sábado, setembro 29, 2007

VANITAS, VANITAS, VANIDADE


Há representações de certa época que se consolidaram em torno da sagração e da morte, emblematizando na composição e nos símbolos do esquecimento, dos vagos sons, dos textos preciosos, de uma acumulação de coisas pertencentes à vã glória, o crâneo indispensável e o apelo à memória petrificada, perene. A verdade é que a origem desta moda, indício da natureza morta, envolve em véus sumptuosos esses sinais de vanglória superficial, a exibição, a frivolidade de quem ostenta no vazio, vanidade ou estultícia, um protagonismo fora do real, do discernimento e do bom senso. A música entrará no cerimonial assim edificado, a encher de vibrações as órbitas do rosto ósseo, melancólicas harmonias de timbre grave, para além do pó que desce sobre a própria obra, tornando-a baça, verdadeira ostentação do vazio, na beleza chorada de inépcias outrora, muito do que nos acontece hoje, coroas de flores sobre o mármore, à superfície dos cemitérios e por vezes na grandeza desconcertante dos jazigos, vanitas abarcando áleas de ciprestes, glórias inúteis das vanidades moldadas na pedra e nos vitrais de janelas góticas, vencimento glorioso e solene da morte. O infinito é uma mentira.

segunda-feira, setembro 17, 2007

ARTISTAS PORTUGUESES CONTEMPORÂNEOS | Paula Rego

cães vadios 1965

The Pillowman 2004 típtico

metamorfoseando-se, segundo Kafka 2002
Paula Rego é uma das mais importantes artistas do Portugal contemporâneo e fez grande parte da sua «escola», como ainda hoje acontece, em Londres. A primeira pintura deste conjunto é das mais antigas, dos anos 60, e, para muitos apreciadores da autora, ainda das melhores e mais inventivas séries de Paula, porventura muito na base do seu estudo
em instituições inglesas. Seja como for, as suas gravuras conservam o sentido de história e situam-se, por assim dizer, entre a sua fase dos anos 60 e a deste século.
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Paula Rego considera-se uma contadora de histórias, mesmo quando a sua obra, na década de 60, se mostrava convulsiva e abstracta: ela encontrava sempre nesse universo estilhaçado os cães de Barcelona, o regicídeo, entre outras «narrativas» de um imaginário carregado de fantasmas alegres e sombrios, mundo afinal orgânico que parecia desmembrar-se e dilacerar-se de dentro para fora.
Desde o fim dos ans 70, Paula Rego, usando em Londres um modelo feminino quase grotesco à partida, trabalha a crayons de óleo situações aterradoras, algo abjectas, mostrando a mulher numa situação de escravatura actual, engtre cenários de hoje ou fingidamente de outra época. A par dessa linha, os personagens multiplicaram-se e as histórias (ou alegorias) vieram descrever interiores e exteriores em sucessivas encenações meio absurdas, o que se pode apreciar nas obras feitas para a Presidência da República (o martírio do sagrado) como no tríptico «The Pillowman» (2004). A cena da metamorfose, a pequena assasina, war, são outros temas de uma infinidade de peças que se espalham pelos museus do mundo e estarão presentes dentro em breve no Museu Rainha Sofia, Madrid.
A técnica poderosa, a fealdade dos seres a par de rostos que aspiram à beleza da escese, tudo isso passa por grandes composições onde o realismo se casa com o expressionismo, talvez mesmo com o surrealismo, cenas ásperas, tão contemporâneas quanto medievais, a violência encoberta, o desejo, a carne degradando-se em vida, as encenações de situações angustiantes, as coisas soltas, o mundo, o destino humano entre maldades e a beleza juvenil. Ao fundo, na paisagem ou entre janelas, a morte. Paula Rego não o representa mas ela faz-nos pressentir essa dimensão figurada ou ausente.











