sábado, dezembro 29, 2007

A MORTE INESPERADA DO PINTOR MIGUEL D'ALTE

a película sensível dos sonhos solidários
é agora confirmada pelo seu negativo solitário

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Solidário como é próprio dos artistas na sua mais genuína identidade, solitário também na condição que o trabalho criador impõe, o pintor Miguel D'Alte, a meio do seu empenho em demover os silêncios que o envolviam, faleceu abruptamente ao ser colhido por um combóio e na própria véspera de Natal. Terá sido cremado no dia 28, sexta-feira, no Cemitério do Prado do Repouso, no Porto. As suas cinzas são depois lançadas no rio Minho, segundo as informações obtidas através da Cooperativa Árvore. Miguel D'Alte, com 53 anos, morreu a 24 de Dezembro na altura em que atravessava a linha do Norte, junto ao apeadeiro de Francelos, em Gaia, pela hora do entardecer. O artista teve morte imediata. Miguel D'Alte nasceu em Braga, em 1954, e realizou o Curso Geral de Pintura da Escola Superior de Belas-Artes do Porto. Apoiado pela Cooperativa Árvore, entre 1992 e 2000, participou pela primeira vez numa exposição colectiva em 1975. A peculiar natureza do seu sentimento sobre a vida manifestava-se no gosto pelo lado factual da obra. Daí teria de nascer o seu testemunho, o reconforto que alimentava para depois, no silêncio. Há esquecimentos indevidos que parecem antecipar a morte

obra de Miguel D'Alte

quinta-feira, dezembro 27, 2007

A GUERRA DOS MUNDOS




A ficção científica, quer no domínio da literatura quer no âmbito do cinema, é um campo no qual o nosso imaginário reune sonhos, anseios, apelos de superação tecnológica, a aventura da expansão do homem no espaço, em parte o mesmo que aconteceu na própria terra, em ordem à descoberta de novos mundos, eventualmente de outras gentes. Mas as escalas (já colossais) da época dos Descobrimentos logrados por Portugal, eram, apesar de tudo, conquistáveis. No espaço cósmico o problema põe-se de outra maneira e o Mundo já teve a oportunidade de assistir ao vencimento da distância da Terra à Lua, numa nave tripulada por homens, façanha que se repetiu em todo o Projecto Apolo e permitiu encarar como eventualmente possível atingir outros astros, porventura com base em forças de impulso maiores e não só quase exclusivamente dependentes das leis gravitacionais.
Muito antes desta visão das coisas, Júlio Verne foi pioneiro, abrindo largos caminhos para autores como Bradbury, Cooper, H. G. Welles. A obra deste último, largamente aproveitada pelo cinema nos anos 50 e já no século XXI, torna arrebatadora a emergência de civilizações poderosas, vindas do espaço, em geral imbuídas do espírito de conquista e ocupação de novos astros - nada que não se assemelhe às viagens que fizeram o homem aportar à Índia, ao Brasil, à América do Sul, dizimando as gentes e a grandeza de crenças que os povos locais alimentavam, Maias, Incas, Índios. A GUERRA DOS MUNDOS, de H.G. Wells, mostra uma civilização hostil que procura arrasar toda a construção humana, a fim de aqui se instalar, fundamentalmente em virtude dos seus habitats estarem moribundos. O filme dos anos cinquenta é invulgarmente bem inventado e desenhado para a época e deixa-nos, de forma indelével, uma assombrada imagem de insegurança. Recentemente, Spielberg, numa das suas mais seguras realizações, seguindo de perto as hipóteses do género e do próprio livro, conseque tornar visível, na própria bruma da percepção e do medo, sob a noite e as vagas de pânico, a emergência do escondimento de seres incorporados em máquinas (algo biológicas) de grande porte, assentes em tripés como pernas de monstros remotíssimos, embora senhores de uma orientação pragmática e cabeças colossais, insuperáveis pelos meios terrestres, que tudo destruíam de forma metódica, quase majestática. O design de todos estes equipamentos, a movimentação, as radiações pulverizantes, tudo acontece no filme de Spielberg como se estivéssemos a ver na televisão uma ctástrofe em várias frentes, estradas destruídas, milhares de mortos, cidades imensas reduzidas a escombros.
Na sua impotência, o homem usa todos os expedientes para sobreviver, o que, a médio prazo, seria impossível. Mas o Universo encerra também uma lógica ofensiva e defensiva, ecosistemas inalienáveis. Sem defesas naturais no nosso meio, alimentando-se de tudo e dos corpos humanos que captava na maior das humilhações, os grupos activos dos alienígeos contrairam doenças graves e irreversíveis, a morte pela peste, numa simbiose entre figurinhas perversas e equipamentos biónicos tão altos como a Torre Eiffel. Ninguém se livra, ao ver este filme, perante imagens insuperáveis, entre o horror e a plasticidade, da imensa tragédia do ataque às torres gémeas, em Nova Iorque. O horror que o cinema tem pintado em obras como aquelas parece decorrer do fundo perverso da nossa própria mente.

















