segunda-feira, dezembro 29, 2008

O EVENTUAL AFUNDAMENTO DAS CARAVELAS

CITAÇÃO DOS DESENHOS DE HELDER OLIVEIRA/WHO, PUBLICADOS
NA REVISTA ÚNICA
ao acaso dos nossos escolhos e secas


No ano 9 do segundo milénio, ainda tiritando de devaneios, Portugal está a descer aos infernos, roubado das suas entranhas, incluindo as restantes autoridades do saber. As imitações espalham-se pelas ruas, entre lojas e bancos, rasgos de violência, roubos com alguns tiques cosmopolitas. A Helder não escapa nenhum destes estilhaços, políticos inspirados prontos a um suicídio provinciano e a encalhar nas redes internacionais da intriga, da golpada, do conluio. Muitos deles, a maior parte, cuidam de viajar por tudo quanto é sítio, fazem compras, conspiram, espreitam os paraísos artificiais, fiscais.
Por estranho que pareça, o último governo tinha lançado ao ar alguns balões com as cores dos partidos, assaz carregados de ideias assim-assim: o patronato, agora com os cognomes de «empreendedores» tratou bem das finanças próprias, trocaram dinheiro por mais dinheiro, compraram belos barcos de recreio, subsidiaram novas marinas, financiaram, entre clandestinidades, os chamados agentes imobiliários, antigos «patos bravos». Muitas coisas obscuras começaram, além das outras, durante a crise: os espanhóis desataram a passear pela fronteira, a beber pinga de medronho, a mirar as aldeias quase abandonadas e outras de todo entregues ao matagal. Fizeram propostas, trouxeram vinho da Andaluzia, perguntaram pelas pessoas. Anda tudo pelas cidades do litoral, surfando, surfando. E esta casinha, o senhor vendia-me esta casinha? Ora essa, então somos irmãos, quanto quer dar? E quanto quer vocemecê? Vá lá mais um corpo, isto arruma-se. E tem sido um corropio de arrumos, os irmanos plantados em vivendas na margem do Alqueva, do lado de Espanha, e os sonsos de Lisboa do lado contrário. Afinal, a desertificação estava ali mesmo a calhar, com terras ao abandono mas cheias de sobreiros, uns vinhitos capazes. Os latifundiários, que Deus tem, deixaram cá uns delfins aparelhados, estavam quase sempre em Lisboa e arredores. Os latifundiários de Castela foram mais longe neste país caiado: só os senhores da Quinta da Marinha «apanharam» no primeiro dia de visitas cinco proprietários, uns das lezírias e outras vindos do sul do Tejo, além de um Comendador e o Presidente de Conselho de Administração de um banco de gerir fortunas, coisa fina.
Manuel Alegre, que estava a ponderar derivas políticas para rejuvenescer, ficou espalhado num sofá a chupar um charuto que o amigo Fidel enviara para uns quantos lusitos da esquerda. Estava bem de ver que a democracia portuguesa, nesta época, apanhara os fluxos e refluxos da crise económica Global e escassamente se podia desculpar, após as glórias de Abril e do 25 de Novembro, com as teinosias dos prima dona, barões do norte, nem dos comandos, nem do paleio amigalhaço do Otelo e suas Chaimites. Aliás, a comunicação social não ajudava nada, é feroz, simplificadora, interesseira, pendurada (a todos os níveis) das mais valias da publicidade, da boateira, esticando sempre qualquer fait-divers em ilustrações práticas das estratégias conspirativas, golpes do baú, aleivosias da riqueza em trânsito, de achamento e escondimento, tudo nas barbas brancas e sujas dos indigentes, dois milhões de pobres, no mínimo, e dois milhares de pessoas sem abrigo, só em Lisboa. E só quem lhes pode pisar os calos ou ir-lhes às canelas, é o homem da ilha, o Jardim.