ANJO 1998

terça-feira, setembro 11, 2007

FOTO JORNALISMO NO HORROR E NA SOLIDÃO

foto de Nicolas Asfuri Frande Press
julho 2006
Elementos da Cruz vermelha retiram o corpo morto de uma criança dos escombros de uma casa no Gana. As palavras são cada vez mais raras para classificar este genocídio global que mancha o mundo com grandes extensões de sangue, da humana catástrofe.


sala de estar de uma barraca no bairro das Marianas, em Carcavelos
foto de Rui Gaudêncio, Público
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O foto-jornalismo, a par de diversos tipos de representação fotográfica, corresponde por vezes a um trabalho penoso, marcado pela dor alheia e pela nossa própria angústia. O mundo retrata-se cada vez com mais meios e menor campo de equilíbrio, de consensualidade, de pontes sustentáveis entre povos, sistemas, alternativas em nome da paz. Estas palavras constituem
já um insuportável lugar comum, mas quase ninguém dispõe de vocábulos de substituição.
A aparente serenidade europeia, que a União defende em termos de uma sofisticação
inútil, sobretudo porque as diferenças são aproveitadas para domínio de certos países
sobre os outros, esvai-se em normas, ou tratados cínicos que não abreviam conflitos nem
os sofrimentos de que todos, afinal, dependemos.

segunda-feira, setembro 10, 2007

MADELEINE, UM ROSTO DE SÚBITO IRREAL








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Na altura em que Madeleine desapareceu do aldeamento da Praia da Luz, enquanto os pais jantavam com amigos ali perto, algumas pessoas criticaram, de forma ainda moderada, o facto dos pais terem deixado dois gémeos e a menina, mais velha, a dormir, cerca das 19.30h. São hábitos, é ouitra cultura, diziam. E em plena luz do dia, quando toda a gente se deixava arrebatar com o que parecia ser um rapto bem executado, a cordialidade para com os pais, Gerry e Kate, foi muito calorosa, entre gestos e palavras sentidas. Nós próprios prestámos aqui uma alento aos pais, publicando uma bela fotografia de Madeleine, e enunciando as calamidades deste tipo que de crimes que se abatem cada vez mais sobre as famílias, um pouco por toda a parte.
Por estranho que pareça, a espera, depois das buscas no terreno, começou a envolver aspectos intrigantes, um novelo de notícias perante o programa de viagens dos pais a muitos países, apelando pela a entrega da filha e colocando cartazes em tudo quanto era sítio. A certa altura, o efeito de novela parecia assustador: os pais tinham assessores e advogados, davam conferências de Imprensa, Kate sempre com um ar hermético e a obsessão de transportar o boneco peludo que pertecia à filha.
Esgotadas certas pistas da teoria do rapto, a polícia recolhe indícios de sangue e material orgânico, quer no quarto da menina, quer num carro alugado. Todas as cabeças se voltam para os pais, numa suspeição que decorria da viragem das investigações e de longos interrogatórios a que foram sujeitos. Põe-se a hipótese de acidente, negligência, homicídio, ocultação de cadáver. Kate e Gerry passam à condição de arguidos com coação de apresentação periódica à polícia, o que não os impediu que tivessem regressado a Inglaterra, onde cumprirão as obrigações legais.
Este é um caso de estudo, pois em boa verdade ninguém pode, agora, dar como homicidas estes pais, a despeito de toda uma encenação internacional, atitudes regulares mas de inquietante tensão, contradições iniciais, silêncio entretanto. Era bom que houvesse um cabal esclarecimento do caso, pois a ficar-se sem a presença do corpo e em face do tráfico de influências habitual, uma boa parte pedagógica dos eventos perder-se-á. Veja-se como o povo da Luz, solícito e carinhoso de início, não se envergonhou de apoupar os pais de Madie logo que eles foram apenas colocados na condição de arguidos. Aliás, comportamento muito mais grave do que este (de gente pouco dada a ponderações mais profundas) foi o de certa imprensa inglesa, recorrendo às mais feias insinuações sobre a polícia portuguesa (incompetente, no mínimo) e reinventando a realidade a seu belo prazer, uma soberba típica de muitos subditos da Rainha, pessoas que tendem a ter sempre razão, a dizer de alto os erros que cometem como verdades incontornáveis. Da parte portuguesa, profissionalmente, as atitudes foram correctas, cedendo aos ingleses a prioridade no estudo dos indícios mais delicados. Gente que nem parece da Europa, que sugere ainda uma mentalidade colonial. apesar dos patamares de evolução que todos lhe reconhecem, cobre uma ilha desligada da Europa, na geografia e em muitas outras coisas, exige, conduz, nega-se a aderir ao euro, aproxima-se da negação de outras ligações e deveres. O que é bom que venha. Mas a nossa soberania em todos os sentidos não pode ser beliscada de forma nenhuma. A Inglaterra dos piratas e das grandes explorações coloniais, com privilégios na roda do mundo, tem uma das mais rasteiras imprensas de tablóide que conhecemos e portou-se, de um ponto de vista monárquico e institucional, de forma sinuosa, obscura, discriminatória, em muitas das situações que rodearam a vida e a morte da princesa Diana.
Madeleine, na sombra dos odores que os cães farejam, é hoje um rosto emblemático mas definitivamente irreal.

