sexta-feira, janeiro 17, 2014

A TELEVISÃO TORNOU-SE TÓXICA E ANTI-CULTURAL



A Televisão é uma das mais extraordinárias invenções do Homem, marcando decisivamente a vida das populações e um novo quadro da comunicação audio-visual. Por outro lado, tudo o que aconteceu na sequência da electricidade, electrónica, rádio, contacto entre comunidades, à distância e sem fios, veio revolucionar muitos quadros da reestruturação das sociedades em desenvolvimento ou em vias de desenvolvimento. Não apenas mas sobretudo. E o século XX, apesar das duas grandes guerras que arrasaram parte do mundo, sobretudo a Europa, beneficiou em parte com a própria tragédia, mesmo no imenso lamento pelos milhões de mortos e nos custos dos difíceis trajectos de reconstrução, em particular na Alemanha. Um apelo à paz, à harmonia entre os povos, a par das tecnologias favoráveis a vários tipos de desenvolvimento, tudo isso, com a Sociedade das Nações e depois a ONU veio contribuir para um período de estabilização, um tempo de paz, à medida que as descobertas de meios de construção e comunicação permitiram entender melhor o território, as cadeias de produtivas, novos enquadramentos do trabalho, da educação e da pesquisa científica. Aí se integraram muitos dos passos mais nítidos para a socialização do meio televisivo, design e tecnologia, enquanto a Rádio, já muito bem difundida, procurava tornar bem acutilante a nitidez da sua especificidade.
Foi uma época determinante na qual se chegou a imaginar um "mundo futuro" de importantes fecundações pela arte, pela ciência e por novas teorias do comportamento. Os povos apostavam na diversidade dos aparelhos apropriados à decisiva sedimentação das cidades, à melhoria das vias de comunicação por terra, através dos oceanos e do imenso espaço atmosférico. O crescimento de tudo isso induziu, em muitos outros percursos, a variação contínua de respostas às necessidades que estivessem ainda mal apoiadas, ou a partir delas, mercado a mercado, o inquietante processo que se dedicava a multiplicar respostas e a inventar novas necessidades, laterais, quase absurdas, mas cujo fascínio foi criando nas pessoas uma espécie de doença do consumo, apetências por mais do mesmo, sem a noção do equilíbrio e do desenvolvimento harmonioso das comunidades. 
Nesse quadro da roda dos encantamentos, a televisão passou a ser um objecto e um fim domesticamente essencial, cada vez em maior concorrência com outros meios da mesma raiz e sobretudo na base alucinatória da competitividade: programas, concursos, publicidade intensa, da brandura ao maior dos choques, entre lutas de personalidades, actores, séries, especulação noticiosa, debates, exposição do insólito, a sociedade desvendada, virada do avesso, rolando para uma bola de neve cada vez mais suja de ruídos e pesados imaginários -- sempre suspeitos, no auge das incríveis proezas de impossíveis heróis ou de cartáticos apocalipses.