A saúde está em greve, a ministra da Educação tem uns papéis à sueca para avaliar professores latinos, e o Dr. Cavaco Silva, Presidente da República, anda numa onda de coordenação estratégica, de boas relações com o Primeiro Ministro, engº José Sócrates. Sócrates não se fica, uma picadinha aqui, uma teimosia ali. Além do mais, apesar de alguns ministros menores que fazem parte do seu governo (dizem), tem outros de ferro, os quais fazem uma inveja danada aos da esquerda, Bloco, Partido Comunista com Jerónimo e muita disciplina, restos de outras forças boiando numa espécie de Mar fos Sargaços. PSD e PS (o CDS afunda-se com a grande oralidade de Portas, um ou outro, tanto faz) andam como carangueijos, pernas e marcha de lado, nuncam páram ao centro. Se a oposição é sempre maníaco-depressiva, podia, pelo menos, ajudar os que estão no poleiro. Era porreiro haver assim uma consertação centrada, bem apoiada, com pecadilhos à esquerda e à direita, mas sem função meramente ornamental.
Na sua base psicológica, dizem esses doutores de aviário que abundam na nossa praça: Cavaco e Sócrates não se entendem ao centro porque são os dois igualmente teimosos e arrogantes, o que é importante para estas tardes frias, com os hospitais atulhados de pessoas engripadas. De resto, eles sabem que já não há vacas gordas, ambos se bastam com jogos e picardias, enquanto os piratas trepam as escadas do poratló e da varanda do Palácio de Belém.
O Partido Socialista está pela primeira vez a governar sozinho com uma maioria absoluta; e, embora com alguns golpes de asa, alguma invenção modernizante, faz, em suma, mais ou menos o que fizeram os cavaquistas. Pacheco Pereira, comentador, é o chefe de todos os comentadores e dos árbitos, incluindo os do futebol. Ele fala pelos cotovelos e pelas cãs, numa oratória que leva tudo atrás, interrompe tudo, manda em tudo e sem estar com o rabo na cadeira do poder. É do quarto poder. Em alucinação como um F16, fala agora o nosso amigo Rebelo de Sousa, pirateando a Ferreira Leite, apoiada pelo Pacheco. E o Pulido, arfando, lá foi dar uma ajuda à enfática lâmina com que Manuela Guedes zurze os homens do poder. O Vitorino é uma peça rara, pertence à guerra de vanguarda, fala depressa, de forma exacta, e no fim a gente até o percebe. Os outros dois, para não falar nos 555 que há no país, forma grandes rolos fraseológicos, mas o Rebelo acaba por desfazer os rolos com uma previsão astral, vertiginosa, cortante. São os astrólogos da nossa política que está toda escrita nosa graffiti das cidades, mesmo as mais abandonadas no interior.
Paulo Portas está a precisar de Ana Dargo, miminhos esquerdinos para lhe endireitarem o pescoço garbosamente torto. O pobre do Menezes rói as unhas, de arrependimento e inveja, e manda Santana escrever Salmos, «andar por aí». Alguns lisboetas já compraram casa no Alqueva e em Porto Covo, para a hipótese do Santana derrotar o António Costa (anomalia pensável entre nós); se tal acontecer, Santana já foi copiar os arranjos dos Espanhóis, bairros inteiros reconstruidos, ruas inteiras para passear, tunéis em todas as direcções, inteiros, para os carros afocinharem. As caleches vêm para a baixa, Rossio, Terreiro do Paço. Manuel Ferreira Leite, desde que se fez à presidência do Partido Social Democrata, trepa escadas silenciosamente, cara do século XVII, pernas finas e firmes. Já foi secretária, ministra da Educação e das Finanças, e há quem diga (os arrumadores de carros) que o déficit que ela deixou, 6,8, foi decorrente de um pacto para tramar o Sócrates logo à primeira. Não tramou: Sócrates fez uma engenharia financeira capaz e acabou atraiçoado pelos banqueiros de todo o mundo, neo-liberais, capitalistas da ganâmcia cega. Louçã está contente: a esquerda sobe nas sondagens. Jerónimo, estátua de adamastor, acredita na disciplina: mais vale a escolinha, com carteiras em rampa, onde agarra o seu Comité Central, do que dinheiros sem nome, dinheiros que não subam do povo e pelas mãos calejadas do povo.

