições, não fez outra coisa senão convocar reuniões gerais, com agendas torcidas, vinte e tal reuniões de ministros daqui e de acolá, todos a acordarem das noites longas "com as mãos a abanar". A Alemanha dissera que não, a Alemanha reagira mal, a Alemanha não considerou conveniente. A tibieza dos outros ministros contribuiu para um rasto imperialista que poderá colocar a Europa a jeito da derrocada do euro e da explosão das misérias, num conflito de novo armado. Devia a Alemanha repensar melhor estas coisas, porque ela pode parecer grande para a Europa mas é, sem qualquer dúvida, pequena para o mundo inteiro -- o que já foi provado em duas grandes guerras cujo centro foi ela própria. A verdade é que as virtudes germânicas não são as maiores do mundo, nem podem servir de modelo canónico a toda a gente. A Humanidade enfrenta a avalanche de diferenças e semelhanças que emerge de grandes países a Leste. A deslocação de empresas para explorar lá o que não dá cá, e assim por diante, é mais um mal da Globalização do que uma virtude da mobilidade. A tecnologia e o mamutiano poder financeiro, com Goldman Sachs feito assombração das grandes manadas em todo o lado, subterraneamente a mandar em quase tudo o que pode agitar-se na vida e ser esbulhado na cabala dos dinheiros, febre infecciosa que se espalha um pouco por toda a parte e cria credores como cogumelos para entalarem, com súbitas regras contraditas, milhares de países da zona de sombra e miséria que já não tem forças suas capazes de varrerem o lixo à sua volta, nem colher plantas familiares, nem proteger as famílias e a distribuição das demografias. A fome alastra, como o desemprego, e os países mais frágeis vêem os seus filhos (na alucinação das grandezas) emigrar em massa para tudo quanto é sítio onde o dinheiro ainda fervilha e os consumos permitem ilusões por mais uma ou duas décadas.


 Portugal, preso ao contrato inflexível da Troika, tem um governo de maioria que se dispõe a cumprir "à risca" e à rasca tudo o que era corte de despesas, tendo devastado grandes estruturas industriais e económicas do país, sempre sem reservar corredores para a economia e o retorno a áreas de que abdicou cegamente às ordens de Bruxelas: agricultura, ordenamento do território, frota de pescas, marinha mercante, estabilidade do mercado interno e do emprego. Repor tudo isso com algum bom senso, mostra-se agora um sorvedor de mais dívidas e juros colossais, que algum computador na Goldman Sachs alinha em "tranches". Os cortes nas pensões, vencimentos e por aí adiante, com taxas inventadas até ao ridículo, abateu desde há dias a classe média para metade. Abandonam-se os velhos, exalta-se a juventude desempregada, aponta-se para mais uma necessidade de quatro mil milhões de euros. Se isso se reflectisse, mesmo devagar, numa parte do que foi destruído e é essencial para um nível de vida médio e equilibrado, a gente pensaria que "do mal o menos". Mas não é nada de nada: o governo não ensina o país a perceber para que serve a recessão e a pobreza compulsiva, sem medidas a médio e longo prazo visando os direitos fundamentais da pessoa humana.
 Lisboa foi atravessada por centenas de milhares de pessoas, além de outras cidades, numa mobilização à volta de um milhão de cidadãos. Muitos deles expressaram-se para a televisão com grande mágoa e uma dignidade comovente. Tem sido sempre assim, fora um ou outro acidente manipulado, incluindo cruzados nómadas, vindos do Além. A Troika está em Portugal, numa sétima avaliação. Os agravamentos da situação, que a teoria não resolve em termos de pessoas, obriga agora, apesar de divergências da oposição e de um Partido Socialista sem grandeza nem sabedoria, ao qual muitos de nós legaram as suas esperanças não há muito tempo, a planear novas soluções para vencer o desânimo e a desestruturação do tecido empresarial, tendo em conta os valores do último trimestre de 2012, confirmados pela subida continuada do desemprego. 
 "Santos de casa não fazem milagres", mas os santos da Troika mostram-se cozinheiros de uma só cozinha, sem elasticidade e invenção ou modo capazes de reencontrarem o futuro.

sábado, março 02, 2013

MORREU EDUARDO NERY: OBRA PLURAL, IMENSA

Eduardo Nery

Morreu hoje, de manhã, o artista plástico Eduardo Nery, grande pintor formado pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Nasceu na Figueira da Foz, em 1938. A sua capacidade de pesquisa e de desenvolvimento de novas formas em diversos procedimentos artísticos, desde o desenho e a pintura à escultura, à tapeçaria, arte pública em vários meios, arquitectura de interiores, instalações, tratamento da cor no espaço urbano, desenvolvimentos experimentais a partir da arte africana (que coleccionava) e também na gravura e na fotografia, onde é inventor de soluções poéticas surreais e do fantástico, entre outras. Tudo isto com grande rigor e um cuidado final de excelência. Será difícil encontrarmos alguém, em Portugal, com tamanha abertura de espaços artísticos, capacidade de investigação, pluralidade de meios e formas, inovação em todos os campos abordados.
Foi logo em 1959 (após ou durante a frequência da ESBAL) que viajou para Paris, iniciando um estágio com Jean Lurçat em Saint-Céré, França, para aprofundar o universo da tapeçaria contemporânea. No âmbito da Manufactura de Portalegre, produziu das mais belas tapeçarias que se fizeram em Portugal, quer no plano da respectiva genuinidade plástica, quer integrando aí exemplares da pintura "op", excepcional no rigor e na teoria da percepção, o que também logrou alcançar em pintura, bidimensional e tridimensional. Trabalhou praças, (Alentejo), interiores de edifícios, planos urbanos exteriores, sempre a convocar os seus códigos mais coerentes, uma geometria que não desdenha a base estrutural mas se alarga em consonância com a arquitectura e o próprio ambiente. 
A sua pesquisa na fotografia é das mais relevantes do universo português: desde as misturas a preto e branco às encenações lumínicas das máscaras africanas e até às subtis osmoses do real e do irreal, a cores, numa linha surreal e num trajecto ligado ao fantástico, pelos caminhos de um imaginário -- fascínio, relações subtis de cultura, entendimento da história e do mundo contemporâneo.
A sua atenção estendeu-se a quase todos os sinais da época. Depois de uma lógica de coerência interna, Nery chegou a soluções dadaístas de anti-pintura, na destruição aparente de quadros, molduras decepadas, tudo atravessado por uma nostalgia mordaz, entre o peso do dourado e a ironia do trompe l'oeil. Saber a fundo o fenómeno da perspectiva correspondia, neste autor, a estudos sobre arquitecturas inteiras suspensas no espaço, na exaltação simulada da terceira dimensão, incluindo a luminosidade certeira e um cromatismo penetrante.
Com os padrões de repetição, Nery inventou soluções visuais de grande efeito, «espacialidades perturbadas, onde a vertigem ou o labirinto se instalam como metáfora de uma geometria plana.»

No livro que lhe dediquei, escrevi na primeira página em branco:

 Para uma cultura aberta e sem omissões.
 Para um país que tem direito a conhecer
 a História da  sua Cultura
 e não apenas o esplendor da contingência.
 (rocha de sousa, 1989)

Foi neste sentido que Eduardo Nery trabalhou. Ao terminar o livro, havia lá a nota de que assim ou de outro modo (porque ver o visível é efectivamente transformá-lo à medida do nosso sonho, de acordo com as paisagens que nos habitam) o artista assume a função de um espaço poético que nos define e sem o qual nada existiria após os desertos.