sexta-feira, setembro 07, 2007

A SUAVE ESCRITORA E OS TERRORISTAS

Margarida Rebelo Pinto

Esta conhecida escritora das nossas letras, protagonista de grandes êxitos editoriais, em particular quanto aos milhares de livros vendidos, tem sido louvada e combatida por diferentes protagonistas da cena intelectual portuguesa, cronistas e críticos literários, aos quais ela responde de forma desnivelada, sobretudo desnecessária. Agora apareceu a atacar os «blogues», aquilo a que chama, destemperadamente. «um território de guerrilha suja, protagonizada pelos terroristas da Internet». Assim, tal e qual, todos ao molhe. Olhe, Margarida, eu uso este «territótio» como uso a pintura, o cinema e a literatura. Saberá você que, tendo eu uma obra vasta e de qualidade reconhecida (sem pretensão às filas da frente, claro), fizeram-me ancorar aqui e além, poucas críticas aos meus livros sabotados pelas máquinas editoriais e outras, pouco estudo da pintura, audiências da tarde, pelas seis horas na televisão (séries culturais sobre arte), um cinema de ensaio premiado lá fora e usado sobretudo na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Este ficar entre parenteses, este esboço de esquecimento, estas marcas do tráfico de influências inacessível, tudo isso (fora a vida académica) são dores que você não sente, circunstância que pode afectá-la, deixando-a contudo refém de um êxito periférico, cujo significado mais profundo tem maior importância quantitativa do que literária, presumo. Públiquei «Os Passos Encobertos» (romance), «Amnésia» (teatro), «Angola 61, uma crónica de guerra» (factos reais de uma comissão em Angola), «A Culpa de Deus» (romance, para um ensaio sobre o livre arbítrio). Foi decisivo o romance «A Casa Revisitada». Está para sair «Memória das Velhas Artes e os Segredos Conventuais», «Nojo aos Velhos também», e escrevo entretanto crítica de arte no JL, como aconteceu no Diário de Lisboa, Colóquio, Opção. Não estou a fazer o meu currículo: estou a mostrar-lhe que esta obra, reconhecida por personalidades de grande relevo, por vezes até indignadas com os silêncios, não passa pelo largo crivo oferecido à sua escrita. E isso revela como se sufoca em Portugal, como se discriminam valores erradamente, porque, para falar do seu caso, convido-a a ler A Culpa de Deus, avaliando-o segundo o seu critério, tentando perceber se tal obra é menos digna do que qualquer das suas. O que fazem as distribidoras e os escritores uns com os outros? Você acharaia mal que constitíssemos um Observatório para esta área, entidade ordenadora de quantidades, qualidades, regras, pareceres, propostas e definições vinculativas em certos casos? Se você não monta nenhum «blog» é porque pode escrever um livro num mês e atirá-lo para além da própria Internet. E creia que nem todos os bloguistas são terroristas, porque, em geral, são muitas coisas mais. Veja lá não lhe apeteça o caminho de Espanha, como o nosso colega Saramago, a globalidade subverte tudo em toda a parte. Faça por admirar também os seus inimigos. Torne as suas indignações matéria literária.