Na Televisão portuguesa ninguém soube (nem podia no tempo do antigo regime) abarcar as hipóteses conceptuais e formais de começar a operar muito mais tarde do que noutros pontos do mundo. Por estranho que pareça, houve naquele tempo mais crítica de televisão (Mário Castrim, notável pela sua acutilância) do que a partir do regime democrático. E quanto mais liberdade se verificou no âmbito das disciplinas criativas (artes plásticas, literatura, cinema, teatro, música) menos os jornais e revistas dedicaram um interesse analítico e pedagógico em torno de todas essas questões. A Televisão (cega, surda e muda, apesar de colorida e digital) está a afundar-se no mesmo buraco negro (apenas ruidoso) para o qual escorre a própria cultura, aquilo a que chamamos civilização contemporânea. Eventos elaborados no sentido de um gosto massificado, que são procurados por multidões alucinadas, num domínio de som acima de toda a prudência concorrem com as Televisões e estas retrucam com os mais díspares programas ditos de entretenimento e que não passam, na grande maioria dos casos, de concursos nos quais os espectadores se sujeitam às mais absurdas torturas, tocando vermes, aranhas, cobras, ou aceitando que sobre eles se derramem detritos e líquidos hipoteticamente coloridos. Noutros casos (Big Brother, Casa dos Segredos) os pacientes são encerrados em acomodações toscas ou pop, vigiados por dezenas de câmaras 24 horas por 24 horas, compelidos a respeitar uma VOZ que os confessa e os leva a proceder contra os outros companheiros em acções não éticas, de traição e jocosidades grosseiras, entre muitas outras actividades ignóbeis, regularmente atiçados por uma condutora impensável, que troca avisos, inventa situações e insinua encontros entre rapazes e raparigas, sexo, namoros e inevitáveis intrigas. A clausura, sem contacto com o exterior por dois ou três meses, excita os protagonistas, atira-os uns contra os outros, reduzindo a sua educação à boçalidade, lutas verbais, assimetrias de comportamento, tudo na expectativa de cem mil euros de prémio. Não há debates exteriores sobre esta anormalidade, os seus efeitos no público e nas cobaias, aliás escolhidas consoante os objectivos mais controversos.
Durante manhãs inteiras, os diversos canais, arregimentando público local, gastam horas em quase nada, aos gritos, misturando alhos com bugalhos, entrevistando pessoas destroçadas, seguidas de músicos de ocasião ou de fenómenos risíveis, afinal insensatos . Há rodas da sorte, milhares de euros (à sorte) para quem telefone para o estúdio (números repetidos entre gargalhadas) e esteja assim durante toda a manhã à espera que o acaso lhe venha ter às mãos.
Todos os canais concorrem entre si, mostrando ao mesmo tempo coisas do mesmo tipo, cartelizando os próprios e grandes espaços de publicidade. As telenovelas (duas ou três por noite) são precedidas de intervalos de publicidade colados em massa, durante mais de 20 minutos. Não é coisa para cardíacos. Aliás, abruptamente, no decorrer de qualquer das novelas, a acção é cortada por anúncio breve -- 20, 30, 45 segundos, durante os quais explodem mais anúncios seja do que for. Aliás, o problema da publicidade atinge níveis ilegítimos dentro de qualquer programa eticamente correcto. O cinema desapareceu dos programas regulares, os debates em torno da situação nacional (sócio-política) misturam as mais variadas gentes, não têm coordenação capaz, os espectadores são confrontados por vezes com quatro intervenientes a falar ao mesmo tempo. O contraditório é interrompido, não há esclarecimento nem qualquer valor pedagógico, visualmente apoiado. Sem mais, um debate "mais sério" pode ser interrompido por emergências acéfalas em torno de casos do futebol. Futebol infecta tudo, respeitado acima das próprias tragédias. Os debates sobre futebol duram horas, ocupam dois ou três vias noticiosas, ao mesmo tempo, e a qualidade das falas (no conteúdo, na forma, na margem) deixa estarrecida qualquer pessoa de bom senso. A contagem dos minutos de um programa, no fim, é coisa inominável, sobretudo em confronto com os extensos concursos de arrasante esforço cançonetista, cantigas de outros, imitações por vezes brilhantes mas não aconselháveis a um sério plano cultural verdadeiramente criativo. As figuras que aceitam fazer rir, em cenários pacóvios ou atafulhados de néons e torturas lumínicas em movimento, é gente pouco informada sobre as boas correntes do humor, abaixo de toda a dignidade de fora e conteúdo, ou imitando "vozes meninas" e sufocadas ou enviesando os tons e as posturas. São coisas indescritíveis onde até aparecem talentos, mas inevitavelmente soçobrando na banalidade e grosseria. 
Mas o país consome cada vez de forma mais alarmante todas estas frutas espinhosas, matando uma sede que já não sabe identificar. Porque, fora do ecrã, até se sujeita a ver cinema em caixas de fósforos, por altos preços e tendo de suportar bandas sonoras distorcidas até à surdez. A televisão aborda as artes em pingos ocasionais -- 30 segundos para noticiar uma exposição, nada sistematizado no tempo e no espaço sobre teatro, livros, encontros em torno de questões científicas, sobre o ensino, sobre autores do país e do estrangeiro. A notícia dessas coisas pode não ser bombástica nem barulhenta, mas é cada vez mais indispensável em termos da consciência do meio e da cadência de alternativas que os grupos minoritários (com direitos expressos) seguem a sério.
A Televisão portuguesa  precisa de comissões avisadas para regular o barbarismo dos conteúdos e dos buracos negros de publicidade que enche ecrãs cada vez mais inúteis (e até prejudiciais) perante o serviço que "vendem" a um público destroçado sem o saber.

segunda-feira, janeiro 06, 2014

MORTE DE EUSÉBIO: IMPOSSÍVEL NÃO SENTIR

Eusébio
Ao presenciar o trabalho deste homem singular, seguindo de longe a sua prestação, é impossível não sentir esta vontade de o lembrar aqui, a preto e branco, tocando com os lábios a famosa bota de ouro.

domingo, janeiro 05, 2014

PARA RELER PLUMA CAPRICHOSA: DETROIT E NÓS

A questão é a eliminação do poder das constituições e das regras da justiça social, em nome da «emergência»


«Um Juiz do Tribunal de Falências para o Distrito do Michigan, um juiz federal, autorizou formalmente a declaração de falência a cidade de Detroit, e  decretou que, neste caso, a obrigação de pagar as pensões públicas deixava de ser intocável. As leis do Estado do Michigan e a Constituição proíbem que se toque nas pensões públicas. Um jurista perito em legislação municipal acha que a decisão pode vir a mudar a intocabilidade das pensões, não apenas no Michigan como em outras cidades com problemas em pagar pensões de funcionários públicos. Cidades como Los Angeles, Chicago e Filadélfia. A decisão do juiz federal considera que os benefícios  das pensões  são um direito
contratual e não estão abrangidos pela protecção especial num caso de falência municipal ao abrigo do Capítulo 9.
Detroit está na bancarrota. A cidade foi a 4ª maior e é hoje a 15ª. Perdeu centenas de milhares de habitantes (1,8 milhões  para 700 mil). Os serviços públicos deixaram de funcionar, circula apenas um terço das ambulâncias e a polícia consegue apenas fechar 9% dos casos reportados,  apesar do aumento  da criminalidade. Os bombeiros, que não têm mãos a medir, devido aos casos de fogo posto, estão mal equipados e sem meios. Udevastadorm gestor especial de falências, nomeadamente pelo Estado, Kevyn Orr, pretende iniciar já o plano de recuperação da cidade com base na decisão, pagando uma parte apenas dos 18 mil milhões em dívida (da cidade) e restaurando os serviços essenciais. Este plano chama-se «Plano e Ajustamento». A cidade vai vender património e reinvestir o dinheiro nos serviços públicos.