Os sobreviventes desta extraordinária prova de vida no Universo, espalhando-se e reorgani- zando-se pelo planeta, muitos deles certamente com a esperança de um comportamento mais preventiva e criadora, entregaram as suas derivas de sonho, de recuperação, à nova paisaem e às novas gerações.

terça-feira, dezembro 25, 2007

O IMAGINÁRIO DA ARQUITECTURA ATRAVÉS DA PINTURA

pintura de Nadir Afonso

Em termos gerais, pelo modo de construir e compor, a pintura aqui presente, «Procissão de Veneza», de Nadir Afonso projecta com integral propriedade o clima coerente de toda a sua obra plástica autor, aquitecto por formação. Não foi intencional esta divulgação de uma peça entretanto integrada numa exposição do artista. Aproveitei essa mesma notícia e esta reprodução para reiterar publicamente aquilo que suponho ser a raiz arquitectónica das obras pictóricas do autor, mesmo as mais abstractas, contra o que ele teimava em afimar há anos - a certeza de que nada havia da sua formação prática, enquanto arquitecto, nas pinturas que realizava. Essa «filiação» nada o deminui, pelo contrário, e a verdade é que, abrindo espaços pequenos à bem sustentada ilusão de imensas construções urbanas, rasgadas em horizontais e oblíquas, pontuadas por planos verticais, dificilmente se pode negar a quase primeira percepção do espectador.

sexta-feira, dezembro 14, 2007

ARTISTAS PORTUGUESES CONTEMPORÂNEOS | Raúl Perez


Raúl Perez, nascido no Minho, em 1944, realizou a sua primeira exposição individual aos vinte e oito anos. Já veio encontrar praticamente concluída a arrumação das artes, os seus canais de influência e lugares de ancoragem, tudo temperado com molho francês e recentes especiarias da América, entre as culturas a Ocidente e um espaço a Leste, sobretudo depois da queda do muro de Berlim. O currículo de Perez dilatou-se rapidamente. E, na galeria de S. Mamede onde agora expõe a sua última produção, foi assinalado pelos eruditos. Cruzeiro Seixas, na pose da etiqueta surrealista, dirá em jeito de chancela institucional: «Nas suas telas só aparentemente o edifício é tão-somente um edifício, a coluna uma coluna como qualquer outra, o buraco um simples buraco que sugira rato humorístico ou presença erótica. Vazio, ruína, negrura, solidão que são representação de gentes que conhecemos -- e de nós próprios. Praças e ruas, vejo-as povoadas, embora sejam Inverno». Estas palavras traziam o fio da invenção surrealista, a poética dos nomes e o non-snse da paisagem. Para que a actual obra de Perez, belíssimos desenhos de um imaginário ligados a uma espécie de vida alienígena, se garantisse desde ontem. São sonhos transformados em aparência e substância É o inconsciente e expelir uma antiguidade humana indeterminada. Ninguém citou Breton (cuja voz papal influenciou o surrealismo em Portugal), nem Cesariny que, não querendo ser bispo em França nem no nosso país, ficou em cardeal dos criadores portugueses neste sinuoso movimento à medida que o tempo passou. O próprio Cesariny, achando que o surrealismo é quase um buraco negro que tudo absorve, fez-se pintor, entre palavras recomeçadas.
Raúl Perez mostra-se, mais do que nunca, fiel a uma ideia ortodoxa (no melhor sentido) do imaginário surrealista: porque, ao viajarmos pelas suas construções de gente nenhuma e os seres que faz passear de modo absurdo, é a mão hábil que burila a lápis ou tinta uma filigrana do próprio sonho.