AS PAREDES FALANTES E A CASINHA MOTORIZADA


Há sítios, em certas cidades e aldeias do interior, que nos apresentam coisas de grande contraste e ironia. Veja-se este caso curioso: os meninos ladinos da rua, grafitavam sem zelo paredes e empenas, perturbando com esse ruído visual as coisas em volta. Desactivado o cinema, construção desproporcionada com mão de engenheiro, a empena sul, desgastada e cega, era por vezes atacada pelos rapazes dionisíacos, que atiravam latas de tinta, superando Pollock, à parede vagamente branca. Pacientemente, os responsáveis pela cidade e o dono do cinema «paraíso», pintaram de novo toda a parede e mandaram chamar os «meliantes». Disseram-lhes que as leis são para cumprir e que o dadaismo deles enlameava uma cidade ultimamente bastante cuidada. Por isso lhe faziam uma proposta: que eles pintasse a sério, na faixa inferior da parede, e que depois logo se via. Esta acto pedagógico (algo arriscado) resultou nestes bonecos aqui apresentados: não se tratam de grafittis de cunho superior, como se vê por esse mundo fora, mas nota-se o desejo dos «artistas» em minirar os impulsos e controlar a mensagem.
Ali perto, muito perto mesmo, há uma longa fila de casas térreas, dos anos 40, onde moraram muitos operários corticeiros. Quando esses operários tiveram de migrar ou emigrar, pela destruição daquela indústria transformadora, houve descendentes dessas gerações perdidas que por ali ficaram, remoendo os dias e conservado o tecto. O mundo espalhou mal as oportunidades. Mas posso garantir-lhes que o carro estacionado diante do prédio pertence a um membro da nova comunidade. Um descendente de outra maneira de trabalhar. Coisas do tempo.


segunda-feira, setembro 03, 2007

LUGARES COM A MORTE ANUNCIADA




O jornal Público apresenta hoje, dia 3 de setembro, 07, uma reportagem sobre Grand-Lahou, cidade em vias de extinção na Costa do Marfim. Texto sintético. Profundamente tocantes as fotografias de Issouf Sanago /AFP. As pessoas ainda sorriem quando se fala em grandes catástrofes planetárias e insistem em considerar que o problema do aquecimento global é um mito urbano.
Há muito tempo, em Grand-Lahou, a população residente deslocava-se pelas ruas, vivia a plenitude das culturas locais, plantava coqueiros, cumpria, enfim, os deveres de cidadania e respondia aos preceitos religiosos, ao baptismo, por exemplo, esperança no futuro para além dos mortos enterrados na ritualidade própria e no desejo de um «reino» para além desse silêncio.
A primeira nota do texto informa-nos de que ainda há vida em Grand-Lahou, qualquer coisa como cinco mil habitantes, dos anteriores 20.000. Cerca de 15.000 deslocaram-se para longe dali, transportando tudo o que tinham, procurando assim uma vida melhor e tendo em conta que o mar, ali, continua a avançar por cima de tudo o que foi ficando.
a padaria de Maïga
Para Maïga, Grand-Lahou já foi Terra Prometida. Quando saiu do Mali estava informado de que o mar poderia galgar a terra, mas a sua fé levou-o a montar uma padaria em Grand-Lahou (1962), desacreditando dos brancos que lhe haviam anunciado o tempo das águas, das inundações irreversíveis, da morte dos coqueiros, do desaparecimento das construções em adobe precário.
cemitério submerso
Se é verdade que Grand-Lahou chegou a ser um dos principais entrepostos coloniais da Costa do Marfim, também é verdade que os missionários brancos, por 1920, tomaram as coisas a sério e iniciaram ali um trabalho incisivo de evangelização. Os mortos enterravam-se a preceito e o tempo de nojo tinha sentido. Hoje, o presidente da Câmara, diz para os jornalistas deste trabalho: «É triste ver o cemitério cristão dos nossos pais despaperecer no mar». Uma água impiedosa, na espuma dos dias, arrasa as campas e rende uma estranha homenagem a pessoas que outrora pareciam eternas.
a morte anunciada
Como é habitual em muitos destes casos, os habitantes daquele lugar, e outros, responsabilizam o governo da Costa do Marfim por nada ter empreendido a fim de travar a subida do nível das águas do mar. Falta-lhes relacionar melhor a frequência e o aumento das tempestades bíbiblicas, os dilúvios, a convulsão da própria terra. Há espaços e vidas que, pelas suas características, são empurrados para o início de grandes transformações terrestres e oceânicas. O aquecimento é global mas esse o problema aqui afectará, de forma particularmente severa, a costa ocidental de África. Foi desenvolvido, por especialistas norte americanos, um importante estudo onde se calcula que o mar possa subir ainda mais 50 cm até ao final do século, com custos colossais para o país.
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N. texto extraído da reportagem já referida, embora apresente alguns pontos de reescrita.

