terça-feira, março 27, 2007

O REGRESSO DE SALAZAR


A RTP, enquanto Serviço Público, diz ciclicamente zelar por melhor informação, mais cultura e entrenimento q.b. Entre outras coisas que não se passam dessa forma, a RTP defende o critério de comprar direitos de autoria sobre programas do exterior, podendo adaptá-los ao contexto português. Desta vez lançou, com pompa e circunstância, um novo produto sobre a escolha do maior português, sempre através do voto democrático da população, em séries de eliminação e apuramento de uma base de cem personalidades. Quando se chegou à final (como no futebol) havia um conjunto errático de dez elementos, os quais foram estudados e tratados em filme, cada um por uma personalidade qualificada da nossa realidade sócio-cultural. E esse trabalho, com filmes dirigidos por cada um daqueles elementos, teve mérito e o debate final bem podia ser aproveitado para outras prestações.
Mas o desnorte já estava lamçado desde há muito, entre votações assombrosas, enquanto os orientadores da TV insistiam que aquilo não passava de um entretinimento, de um concurso. Falou-se mesmo em passa-tempo. A verdade, contudo, é que não se brinca com coisas sérias. D.Afonso Henriques, Infante D.Henrique, D. João II, Vasco de Camões, Pessoa, entre outros, suportaram o serviço que lhes exigiam. Apesar do seu grande papel num país unido há muitos séculos e onde a escolha de uma personalidade que o nobilite, emblemáticamente, hoje a amanhã, não dever sair de um parto tão errático e tão acidentado. Enfim, a votação final do passa-tempo conferiu o primeiro lugar ao Dr. Oliveira Salazar, seguido de perto, em segundo lugar e curiosamente, pelo Dr. Álvaro Cunhal.
As pessoas que acharam, por fé ou nostalgia, dever votar em Salazar são poventura as mais coerentes. Mas as outras que votaram, em hipótese perante o bizarro fenómeno, com o sentido para penalisar os governos desde o 25 de Abril, o próprio 25 de Abril, ou, quem sabe, por gostarem mesmo de voltar ao país dos «brandos costumes», devem sentir-se seguros da bondade da censura, da castração das ideias, de uma guerra em nome de um futuro pior do que sebastianista. Para os radicais até seria interessante rever uma viagem ao Tarrafal, eventualmente, com tudo pago e estadia por tempo indeterminado.
Há quem pense que o resultado do famoso concurso, esta oferta de Salazar em bandeja de prata, é uma cínica brincadeira dirigida à Europa, um acontecimento histórico, passando a figurar nos livros de escola como exemplo de Portugal saber bem onde está -- com equidade perante os opostos, entre diferença e a semelhança.

quarta-feira, março 21, 2007

FOTO-FICÇÕES DE VICTOR BELÉM

homenagem ao poeta

CAMILO PESSANHA
















Estas imagens correspondem a um género de pintura tecnologicamente inovadora, trabalhada pelo artista Victor Belém. Todas as obras da exposição onde se integraram estas peças se resolvia por completo com formas assim, que parecem decorrer de remotas memórias pop e psicadélicas, embora o autor tenha sido de raiz um experimentalista, irreverente na ruptura, perspicaz quanto ao meio e suas mimetizações. Victor Belém, pós dadaista, incandescente na provocação estética, produziu as mais diversas invenções, incluindo objecualismo e um certo abjeccionismo, misturando a pintura propriamente dita com o non-sense das formas, velharias, geminações absurdas, uma atenção crescente aos fenómenos sociais e políticos. A sua pluralidade edificadora haveria de marcar posições abertas a outros campos, fotografia, cinema, teatro, performance. A exposição, de valor itinerante, foi dedicada a Camilo Pessanha, poeta que Victor Belém admira, na justiça contra o esquecimento.