obras de Raúl Perez, de pequenas dimensões e sem título

segunda-feira, dezembro 10, 2007

A CIMEIRA DAS NOSSAS INCERTEZAS

Salih Mahmoud Osman
PRÉMIO SAKHAROV 2007



crianças na zona degradada a sul de Harare
de Nyerere

Não é inocente esta abertura à notícia da Cimeira União Europeia-África que decorreu em Lisboa a partir do 6 de Dezembro de 2007 e reuniu grande número de Chefes de Estado, representantes e representações a corresponder, o melhor do aparelho político português, tudo isso numa importante operação de charme diplomático, de enorme aparato de segurança, incluindo, por outro lado, a resposta competente às exigências de algumas personalidades de hábitos inusitados: carros especiais, à prova de bala, carros dos próprios vsitantes, armação da tenda de Kadafi, com vista para o mar, na plataforma do forte S. Julião da Barra, alojamento garantido nos melhores 22 hotéis de Lisboa, instalações para os conzinheiros e outros «ajudantes» de toda esta multidão que manda no mundo, rodeada de pobreza na visão incerta do futuro, os poderosos que lavam as mãos para simbolizar a sua pureza de decisões, salpicando as imagens do horror antes de tomarem a toalha que alguém lhes estende na grave solicitude do momento.

Seja como for, Porugal, em termos convencionais e alguns «anexos», cumpriu com certo preciosismo este enorme encargo, procurando imprimir ao acontecimento (ao contrário do anterior, há sete anos) aquilo a que já se chama um «espírito novo». Os jornais insistem em apontar, como notas dissonantes, os casos do Sudão e do Zimbabwe, dada a forma gritantemente irregular das administrações em tais zonas. Mugabe, que destroçou o Zimababwe por razões difíceis de entender, esteve sob as objectivas, hirto e mudo até quase ao fim, altura em que apontou o dedo à Europa, ao neo-colonialismo, à necessidade de acabar com os fantasmas e tratar de uma colaboração recíproca, sem hipocrisia. Não estou a transcrever à letra mas penso que este velho guerrilheiro já não sabe distinguir a sua luta anterior com a integração moderna do seu país numa perspectiva actual, de prosperidade e novos contextos. Não é ele o único. Darfur foi abordado, essa inexplicável tragédia que se tem mantido pelo tempo fora, provocando duzentos mil mortos e três milhões de deslocados. Para não falar noutros casos, benignidades disfarçadas e alguns pontos positivos de ordenação dos meios e de mobilização das populações. De resto, as conquistas europeias, em termos civilizacionais, comportam o peso e o resto dos benefícios do tempo colonial, os seus impérios, e ainda hoje, quando alguns crimes das próprias guerras civis estão à beira de prescrever, muitos políticos e intelectuais da União fazem projectos em nome da culpa e da salvação do continente africano, agora em grande risco de perda. Difícil é explicar aos antigos «colonos», dos quais também se obtiveram empenhos decisivos no entendimento produtivo daquelas terras, que culpa terão (no caso de Angola, por exemplo) na eclosão de uma guerra civil de forte incumprimento dos acordos das forças enfim aceites pelos portugueses, gesto dos mais tirânicos que arrasou um país tão vasto, como noutros casos, e cujos conquistadores do poder lá estão, certamente pouco atentos aos valores da democracia e dos milhares de estropiados, muitos vítimas das minas que a cegueira dos beligerantes levou a espalhar sem cartografia por milhares de quilómetros quadrados.

Darfur é pior do que as pessoas imaginam, acentua Salih Mahmoud Osman. Ele trabalha em condições muito difíceis. E, tanto nessa zona, como na Somália e outros países bem conhecidos: os mortos no Uganda, a violência um pouco por toda a parte, em geral conduzida por homens que combateram contra o colonianismo e a libertação dos povos. Apesar das suas convicções, Franz Fanon reconheceu os riscos de extrair milhões de pessoas praticamente acabadas de viver na pré-história e colocá-las de súbito na inteira tarefa de assumir a contemporaneidade. Os conflitos, dizia, serão imprevisíveis.