sábado, setembro 01, 2007

CULTURA TRANSGÉNICA DA CRÍTICA POLÍTICA

José Pacheco Pereira
professor

Personalidade de grande assiduidade interventiva, prestando trabalhos multimédia aos orgãos da comunicação social, instituições universitárias, forças partidárias e acontecimentos de reflexão política a diversos níveis, Pacheco Pereira tem marcado um longo período pós 25 de Abril da vida portuguesa com inusitada veemência teórica, incluindo o plano inventivo das hipóteses de transformação dos governos, sem desvios de uma democracia mais robusta de um ponto de vista ético. No último número da revista sábado, 30 de Agosto, 2007, coluna «A lagartixa e o jacaré», este erudito comentador preocupa-se com a RTP. Inquieto sobre quem manda nela, imagina-a governada por uma cadeia hierárquica que depende do par Santos Silva - Sócrates, como no passado aconteceu com o par Morais Sarmento - Barroso. Estes receios, poventura justificados, fazem parte do elenco de eventuais mordaças aplicadas ao universo da imprensa escrita ou audio-visual, que muitos apontam ao governo (leia-se Sócrates) e a uma espécie de projecto Big Brother para a nossa sociedade em geral, numa gestão orwelliana mais fina dos últimos fios de liberdade. O medo de ser português chegou às bancas em forma de livro, mas Pacheco Pereira, capaz de citar algum epifenómeno desse tipo, não é jogador cobarde, nem se furta aos possíveis ataques dos seus próprios correligonários: saltará sempre a crista da onda, criando rectaguardas demolidoras. A RTP foi sobretudo mais um pretexto para fazer política e atacar o primeiro-ministro, figura a quem reconhecerá alguns feitos e alguma coragem, mas que se aproxima cada vez mais do fim do mandato e da natural perda da maioria absoluta no Parlamento. Embora os monitores caseiros andem atulhados de futebol, como sempre, Pacheco Pereira, quanto à RTP, acha que ela está demasiado sobrecarregada de «momentos Chávez», expressão algo grosseira para caracterizar os momentos (quanto a mim, muito escassos) em que o primeiro-ministro aparece nos ecrãs. Pacheco diz que Sócrates se apresenta «compostinho e grave, a falar do palanque nas condições preparadas profissionalmente pela sua máquina de propaganda». O povo gosta desta visão chocarreira aplicada aos governantes, mas a intervenção séria sobre tais problemas, e num país ainda largamente iletrado, deve reger-se por melhores critérios éticos, não por uma espécie de hipertrofia transgénica no apontamento dos erros e dos fatinhos domingueiros. O crítico, aqui, acha que tudo é sempre encenado, calculado, incluindo figurantes, e enquadramentos de reportagem. E em todos estes aparecimentos do primeiro-ministro na televisão (aparecimentos a que chamarei, por agora, esporádicos), Sócrates «não se pronuncia sobre nada de importante, seja a 'ceifa' transgénica e a apatia da GNR, sejam as estatísticas preocupantes da enonomia portuguesa, seja o silêncio sobre as negociações do célebre 'tratado reformador', sobre o qual nada se sabe, apareceu de novo para as habituais sessões de propaganda». Depois, e na mesma forma, a frase ácida vai para novos pretextos de gabarolice saloia quando o primeiro-ministro entrega computadores ao abrigo do Programa Novas Oportunidades, «ocasião única de armazém, que pode ser repetida quantas vezes se quiser». A entrega dos computadores tem de facto um significado real de grande importância se pensarmos a sua relação com outros problemas da área do ensino, mas concordo que, repetida cem vezes, ou mesmo cinquenta, ou mesmo dez, ou mesmo cinco, pecará por redundância política. Quanto ao resta, as coisas fiam mais fino. E das duas, uma: ou Pacheco Pereira é a personalidade culta, sólida e séria que tantas vezes tem procurado fazer passar, ou o seu inegável talento analítico e literário estão enlameados pelo lado mais soez da política, precisando o autor desse género de populismo para apontar erros a Sócrates e ao Governo. Se estivéssemos em lugar e circunstância adequados, penso que valeria a pena confrontar Pacheco Pereira com as descaracterizações, distorções, mal-dizer paranóico, intencionalidades enviesadas, partindo apenas do modo de usar palavras como propaganda, máquina, recado governamental, conveniência, condições preparadas, palanque, falar do palanque, sempre com amplo tempo, compostinho e grave, mitologia ideológica do serviço público, e, entre outras falas engrenadas como vimos atrás, para terminar com o golpe fulminante «momentos-Chávez», momentos inadmissíveis em termos jornalísticos, sobretudo na «oficiosidade» das notícias. Lamento este género de colorido e de vocabulário, com a carpintaria jocosa (para dizer o menos) que nos foi oferecida em toda a crónica «Problema da RTP». Tal trabalho jornalístico, em vez de um outro mais didáctico e com menos empáfia, esse sim, é que anuncia o medo, é que engatilha a humilhação, é que borra o retrato para que nos sintamos pequenos e informes ao espelho do «Big Brother».