Camilo de Almeida Pessanha nasceu em Coimbra, em 1867, e formou-se em Direito naquela cidade. Durante toda a vida escreveu poesia, contos, crónicas, ensaios crítico literários e textos de carácter jurídico. Na sequência de um «desencontro» de amor, partiu para Macau onde se distinguiu em vários cargos e onde defendeu sempre os direitos dos estudantes chineses da zona. Republicano convicto, maçon, tendo mantido um contacto muito fecundo com o escritor Wenceslau de Moraes, partilha com ele convicções e afinidades intelectuais. Pessanha foi um sinólogo notável, traduziu poemas e lendas, tendo reunido uma extensa colecção de peças patrimoniais de relevo, colecção doada ao Museu de Arte Antiga e depois trasladada para o museu Machado de Castro. Dir-se-á que Pessanha foi um dos nossos poetas mal amados, mas nunca deixou de cumprir o seu destino cultural, vivendo um auto-exílio de trinta anos na distância da colónia a que se votou, ele que foi sem dúvida um notável sinólogo, traduzindo belos poemas e lendas, e foi também, porventura, o mais puro representante do simbolismo português, poeta da saudade, do país perdido, voluntariamente (mas sempre actualizado) exilado no Oriente.
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NB: a nota sobre Pessanha foi sintetizada de um dos textos do catálogo

domingo, março 18, 2007

A BELA E O MESTRE



Julgam os donos, directores e programadores das televisões que elas foram inventadas para se servirem a si mesmas e servirem a sustentação publicitária, fingindo, por outro lado, servir públicos néscios, incapazes de alguma adaptação ao vínculo cultural dos media, aos poucos produtos que são ricos de conteúdo humano e existencial, programas que aprofundam o ser do mundo e a estética da imagem. Pensam ao contrário, os donos das televisões. Habituaram-se ao contrário, os donos das televisões. Enquanto os programadores, com o aval dos Conselhos de Administração, copiam ou arrendam os mais reles produtos deste domínio. Anos e anos seguidos, nunca se passou disto, com heróicas excepções.

A BELA E O MESTRE, novo programa da sacudida TVI, podia traduzir-se perfeitamente, no estilo das novas televisões, por GAJAS BOAS E O MONSTROS DA CULTURA GERAL. O país -- aquele país que por vezes acede à noção de equilíbrio psíquico e à solidariedade -- quase entrou em choque, apesar de bem habituado a cascatas de asneiras, ruído de horror para captar audiências em círculo fechado de publicidade. Como dizia uma pessoa minha conhecida: «a estrutrura desta merda é profundamente machista, eles rascas e falsamente sábios, elas boas e burras até ao infinito». Ali estão tendenciosamente vários casalinhos, um quarto de quatro estrelas **** para cada um deles. Casalinhos a fingir, cultura quanto baste, homens desencontrados das mulheres, luxo visual, europa para o lixo, apelo ao consumismo e à grandeza tipo pato bravo de três estrelas*** Leio que a «A Comissão para a Igualdade» estuda uma queixa contra «A Bela e o Mestre». Ainda há quem se indigne. Aquilo custa dinheiro aos montes e esta gente das televisões parece não se dedicar à invenção de programas, arrenda-os ou compra os direitos aos americano. A produção da Endemol é assim sugada pela Fox: concorrem jovens bonitas, mas (aparentemente) de grande ignorância, e rapazes deslambidos, embora (supostamente) debitando alguns cavalos de cultura geral. Juntam-se arbitrariamente, um casal por quarto, como se disse, comprometidos a estudar quem é o Fidel de Castro ou se o Infante D. Henrique era espanhol. Fazem umas provasinhas físicas, sempre bestas e indignas, e assim é suposto que cada casal «evolua» em «competitividade», num complicado sistema de votos, nomeações e expulsões (como sempre) a fim de o escolhido no termo do programa ganhe 100.000 euros. A imoralidade e a estupidez por bom preço, o país aparvalhado, gente a protestar. E um membro do júri residente acabou mesmo por desabafar: «não há pachorra para o tipo de estereótipos veiculados pelo programa». Várias «associações femininas» e outras personalidades de respeito consideram o programa prejudicial a vários níveis, pois «humilha as concorrentes física e intelectualmente, partindo do eterno estereótipo da mulher burra e do homem inteligente, da oposição entre beleza e inteligência».