Salih Osman recebe o Prémio Sakharov nesta semana e «acredita que a força de paz da ONU e da União Africana (26.000 soldados) estará no terreno nos próximos dois meses. Os problemas em torno desta operação só muito dificilmente se podem avaliar. Sem conhecer a estratégia pensada, o que sei é que para as infecções espalhadas pelo continente só teriam tratamento relativo (até porque o continente é rico e a riqueza está a ser compactada à margem das populações) com um milhão de agentes bem dirigidos, incluindo grupos sanitários, de agrono-mia, de administração, de formação a diversos níveis. O mundo poderia, entre outras acções sobre o ambiente, tomar esta enorme missão como um dos objectivos mais relevantes de sempre. Porque o crescimento avassalador e invasor (China, por exemplo) pode ser redireccionado a fim de criar riqueza civilizacional, não economiscista e globalizante. E de resto, a China, além de comerciar segundo regras apropriadas, poderia muito bem contribuir com elementos diversos para aquela «força» (utópica?) de salvação.

Se houvesse entretanto um deastre súbito, planetário, de origem cósmica, que fariam as Uniões e os países mais ricos, que fariam as empresas multi e transacionais, assim, diante de uma tragédia gerada em em bola de neve e portanto à escala do planeta? Que fariam todos em tempo relativamente curto? Um dia, as cimeiras podem ser convocadas com urgência e sem partilhas antecipadas, claramente hipócritas.

sexta-feira, dezembro 07, 2007

E QUEREM ELES METER A TELEVISÃO EM TODOS OS BURACOS


Na coluna muito bons somos nós, da revista do «Diário de Notícias» (1.12.07) Joel Neto começou a sua crónica com o seguinte título: quo vadis, televisão. Depois de muito explicar, tendo em conta as agruras dos programas televisivos, confessou que a sua preguiça os fazia ver e soletrar. Temendo que as poucas entidades verdadeiramente representantes da cultura portuguesa ensandeçam de vez, porque o povo já lá vai, clamou desesperadamente assim:
«Concursos com néons encarnados e utentes num esforço de parecerem divertidos, telenovelas com guião esquemático e actores sem gente por dentro, jornalistas sob o efeito de drunfo à procura da marca de sapatos do polícia que anda a investigar o desaparecimento da miúda, ministros excitadinhos que respondem a olhar directamente para a câmara a ver se chegam às emoções do espectador -- e ao fundo a Júlia Pinheiro aos gritos, aos gritos, aos gritos. Não, eu não posso acreditar que conferir a televisão que um determinado povo vê seja ainda a forma mais eficaz de decifrar o seu verdadeiro coração. Eu não posso acreditar que o meu povo seja isto. Se a Júla Pinheiro é este povo, então eu não quero ser este povo com certeza»
Ao ler estas desesperadas palavras (e porque tinha o televisor ligado) apanharam-me quando o José Castelo Branco de etc. apareceu no ecrã, gemendo e contorcendo-se, numa mal imitada snobeira e abordando o transcendente tema das cirurgias plásticas. Troca as pernas, mostra as coxas, inclina a cabeça, estica os beiços, e ergue os braços a meia altura, simétricos, as mãos enclavinhando-se, esquizofrénicas, dedos dobrados, distendidos, como a hipérbole dos dedos dos mais belos bailarinos do fim do mundo. O estereótipo daquilo que ele julga ser uma grande personalidade da sociedade e da televisão apela demais à náusea. No caso da Júlia podemos usar filtros nos ouvidos, como nas mini-salas dos nossos mini e gritantes cinemas, aberração que qualquer autoridade com o 9º ano aboliria do horizone urbano que nos cerca, aperta e deprime. Mas este não é o caso de José Castelo etc. Com ele só nos resta apagar o aparelho, pois se mudarmos de canal encontraremos os mesmos programas, todos alinhados, todos iguais, todos salpicados de rapariguinhas em pose, uma coxa avançada, ou bailando nos intervalos, numa coreografia que talvez inspirasse Pina Bausch. O Joel Neto, se se deixa tombar pela preguiça, vai ter de, num país pobre como o nosso, aguentar filmes americanos, anúncios e outras imagens lixosas até de manhã. Aquilo nunca pára. E os donos querem mais, porque, dizem eles: «Nós sabemos perfeitamente que somos todos um serviço público e só servimos o que o público gosta». Este velho embuste quanto à cultura popular devia pagar coima, não em dinheiro, mas decretando que, em tais circunstâncias, a emissora seria obrigada a passar, durante cinco dias na semana, cinco obras primas do cinema, das grandes coerografias, do próprio teatro -- e em prime time, agora atafulhado de anúncios ou baboseiras de se lhe tirar a baba.