Upa, upa, o que é preciso é ter força e coragem para alcançar os patamares do poder e limpar o país de tantos engenheiros que andam por aí. Eu gosto da ideia do computador e um dia se verá como isso vai deixar marcas. Ao menos a ideia do plano tecnológico tem provas dadas, embora a imprensa não estude o problema e se entregue às momices pela bem encenada ascenção de Sócratas nessa «dádiva» à pequenada. Isso não me choca. Aborrece-me é aquela espuma que anda sempre atrás dele, Helena de Tróia independente, Alegre can-tando os partidos de Portugal. Como se fosse assim que se desmonta uma máquina destas! A Dra Manuela, apesar de algum derriço do Sócrates e dos ciumes do Pacheco, continua a desfiar azedume e a confundir solidariedade, companheirismo, esforços consensuais, com BLOCO CENTRAL. Ora fala, ora não fala. E quando fala aproveita-se pouco. Pouco de todos. Ela não tem que se irritar com tudo o que é do poder, acastanhando o seu sorriso incapaz de ternura. Quando se falou em pacificação e um grande espaço político governado por diversas partilhas de boa vontade, ela exclamou: «Só se eu estivesse doida!»


Doida não está, S. Rebelo nos acuda. Mas a insanidade do povo português vem de longe, das separações, das partidas nos cascos dos navios, caravelas atrás de caravelas, doidos aninhados nos porões, comendo solas e abocanhando, nos intervalos em terra, alguma nativa geradora de portugueses de segunda. Esses sim, eram de segunda escolha. Vê tudo bem, Marcelo, porque isso de ir apanhar as laranjas alheias também não fica muito bem num professor universitário nadador salvador.

Vão lá apamhar as laranjas, bem precisam. O Sócrates, que é um dos ministros mais bem vestidos do mundo, anda a olhar para as eleições e a visitar empresas de informática.


TENHAM CUIDADO COM AS LARANJAS ESPANHOLAS

quarta-feira, dezembro 24, 2008

O EVANGELHO SEGUNDO O PAPA BENTO XVI

«O papa mais recente, antes Joseph Ratzinger, atraiu recentemente jovens católicos e um festival oferecendo certa remissão de pecado àqueles que assistissem.»
«Este espectáculo moral, patético, seria desnecessário se fosse possível obedecer às regras originais. Mas os editos totalitaristas que começam com a revelação de autoridade absoluta, são impostos pelo medo e baseados num pecado cometido há muito tempo, entretanto acrescentados por regulamentos cujo sentido é muitas vezes simultaneamente imoral e impossível. O princípio essencial do totalitarismo é fazer leis às quais é impossível obedecer. A tirania resultante torna-se ainda mais impressionante se puder ser imposta por uma casta ou partido privilegiado, altamente zeloso na detecção do erro. Ao longo da história, a maior parte da humanidade tem vivido (e uma grande parte ainda vive) sob uma forma de ditadura assim, embrutecedora. *
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* Excerto do livro «Deus não é Grande», de Christopher Hitchens.