sexta-feira, março 16, 2007

O ESTILO E A PETULÂNCIA











Fingimos aqui uma coluna assinada por Constança Cunha e Sá, com o «boneco» da praxe, irreconhecível. Lemos uma crónica sua, no Público de 15 de Março, e verificámos que, falando de José Sócrates, primeiro-ministro, ela procurou enganar o efeito tablóide e usar da menor petulância possível ao abordar a vida normal do homem, quer enquanto menino e rapaz, quer depois quanto à sua prestação política, embora declarando, à cabeça, que «o estilo do primeiro ministro confirma apenas a sua falta de substância».Não encontrando no percurso daquela personalidade, ao longo da vida, nada de relevante, diz claramente: «É com este extraordinário curriculum que (José Sócrates) chega, em 95, ao Governo, pela mão do eng. Guterres, de quem foi sempre um solícito boy.» Parece difícil ser mais eloquente com tão pouco assunto.
Uma grande parte dos nossos comentadores de política e assuntos similares está cada vez mais parecida com os próprios políticos, os quais procuram, paradoxalmente, abater: fazem assim um papel onde abundam os convencimentos, as mentiras, as distorções da realidade, tudo isso em pleno exercício de estilo e frequente redundância, insubstância, petulância. Ora esta sabedoria instantânea, como no caso dos treinadores de bancada, começa a merecer alguma palavra de indignação. Porque o artigo de Constança e Sá, intitulado pomposamente «O Estilo e a Substância», é que não tem mesmo substância e debita banalidades sobre a pouca sorte de José Sócrates. Este político português não beneficiou, com efeito, de um destino menos cinzento, mais colorido e relevante, marcado logo após o nascimento pela predestinação dos grandes homens, alguém que bem cedo, ainda de calções, revelasse claro sentido de liderança e carisma relevante.Tudo isto é abordado, sintomaticamente, em confronto com Aníbal Cavaco Silva, de berço modesto mas cuja entrega aos estudos se fez, como o próprio anunciou, «a pulso».



O CHAMAMENTO DO DESTINO E SUA SUBSTÂNCIA COM BOM ESTILO


A par do «menino Aníbal», Constança fala do «menino Zezito» e esforça-se, com mal disfarçada petulância, em descarnar toda a história deste primeiro-ministro não predestinado que desde novo não se lhe descortinava uma ideia, algo que o distinguisse, um esforço, «uma proeza académica ou profissional». O bacharelato no ISEC será uma coisa menor, de duvidoso valor, aliás como essa «obscura licenciatura» completada vinte anos depois. Sócrates aportara entretanto aos caminhos da política e acompanhava Guterres (senhor que parece estar igualmente votado à menoridade, a vários títulos, pelas Constanças do snobismo intelectual que atravessa a comunicação social portuguesa). Por ela se soube ontem que Sócrates «em 1987, depois de se ter enfiado no sótão do eng Guterres e numas intrigas de maior alcance, chega finalmente ao Parlamento, onde viceja discretamente durante os anos do cavaquismo». O fio de fel e de desprezo continua durante mais alguns parágrafos semelhantes, rotulando Sócrates de «estadista de última hora» e outras coisas não menos ofensivas.

Chama-se a isto encher de lixo e má fé o «espaçopúblico» do jornal. Constança, cujo curriculum deveria vir sempre anotado em rodapé, terá de procurar fazer-nos o favor de trabalhar um pouco mais à clara luz do dia, porque, em termos de jornalismo com bacharelato e/ou licenciatura, a senhora carece de autoridade ética para dar prioridade, e nestes termos, à história comum de uma hora a montante, com omissões peculiares, da vida do primeiro-ministro, desconsiderando o jornal e o seu verdadeiro público, pois nem todos os grandes estadistas foram predestinados, doutorados, rangentes de luta, chefes precoces em associações políticas, eventualmente recheados à francesa ou num estilo anglo-saxónico, linhagem superior a montante, republicanos e laicos a jusante, sob a espuma dos dias após vinte e cinco de Abril de 74.

