terça-feira, setembro 08, 2015

O NOVO TEMPO DAS TRÁGICAS MIGRAÇÕES


  Deus ou o Horror?

Há dias, ao ver cenas indescritíveis das marchas desamparadas de ondas de imigrantes, após a retenção sem nome das pessoas na Hungria, lembrei-me de ter escrito: "Ninguém sabe se Deus existe e de que morte padece o Homem, crente do nada". A percepção das vagas humanas que se metiam em barcos de borracha e tentavam atravessar o Mediterrâneo, morrendo metade pelo caminho, concentrava-se depois nas chegadas às costas da Itália -- um monte de mulheres, crianças e homens, tropeçando nos próprios passos, a morte na alma. A grande Europa, que ainda há bem pouco tempo juntava eminências da finança e da política para julgar os «pigs» gregos, zurzindo os ministros daquele país da forma menos cortez que já se viu em situações assim, por razões colossais, capazes de assombrarem os santos, pareceu não ter-se dado conta do que estava a acontecer nas suas barbas e nem um fio de força humanitária sobrou das suas assembleias e grupos encarcerados de trabalho ou decisão. Nada parecia estar a acontecer, nem no auto-proclamado Estado Islâmico, nem nas terras queimadas da Síria, com uma guerra que produz milhares de mortos e deveria ser parada em nome da decência civilizacional. Campos de refugiados da Síria já existem há anos em varios sítios, a Jordânia que o diga, e o símbolo trágico de Yarmouk devia tirar sono a alguns senhores políticos do norte da União, padecida de si mesma, esses que desconhecem as horas e trabalho a sul e a história que alguns povos dessa zona gravaram na memória do mundo.
De súbito, por mar e por terra, mais dezenas de milhares de imigrantes surgiram de todos os lados, visando estabelecer-se no norte da Europa, nomeadamente na Alemanha. Alemanha, essa, que pediu então a solidariedade dos outros  povos  europeus,  gregos  também  --  pode imaginar-se  --  e engalanou  gente para receber os refugiados da guerra Síria, sobretudo, enquanto alguns protagonistas da fuga, bem avisados, chamavam a atenção de outros companheiros para o facto de, nas diferentes multidões, terem eventualmente viajado jihadistas activos, infiltrados  que poderão, nos países de chegada, garantir uma ideia menos pacífica do futuro, a desencadear no paraíso do euro.

Esta imagem do menino morto na praia, à qual uma revista associou o holograma de uma menina que saúda o espaço e o amor, num gesto incisivo, do coração, é hoje um dos mais trágicos símbolos das viagens em fuga, contra a guerra, a chacina e todos os totalitarismos emergentes ou sedimentados desde há muito.



Muitos povos, ao longo dos séculos, produziram diásporas imensas. Portugal é um país com mais de oito séculos de existência e sempre emigrou para longínquas partes do mundo, onde fez valer o seu direito ao trabalho e ao respeito pela sua condição. A História das Navegações Portuguesas marca o próprio desenvolvimento dos conhecimentos sobre a Terra, Continentes e Culturas. Nada disso poderá ser apagado, continuando a ensinar, mesmo na actualidade, muitas linhas de saber sobre migrações, sustentabilidade dos territórios, emigração, imigração integrada. Mas o que está a acontecer com as actuais migrações, sobretudo da Síria e das zonas onde o Estado Islâmico faz a guerra em completa barbaridade, não é um ideal de descoberta e de esperança. É particularmente um vasto impulso de fuga, sobretudo em direcção à Alemanha, na presunção de que o trabalho para todos, incluindo os direitos humanos, estarão todos ali, assegurados e sem racismo. O país vai acolher 800.000 refugiados. A catástrofe alarga-se em vários sentidos, pensa-se que até ao insuportável, e é certo que nas zonas de guerra há ainda, pelo menos, cerca de 11 milhões de pessoas esperando uma oportunidade de sair em direcção ao norte.


Não há razões, nem humanitárias, nem culturais ou religiosas, para que toda a gente acossada por alienados do poder, genocidas profissionais, tenha que rumar em direcção à Europa, apesar do déficit demográfico desta. A Europa, aliás, está a reaprender a solidariedade, porque a União com que sonhava está praticamente congelada em regras e orgãos especiais. Um melhor ajustamento dessa forma de gerir um espaço tão completo não pode depender das pressões económico-financeiras nem de ideologias mitificantes da História. Os refugiados, diferentes entre si, filhos de nações igualmente de perfis próprios, não podem ser apartados (à força do terror) do senso que desenha todo um tempo e toda uma história. A  África não se move apenas como esta parte em dura viagem. Depois disso, e pela grande realidade que sempre representou antes e depois da colonização, esse continente não tem necessariamente que se esvaziar. Além de que os países totalitários e sanguinários dessa zona devem ser levados a compreender as suas máculas, a relação entre as diversas etnias. Porque, no quadro actual, os que hoje fogem da morte, muitos dizem não compreender a razão daquilo lhes acontece, já com saudade da sua casa e das suas realidades. Um dia, muitas dessas pessoas poderão evocar o direito de regressar a tais paisagens, tendo os deveres assumidos e numa comunidade capaz de relacionar trabalho e liberdade. Os deslocados que entretanto choram os seus lugares de nascimento e de vida devem, amanhã, poder decidir de forma digna e segura a escolha aberta à vida que conceberem, sem medo, sem perdas. Infelizmente, já houve nos últimos dias sinais de desencanto, vozes que evocam as suas casas abandonadas, o dia-a-dia vivido com natural proximidade dos vizinhos, dos amigos, lugares de costumes elencados no trajecto da história a que pertenceram. "Até parece que a comunidade internacional não sabe como parar aquela guerra". O próprio presidente da Síria, só para acrescentar uma breve nota a tantas coisas ocultadas, também não sabe a forma de parar tantos males e pessoas em fúria, atrás de uma utopia sem rei nem roque. 

 

 HORAS DE PARTIR, HORAS DE CHEGAR, HORAS DE REGRESSAR