O EQUADOR SEGUNDO OS MILHÕES DO MERCADO


A propósito da estreia da série televisiva baseada no livro EQUADOR, de Miguel Sousa Tavares, o Diário de Notícias começou por abordar o acontecimento a partir do futebol, o que a própria TVI, produtora dos 26 episódios de uma obra monumental em quase tudo como aliás aquela estação costuma fazer: abrir o noticiário com um desses bárbaros «rncontros» em que se tornaram os jogos nos relvados dos estádios em Portugal. Pois o Diário de Notícias, pela mão de Tiago Guilherme, descobriu, na estreia do EQUADOR, que a exibição do Futebol Clube do Porto batera em audiências aquele evento. Mas o realizador da série, André Cerqueira, logo minimzou tal incidente, ao realçar o facto do interesse pela abertura da série ter sido assumido por uma audiência maior nas classes altas. A graça desta «inversão» é tanto maior quanto o jornalista-escritor, Sousa Tavares, é indefectível adepto do FCP. Não sei mesmo se estas coisas devem ser tratadas assim: o FCP anda a jogal mal (ainda) e a abertura da série começou mal, igualmente, em vários sentidos. André Cerqueira achou tudo em harmonia, sobretudo tendo em conta de que a obra literária vendeu mais de quatrocentos mil exemplares e não é legível só pelo primeiro capítulo. Após esse episódio, a habituação à forma tende a consolidar-se. Quanto aos efeitos técnicos e outros, o realizador afirmou que isso se devia, a ser verdade, aos riscos que ele aceitou correr. Salientou que o recurso a determinados meios, como o croma, é a atitude de qualquer artista. Se quisesse teria trabalhado de outra forma, sem deslizes possíveis, A verdade é que o realizador talvez não tenha arriscado tanto quanto julga, porque o risco, em arte, pouco tem a ver com a grandeza dos meios. Disseram os responsáveis que o público havia sido captado: um público «escolhido» entre aquele que menos vêm televisão: gente da classe alta. Era preciso, tão só, esperar que o fenómeno contaminasse o público em geral e se apropriasse das grandes potencialidades da obra fílmica.
Vejamos se o problema é das audiências ou as audiências altas se utilizam para disfarçar mita coisa.

Logo à partida, nesse tal famoso primeiro episódio, depressa saltou à vista o uso indiscreto do croma, quando o «contorno das personagens denunciava o facto dos actores terem sido colados ao espectáculo prévio dos cenários naturais» Cerqueira anotou logo essa grandeza dos riscos e «o facto de as pessoas só serem apontadas quando ousam» É preciso correr riscos, mesmo sacrificando alguma perfeição. Ao contrário, sem ponderar avanços, hipóteses formais das novas tecnologias, parece que todos ficam contentes. «Eu podia ter filmado em vãos de escada apenas com as personagens vestidas de época. Procurei mostrar Lisboa em todo o seu esplendor. Ver a rua Garrett, no Chiado, sem que apareça a FNAC ou a loja do Hugo Boss» Um autêntico golpe de asas, diremos nós. Quem fala assim não é gago, pode é não ser inteiramente um bom realizador de cinema ou televisão. O esplendor de Lisboa, as visibilidades entre camuflagens, são por vezes o melhor caminho para falhar meia dúzia de planos e comprometer toda uma sequência, toda a excelência da forma. Há momentos em que esse método aperta a câmara à estreiteza de uma geometria canónica e os alinhavos são depois bem difíceis de cerzir. O cinema (e mesmo a televisão) é outra coisa, tem maiores subtilezas, arrisca mais, quando, entre outros exemplos, se chega a registar planos num ponto preciso e outros a dezenas de quilómetros, assim fingindo que tudo se passou no mesmo lugar. Coisa que não tem nada a ver com o croma há pouco evocado. De resto, há vãos de escada que fazem melhor contexto do que um salão revelado de ponta a ponta.O primeiro episódio de EQUADOR está cheio de verosimilhanças locais, trabalhosas e caras, que não servem para nos fazer acreditar no lugar, nem nas pessoas como marionetes, tudo marcado, sem realismo nem metáfora.
E que faz o realizador numa grandeza espacial que lhe escapa e que enche de gente como pode? Em geral, enquanto deixa os actores e figurantes mais ou menos parados, ensaia alguns «quadros arriscados», perto das coordenadas do plano sequência. Não muitas vezes mas o suficiente para vogarmos com a câmara, mais ou menos alheios às gentes que vamos vistar. O tom da época, que poderia ter sido tratado numa fotografia mais evocativa e menos copista, perde-se na encenação empaturrada. Quanto mais se copia menos se interpreta e a primeira parte deste episódio está cheio disso. A montagem segue as regras, o que em princípio estaria bem; aqui não, em todo o caso, porque o passado chega-nos da memória à consciência em misturas de registos vagos, distantes, e outros emocionalmente muito nítidos. Em o EQUADOR, o responsável por dar a ver sem reproduzir, farta-se de nos descrever a direito, sobre linhas direitas, quadros da época e traduções do livro. Os actores, alguns dos quais são belíssimos em telenovela, estão aqui espartilhados por uma marcação cerrada, dizem pouco, falam com pedaços de literatura colados a bocados de oralidade. Já não falo de outros detalhes, como o temperamento do rei, e a falta de nuances sonoras consoante o quadro psicológico em que se movem as personagens. Esplendor sim, há a rodos, produção+produção. Mas como tudo o que é demais não presta, as marionetas apequenam-se sobre o lado sumptuoso do efeito de catedral.
Mão é assim que se faz assim.
Talvez volte a este assunto, eventualmente para poder desdizer o que desta maneira digo. Quero justamente acentuar que as sequências que desenham um trecho da Índia onde a acção decorre não parecem feitas pelo mesmo realizador: o grau de nitidez faz sempre racord, o lugar é admirável, as angulações circulares funcionam muito bem na absorção da paisagem e das personagens - e até estas parecem um pouco mais soltas do garfo que haviam egolido antes. Claro que ainda não falam, ainda representam, e, com um bocadinho de mais obediência a uma esquisita direcção, poderiam parecer estar em palco. Seja como for, entre figuração, acção, lugar e coerência fílmica, esse momento é, de forma clara, melhor do que as viscontianas vistas lentas nos «armazéns» da primeira parte, detalhe a piscar o olho ao especialista em estilos, grandeza de todos os esplendores (sem FNAC, obviamente) a mentir uma época que não chega a emergir do fausto visual.
Ele há com cada vão de escada...