Será melhor, minha senhora, que se dedique a trabalho mais útil e menos redutor, deixando de sujar as mãos em coisas de cordel. Imagine que o primeiro-ministro tinha um pequeno defeito congénito no polegar esquerdo: isso seria assunto para encher a sua coluna, falando de disfuncionalidades orgânicas da ordem da predestinação e dos requisitos mínimos exigíveis a um homem de Estado? É claramente aconselhável abordar teses do domínio da tecnologia avançada e da necessidade da cultura. Preferir o trajecto do debate de ideias, as suas, minha senhora, e as do próprio Sócrates, sem contribuir de forma jornalisticamente redutora para diluir o perfil genuíno da nossa cidadania. Deixe lá as cores políticas, as emblemáticas dentadas de falso humor nacional, e debata a problemática desta civilização que sufoca no próprio crescimento, só crescimento, e perante a qual não nos ocorre dar espaço de emergência a verdadeiras alternativas de trabalho, aos conceitos de ordem social, inquirindo se as actuais vias de «desenvolvimento» apontam para novos objectivos, colocando ao governo as devidas equações de uma real inovação dos meios e dos modos. Ao contrário dessa linha, e alheia à relação entre as políticas a médio e longo prazo perante o próximo glaciar, o seu texto foi manifestamente conduzido com o fim de minimizar de forma literal o primeiro-ministro, personalidade que, seja como for, mostra uma certa qualidade inventiva no quadro do processo em que o país se inscreve. Ora ao público em geral, isto importa muito mais, saber dos eventos positivos, questionar o quadro da globalização, apreciar o primeiro-ministro nos limites que herdou e dentro dos quais procura, um pouco artesanalmente, alinhar as coisas por uma ordem de melhores perspectivas.

É do nosso interesse, de futuro, cuidar melhor da sua máscara.

quinta-feira, março 15, 2007

«OFERENDA ESQUECIDA» JORGE PIMHEIRO

«Homenagem e Josefa de Óbidos» I

«O Jogo da Macaca III», 2004 II

«O Sacrifício de Isaac», 2002 III
obras do pintor Jorge Pinheiro


DIVULGAÇÃO DE ARTISTAS PORTUGUESES
Na arte de Jorge Pinheiro, muitas vezes uma só pintura corresponde à vastidão englobante de uma série proposicional, pois coexiste consigo um corpo de desenhos. O qual, mais do que uma prévia via para encontrar a causa (e também morada) final -- espécie de conceito metafísico carregado de imagens -- é, em si mesmo, imagem que tenta explicar imagens, servindo-se estas de figuras para explicar figuras. Trazem consigo um limite de realização última; coisa comum, quase sempre, senão sempre, ao óleo que corporiza várias partes ou as categorias de um pensamento acerca de pensamentos corporizados numa pintura e nos estudos desenhados que, de um modo necessário, a ela conduziram. Como um fechamento, como coisa venerada e eleita por um, por vezes vasto, conjunto de partes (ou de categorias), o quadro surge sob a forma de objecto dotado de poder. Um poder real, não imaginário. O objectivo, lançador de pontes sobre veios de subjectividade que guarda e preserva no seio da sua linguagem, que vai tomando a forma de desenho.
I Na «Homenagem a Josefa de Óbidos» essa figura de mulher resulta de uma emanação de forte luminosidade. Há no seu corpo uma transparência que vem do esplendor escarlate, de um vermelhão mesmo, do éter, da atmosfera celeste envolvente. Como que em protecção da pintora, segura, uma figura feminina alada a que poderemos chamar Fama, um imenso chapéu de sol aberto. (...) A Fama ergue na mão esquerda uma festiva coroa de louros, em que tremeluzem uma fita verde e uma outra vermelha. A Fama está sobre uma coluna, de capitel esférico.
II Uma teatralização ocorre em «O Jogo da Macaca III». Por detrás de um cenário projectado, que na pintura organiza um jogo de transparências, riscou-se o desenho infantil de um homem de chapéu, de um avião e de um lobo prestes ao ataque. Charlot e o rapaz espreitam num extremo desse cenário. Observam somente a dor e com ela, com o seu material probatório, constróem a existência de uma memória.
III Sobre um fundo negro, figuras de vestes contemporâneas ligadas ao conflito israelo-palestiniano, movem-se entre um grito de terror e o sacrifício. Sobre um altar de pedra, como aquele que Abraão erigiu no alto da montanha, disposta a lenha em redor, vai ter lugar o holocausto. Não se vê a faca que infligirá o sacrifício, mas a mulher, figura que traz consigo a velocidade da morte, é quem grita com um soar metálico: «Abraão». Este responde-lhe: «Estou aqui, Senhor.» A voz voltou a gritar: «Deixa o teu filho. Não lhe faças mal. Como não me recusaste tão grande sacrifício, sei que o teu coração é perfeito.»
Dos textos publicados numa brochura da Galeria Palmira Susa, em abordagem à maior parte da obra de Jorge Pinheiro João Miguel Fernandes Jorge.