Para as famílias com rendimentos fixos, qualquer corte na pensão será devastador. Os sindicatos e os gestores de fundos de pensões prometem luta judicial, recorrendo a um tribunal superior, mas nenhum líder sindical tem dúvidas de que se a decisão vingar, o resto da América atacará as pensões.


 Os reformados e pensionistas ficarão sem apoios, sem comida, medicamentos, carro, e serão despejados das casas e dos lares. Um bombeiro que recebe uma pensão de invalidez depois de ter ficado gravemente incapacitado num incêndio, acha que a decisão, considerada ilegal e amoral, é o "canário na mina." Resposta oficial: "Não há dinheiro". Numa manifestação de protesto, liam-se nos cartazes as palavras Bank of America, um dos bancos americanos  resgatados  pelo contribuinte americano. Nesse caso, ninguém disse que não havia dinheiro.
O declínio de Detroit tem muitos factores. A cidade sustentava-se praticamente de uma única indústria, a automóvel (resgatada também pelo contribuinte americano) e acumulou lideranças municipais corruptas e incompetentes. Junte-se a isto a tensão racial, a pobreza e a desigualdade. A dada altura, Detroit pedia emprestado para pagar empréstimos anteriores, um círculo vicioso semelhante ao da dívida portuguesa e dos juros. Com a diferença de que Detroit não pagará a dívida toda nem os juros. E um dos últimos presidentes da  Câmara, Kwame kilpatrick foi condenado a 28 anos de recandidatar-se cadeia por crimes de extorsão, fraude e corrupção durante um mandato entre 2001 e 2008. As falhas da da liderança política foram, antes e depois dele, as grandes responsáveis pela falência de Detroit. O mayor que lhe sucedeu demorou pouco tempo no cargo e escusou, e o mayor actual teve de ceder poderes ao gestor especial de falências, Kevyn Orr.
A guerra prossegue agora nos tribunais, e as decisões finais das batalhas judiciais serão analisadas à lupa e aplicadas ou não nas outras cidades, com ou sem o sistema bancarrota. Na vida da democracia americana, nunca o princípio constitucional da inviolabilidade das pensões  tinha sido posto em causa, mas o próprio juiz que a decretou considera e das regras daque há sempre recurso para o tribunal superior. O que os sindicatos e fundos tencionam fazer. Dado o estado de emergência da cidade, o juiz acha que o processo deve ser acelerado. posto em fast track, para que a cidade não fique muito tempo paralisada pelos tribunais. A cidade e o "Plano de Ajustamento."
Não custa traçar paralelos entre o que está a acontecer na Europa e em Portugal, com os seus planos de ajustamento, embora no caso de Detroit ninguém fale em austeridade (seria irónico). O que importa reter é que o sistema dominante arranjou uma maneira definitiva de dar cabo dos direitos adquiridos das pensões públicas, um princípio sagrado desde a sua instituição. O que o futuro nos prepara é simples: a pensão é matéria aleatória. Há dinheiro mais do que suficiente na América para  salvar Detroit, e muitos exemplos do empreendorismo da cidade já se notam por todo o lado, numa espécie de renascimento urbano. A questão não é saber se há ou haverá dinheiro. A questão é a eliminação do poder das constituições e das regras da justiça social, em nome da "emergência".Lá como cá».
Revista do EXPRESSO de o4.01.2014| pluma caprichosa | Clara Ferreira Alves.

quinta-feira, janeiro 02, 2014

PORTUGAL FESTEJA, CONSOME, TROIKANDO

Aqui temos, quase três anos depois da abertura real da crise e do avanço colossal da troika, Portugal vivendo, em plena balbúrdia, as festas tradicionais do Natal e da Passagem do Ano: fogo de artifício, fogos nos rabos e nas cabeleiras, popularmente mas a par das noites em hóteis de luxo, mulheres lindas, vestidos a condizer, uma cozinha esquálida, obras de artes plásticas, entre pequenos cubos e cilindros, pinceladas a condizer, chupáveis juntamente com frutos miniaturais vindos do Extremo Oriente. Andar pelas ruas naquela noite, rasando os sem abrigo, a malta embriagada, as multidões de roupas coloridas, bandas e cómicos numa idade média em pleno Terreiro do Paço, fogo de artifício por todo o país, Bom Ano, mau ano nunca, banhos frios para resistir às gripes e aos resgates, delírio como nunca se viu na chamada época faustosa, em contraste com a hirta marcha da troika e a crença (muito seca e singela) dos ministros que anunciam o futuro em pleno ardor de fé. Amém.