segunda-feira, dezembro 22, 2008

O CÓDIGO ERRÁTICO E OCULTANTE DE MARIA


«Provavelmente, Deus não existe. Viva a sua vida sem constrangimentos».
Esta é uma norma de fazer apelo ao consumo. A crise nem sequer se relaciona com o livre arbítrio. Já Fernando Pessoa escrevia: «Come chocolates, pequena, come chocolates, olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates, olha que as religiões todas não ensinam mais do que confeitaria»
E porque Deus, presumivelmente, não existe, a responsabilidade dos actos é dos humanos.
Na última panóplia de livros oportunistas em torno do Codigo de Deus e coisas similares, os autores não podem sacudir a água do capote. O último código de que tive notícia foi pela pena de Grahan Phlips, através do breve etudo de Susana Lúcio (revista Sábado) e ainda pela releitura da obra de Daniel-Rops.
A Igreja, que se tornou toda poderosa depois dos romanos a acolherem para melhor unificação da sua própria transcendência, nunca perceber bem a irrealidade Cristo e o apagamento (para o qual ela mesma contribuiu) da alegada mãe de Jesus, Maria. Ainda durante o Vaticano II este assunto se discutia e os bispos, antecipada- mente, degladiaram-se sobre a bondade da inclusão do nome de Maria nos textos sagrados, um texto só para ela, e se poderia ser consagrada como co-redentora, tendo ajudado o filho na salvação da humanidade e mais tarde subido para junto dele, também em carne e osso. A ideia consistia no facto desta última versão a livrar de muitos pecadilhos e coisas nada canónicas. Depois de muitas querelas ao longo dos anos (e dos séculos), lá ficou determinado, sem questões de revelação, que a mãe de Cristo, aos 58 anos, fora para junto do filho e com as mesmas prerrogativas, segundo a mesma tecnologia da transcendência capaz de transportar a matéria para qualquer lugar do Universo.