terça-feira, março 13, 2007

A QUE CHAMAMOS PAZ?

Arundhati Roy
Esta mulher cujas ideias se regem pelo lado mais avançado da consciência humana, foi galardoada com o Prémio da Paz de Sydney. Ao aceitá-lo fez questão de assumir a sua condição de escritora, demarcando-se de falsas virtudes, de movimentos de massas e daqueles que são nomeados como «os sem voz». Arundhati aponta para os que são deliberadamente silenciados ou, talvez de outra forma, não ouvidos. Ao receber o prémio disse que o fazia, sem acenar com a bandeira dos despossuídos ou impotentes, como a expressão de solidariedade da Fundação da Paz de Sydney para com uma certa visão do mundo que milhões de nós, um pouco por toda a parte, subscrevemos.
«Está ficando cada vez mais claro que a violação dos direitos humanos é uma parte inerente e necessária do processo de implementação de uma estrutura política e económica coerciva e injusta no mundo. Crescentemente, as violações contra os direitos humanos são mostradas como falha ineliz, quase acidental, de um sistema polítco e económico que, de outro modo, seria perfeitamente aceitável. Como se essas violações fossem um pequeno problema que pode ser varrido do mapa com um pouco mais de atenção da parte de algumas organizações não governamentais. À medida que a batalha pelo controle dos recursos do mundo se intensifica, o colonialismo económico, por meio da agressão militar oficial, ensaia uma volta à cena. O Iraque é a culminação lógica do processo de globalização corporativa, no qual se fundiram o neocolonialismo e o neoliberalismo. Se pudéssemos espiar através de uma fresta da cortina de sangue, vislumbraríamos as impiedosas transações que ocorrem nos bastidores»
Extractos da palestra deita pela escritora indiana Arundhat Roy ao receber o Prémio da Paz de Sydney 2004.
O original pode ser encontrado em
htto://www.planetaportoalegre.net/041125_2.htm.