Rocha de Sousa

SARAMAGO FUNDADO E FUNDAMENTADO


O Nobel português da literatura acaba de criar uma Fundação. Pilar del Rio, sua mulher e tradutora para Castelhano, é a presidenta. O «Expresso» esteve com o casal no seu refúgio de Lanzarote. Esta é a notícia e apresentação da capa da revista UNICA, daquele semanário, de 1 de Setembro de 2007, rasgada a branco sobre uma pose fotográfica do casal, cuja expressão arrasta uma certa ambiguidde. Pilar não deve ter culpa da impressão a duas páginas do casal e sua casa, com legendas típicas das reportagens feias à alta sociedade, sobretudo depois da frase dela: viemos viver para uma ilha, rodeados de vulcões, porque não nos interessa a vida social, não nos interessa o brilho e a espuma social. Pois sim. Mas esta reportagem vale os olhos da cara e representa por isso mais do que muitas visitas sociais, enche bem uma piscina com a mornidão da «espuma social» e do seu «brilho». O escritor, talvez inquieto com a necessidade de dar corpo a realidades da sua passagem pela terra, acabou por aceitar fundar uma Fundação para memória futura, cremos nós e não é má ideia, não senhor. Até porque, como se escreve no jornal, são atribuidas a Saramago as seguintes ideias: a intervenção cívica é uma atitude característica do fundador que considera estarmos a viver numa época onde não há pensamento, nem reflexão. Ele acaba de lançar duas polémicas que estão aí a dar os seus frutos: a constituição de um novo país, a Ibéria, e o facto de ser uma atitude neocolonialista chamar-se à Améria (a que não é Estados Unidos nem Canadá) América Latina ou Hispano-América. Podem ser ideias polémicas mas não reflectem nada de soberbo para o mundo, todo esse mundo que tem que ser pensado, porventura com mais Fundações e menos Américas. A teimosia do escritor no seu casamento com Espanha parece esquecer, com algum cinismo, o papel de Portugal no Mundo, os espaços que desencadeou como nações, submetendo-se à História, do Brasil a Timor, e os milhões de pessoas que falam português. A nossa diáspora é extraordinária e só em Paris vivem dois milhões da natural projecção portuguesa, nação que é, em identidade formal, linguística, cultural, a mais antiga da Euopa. Quando o Rei de Espanha saudasse a nova província da Ibéria, milhões de portugueses em todo o mundo gostariam de cercar Lanzarote de terra vermelha, acabando com a solidão bonançosa rodeada de oceano e de súbito colonizada pelas palavras de «Levantado do Chão». Há cada vez mais chão nas palavras e na invenção geo-política do mundo. Sabemos pela voz de Pilar que, em certa altura, Saramago sonhava coisas extraordinárias, sonhos que depois não recordava. Mas eram estranhos e por vezes falados para todos. Os sonhos, diz Pilar, eram em português.











um trecho de Lanzarote e o amor junto do vulcão