Nos documentos que se multiplicaram na antiguidade e no decurso dos séculos, a substancialidade dos irmãos de Jesus Cristo parece mais palpável do que a do nosso Salvador (ainda se esperam os resultados dessa acção, a qual, em boa verdade, não se sabe em que consiste). «Para conciliar a virgindade de Maria e os irmãos de Jesus, os teólogos cristãos recorreram ao Proto-Evangelho de Tiago, que apresenta José como viúvo e tornaram os irmãos de Jesus em meio.irmãos». * A esta fórmula contrapõem-se outras, quase todas bizarras. E Psolini, no seu filme «O Enavangelgo segundo Mateus», mostra José, talvez de meia idade, afastando-se da mulher, depois de saber da sua gravidez, caminhando, curvado, de costas para nós, numa vereda entalada entre muros.
A discutível descoberta do túmulo de Maria pelo arqueólogo Bebedetti foi silenciada pelo Vaticano. O dogma da Assunção está relacionado com outro, ausente ou expurgado de qualquer evangelho, com um outro, o da Imaculada Conceição, categoria teológica urdida nos vários concílios e entre controvérsias sobre o lugar da sua morte, hoje consensualizado «turisticamente» na cidade de Jerusalém.
Sobre a vida e os atributos de Maria, os teólogos nunca chegaram verdadeiramente a um acordo, no fundo como não concluiram nada em volta de todos os respectivos acontecimentos, inverosímeis e contraditórios. A ideia da virgindade de Maria, obviamente falsa ou simbólica para qualquer de nós (a menos que nunca tivesse tido filhos nem relações com o marido ou alguém além dele), foi sempre um dos maiores embaraços para a Igreja Católica. As explicações ascendem a dezenas, todas absurdas ou pelo menos inseridas no domínio do fantástico. Neste momento, a Igreja determina (e ensina) que Maria «permaneceu Virgem até morrer». É na fase em que José teria sido convendido a levar Maria para sua casa que ela aparece pela primeira vez referida nos evnagelhos canónicos. Tarde e a más horas. Quando Proclo apontou Maria como mãe de Deus, o Patriarca enfureceu-se, bateu no sacerdote, e explicou aos fiéis que não se podia falar de Maria como um pagão se referia a deusas. Os «primeiros» boatos da «teoria» da virgindade surgiram próximo n ano 178 d.C., sonbretudo quando o filósofo Celso escreveu que Maria «engravidara de um soldado romano». Quando o Concílio de Constantinopla, em 553 d.C., Maria é designada como sempre virgem, e por estranho que pareça, o dogma acerca desta eventualidade só foi declarado inamovível no século XIII, no quarto Concílio de Latrão. A ideia de tal virgindade, nunca afirmada nos documentos mais antigos, nem mesmo naqueles que a Igreja escolheu (entre outros) para se tornarem os verdadeiros, é música celeste apenas a partir daquela altura. Como se vê, a mãe, a pretensa mãe de Jesus, nascida entre 23 e 20 a.C., teve uma vida (afinal no futuro) muito controversa. Versões colsolidadas existem várias, mas nos textos canónicos da Igreja Católica a veneração por esta obscura mulher só se acertou no século XX, aliás até níveis fundamentalistas e penosos, como Fátima e Lourdes.
Até ao concílio do Éfeso, no qual esta doutrina da virgindade de Maria havia sido oclusa, estranha, vaga, ou mesmo de todo improcedente, as falas não se encontraram. Éfeso impulsionou esta ideia, na própria concepção do culto de Maria, com várias festividades em sua honra.
À maneira de uma «providência cautelar», e antes que o mito de Maria «prescrevesse», o Vaticano II votou um texto refreente apenas áquela figura, privilégio que lhe permitiria tornar-se co-reentora, ou seja, trabalhando ao lado do filho da mesma missão, além de que, após a sua morte, ascenderia certamente aos céus, imaculada. Acabaram assim, em termos institucionais, as lutas, arrastamentos, ocultações, tudo o que, desde o início, se havia gerado em volta desta figura.
No artigo «O Plano para Esconder a Virgem Maria», há um sub-título que sintetiza muita coisa. E que diz: A sua figura prvocou uma ds guerras mais violentas de sempre nos corredores da Igreja Católica. Houve agressões físicas, subornos e excomunhões. Quem quis apagar a História da mulher mais adorada em todo o mundo?» Alguém, num plano falhado, tentou esconder a mão de Deus. Ou a mão de Deus, num dos seus inúmeros erros de cálculo, falhou o instante em que Jesus terá nascido como qualquer de nós, com intervenção biológica de José. Assim se salvaguardará a família e se continuará para acabar com a violência doméstica».
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* Susana Lúcio, revista Sábado 18.12.08