quarta-feira, março 07, 2007

DO ESQUECIMENTO AOS LEILÕES DE ARTE


Esta imagem corresponde a um leilão de arte, no qual, perante uma grande tela de Sousa Lopes, as cabeças do público parecem (maliciosamente) integradas na pintura pelo fotógrafo. Há quem considere que os leilões de arte constituem um modo de redistribuir muitas obras plásticas pela sociedade. Ora todos sabemos o que se passa com as «indústrias da cultura» e a hipocrisia, disfarçada de falsos saberes e tráfico de influências, actividades que enlameiam os mercados desta área. Em boa verdade, os leilões permitem que os ricos vendam obras a outros ricos ou que alguns «nobres» em decadência passem o seu património cultural a meia dúzia de milionários. A peça que vemos na imagem tem as dimensões de 2,72 por 3,54m. É uma pintura a óleo, com um tema de festas religiosas, e foi vendida a um particular, para espanto de muitos, por 125 mil euros.
Quem era Sousa Lopes, afinal? Um pintor que nasceu em Leiria, no ano de 1897, e veio falecer 65 anos depois, em Lisboa, durante 1944. Como outros do seu nível, por vezes surpreendentes, é tratado com alguma negligência. Anísio Franco, historiador de arte do Museu de Arte Antiga, entende que Sousa Lopes «é conhecido da história da arte, mas tem sido pouco estudado e mostrado». Maria Aires Silveira, conservadora do Museu do Chiado, anota que, apesar de tudo, «não se pode dizer que o pintor seja pouco conhecido. A verdade é que não tem havido grandes exposições e é natural que o grande público não o conheça. Mas não é uma figura desconhecida»». Estas impressões, obtidas de uma reportagem do jornal Público, deixam-me estupefacto. Afinal quem conhece ou não conhece Sousa Lopes? Como se pode falar desta forma de gente cujo trabalho foi longo e fez parte de uma área em geral pouco acalentada pelo país, sobretudo pelos governos e pelos próprios museus? E agora, emergindo do quase esquecimento, uma obra desta autor, «A Procissão», é vendida por 125 mil euros, o que produz algum desconforto. «Não sei o que dizer», considera Aires Silveira: «Esta obra pertence à linha de um naturalismo tardio, muito próximo das peças de Malhoa. É muito ensolarada, com um jogo de sombra e luz muito marcado. Mas está dentro do naturalismo de tendência folclórica. Trata-se de um tema bem ao gosto português. Teve muito sucesso e foi muito apreciada pelo público da altura». Mas os conhecedores desta matéria continuam sem explicar o montante atingido pela obra. A conservadora do Museu do Chiado, embora «não saiba o que dizer», pensa que talvez as largas dimensões da pinturam possam abrir algum indício revelador. «Deve ter-se em conta que é uma obra de grande dimensão. Aguenta-se bem na grande dimensão».Estes comentários são verdadeiramente ensurdecedores. Anísio Franco solta-se: «Inexplicável? Não é nada inexplicável. É uma bela peça para uma obra de Sousa Lopes. Têm surgido poucas obras de arte à venda; por isso, no contexto do mercado de antiguidades português, é explicável!»
E assim vão as coisas das artes e dos mercados, o desentendimento dos naturalismos tardios e coisas assim, mesmo quando toda a gente sabe (nas esferas administrativas) que não houve em Portugal, durante décadas e décadas, até por snobismo, uma vasta retrospectiva de obras de autores deste género, com Malhoa e tudo, por forma a se estabelecerem melhor as verdadeiras grandezas. Importaria saber se outrora o público respeitava e visitava, como se insinua, um Sousa Lopes ou um Malhoa. Pelo menos para se perceber melhor os estímulos «milagrosos» que levaram multidões a esperar horas e horas para puderem ver e deificar Souza Cardoso. 1
1 Adaptado, quase ficcionado, de uma reportagem de Teresa Firmino publicada no Público de 7.03.07

quinta-feira, março 01, 2007

O REAL DENTRO DO HIPERREAL

pintura mural, de grandes dimensões em espao urbano nos EU

O enquadramento usado para realizar esta fotografia apoia uma espécie de desafio a este colossal trompe l'oeil na parede cega de um grande edifício, em ponto urbano, nos Estados Unidos da América. O efeito é poderoso, ainda que discutível em terms estéticos. Seja como for, aqui podemos confrontar-nos com os problemas da percepção visual e o modo como ela pode relacionar-se com um real inevitavelmente ambíguo, movente, e nunca susceptível de ser completamente apropriável através dos nossos meios naturais. É caso para se pensar, com ironia, que os carros pertencem à pintura, em primeiro plano, fingidamente áquem do maciço rochoso. A verdade é que, embora o afastado bloco rochoso pareça gigantesco na distância aérea, ele é apenas uma pintura que se ergue, a prumo, feita numa imensa empena que se ergue a não mais de um ou dois metros da parte da frente dos carros. Tal ensaio coloca-nos de facto os habituais problemas da percepção visual, da aparência e da realidade, numa relação perturbadora com o poder e a fragilidade da representação