domingo, dezembro 07, 2008

MANOEL DE OLIVEIRA,CEM ANOS E 77 DE CINEMA

Manoel de Oliveira
Manoel de Oliveira, português, atingiu, sem incidentes de maior, aos cem anos de idade, setenta e sete anos de actividade no cinema, como realizador. É uma situação verdadeiramente singular, sobretudo porque, além da idade, este artista continua em plena actividade, tendo na última década realizado mais de um filme por ano. Internacionalizado e consagrado, com diversos prémios, tornou-se um dos símbolos maiores da arte que, pelas suas mãos e pelo seu olhar, começou longe, com «Douro, Fauna Fluvial». É o mais idoso cineasta do mundo (e a trabalhar), não tendo planos, segundo diz, para deixar de dizer a palavra mágica «acção!». Trata-se de um «destino» de assombro, em especial se pensarmos que se trata de um português, cidadão deste pequeno país, sem largueza de território e de gente para pensar ou frequentar as artes. De início também Manoel Oliveira passou por longos períodos de espera, ao que se somava a áspera encenação do seu cinema quando da maioridade possível. Longos planos fixos, uma direcção de actores inaceitável ou inexistente, ideias fulgurantes discutivelmente inseridas na teia do discurso, arrastamentos vários, luzes patéticas. Os franceses enamoraram-se bem depressa por este tipo de expressão cimatográfica, sobretudo por uma tradição cultural compatível e porque, não percebendo a língua portuguesa, pasmavam diante de monólogos ditos no mais embaraçado estilo liceal. Saiu até à mitificação, incluindo a invulgaridade da origem e a cada vez mais nítida proposição temática sobre Deus e o Homem.
Manoel de Oliveira vai passar o dia em que festeja o seu centésimo aniversário, quinta-feira, a trabalhar na rodagem de mais um filme: Singularidades de uma Rapariga Loura, inspirado no conto de Eça de Queirós. A crítica estrangeira não lhe poupa elogios. O Director da Cinemateca Portuguesa chama-lhe «um prodígio». E as mais altas personalidades do Estado associam-se à homenagem nacional. Somos frequantemente assim, ou oito ou oitenta. Isto acontece noutros sectores das artes, como se sabe, tudo é mau à partida; mas basta passar Badajoz, acenar em Madrid, expor-se em França, onde a curiosidade supera a inveja, e logo os ventos trazem o princípio da fama. Assim tivemos um Prémio Nobel da Literatura, comparências em Veneza, Cannes, Berlim. Os prémios de Cannes viabilizaram o cinema novo português, as rotas do mundo começaram a abrir-se aos artistas plásticos, escritores, aos músicos, aos poetas. Temos produções de raro valor nesses campos e mal sustentados pelos jovens comedores de bandas ruidosas e espectáculos de grande presença, não de grande valor.
Manoel de Oliveira, seja como for, fez um tirocínio com algumas dores; mas, quando começou a levantar voo nunca mais parou, nem o tempo nem a morte deram por ele.