quarta-feira, julho 30, 2008

SLAVOJ ZIZEK, DISCURSO CRÍTICO DA IDEOLOGIA


Parece oportuno fazer aqui, para esta época, a convocação de parte do discurso crítico da ideologia, de Slavoj Zizek, apontado indevidamente como «filósofo pop» e editado em Portugal pela Relógio D'Água, pensador de dimensão provocadora, pulsando multidões na Europa e nos Estados Unidos. As citações aqui feitas foram extraídas do depoimento «Em Discurso Directo», publicado no suplemento Actual do Expresso (19.07.08).
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Lentamente, o tempo do pensamento crítico está a chegar. Vejamos alguns exemplos maravilhosos da ideologia actual. A questão da tolerância. Está na moda lutar contra a intolerância e ser pela tolerância. Porque é que automaticamente se formula a luta contra o racismo em luta pela tolerância? Martin Luther King, nos seus discursos, quase não usava a palavra «tolerância». Para ele, o racismo antinegros não era um problema de tolerância, era um problema de injustiça económica, legalidade, ética. Seria uma humilhação para ele dizer: «Nós, os negros, queremos mais tolerância». Porque é que traduzimos o racismo em problema de tolerância? A resposta é clara: porque algo aconteceu com a chamada era pós-ideológica ou pós-política. E o preço que estamos a pagar é este: todos os problemas são formulados como culturais e não como políticos. O que debatemos hoje em política? Não tanto a economia, mas mais o direito ao aborto, o casamento dos homossexuais... Isto é um fenómeno típico de como a esfera da economia é cada vez mais despolitizada.
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É preciso repolitizar. Se não repolitizarmos a economia aproximamo-nos da catástrofe. Toda a gente hoje ri de Fukuyama, do seu «fim da História», mas penso que agora até a esquerda é basicamente fukuyamista. Ninguém pergunta se há alternativa à democracia parlamentar, uma alternativa ao capitalismo. Quando eu era jovem sonhávamos com um socialismo de rosto humano; hoje sonhamos com um capitalismo de rosto humano, com um pouco mais de direitos humanos, de direitos dos homossexuais, de direitos das mulheres...A verdadeira pergunta séria, para mim, é esta: é isto suficiente, ou já estamos a ser confrontados com novos conflitos que não podem ser resolvidos neste quadro democrático-parlamentar do capitalismo? É por achar que sim que permaneço de certo modo um marxista. Fukuyama, no seu último livro, admite que a biogenética está a colocar problemas éticos e práticos que não podemos resolver no quadro da eonomia de mercado. Ele próprio propõe uma mais forte intervenção do Estado. Temos agora uma nova lógica do «apartheid». Mike Davis, no livro Plamet of Slums, diz que há mais de um bilião de pessoas a viver em bairros de lata, gente que faz parte da sociedade mas está excluída do espaço público. Negri e Hardt sublinham o facto de, hoje, o modo de trabalho predominante ser imaterial.
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O que acho triste é que na verdade não temos uma boa teoria do que se está a passar realmente. O que é tão enigmático e perigoso na China? Até agora, a melhor legitimação do capitalismo era que mais tarde ou mais cedo ele trazia a democracia. Mas não é o que está a acontecer na China. O que está a emergir lentamente são os chamados «valores capitalistas asiáticos». Isto é algo novo, na medida em que não precisa de democracia. Imaginemos que os protestos de Tiananmen tinham ganho e que tinha havido reformas democráticas radicais. Penso, e digo-o sem regozijo, que nesse caso a China teria tido o sucesso económico que tem hoje.
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Eu não gostaria de viver numa sociedade onde fosse necessário argumentar contra a violação das mulheres. Outro exemplo: o referendo irlandês. Sou muito pró-europeu, mas apoio o «não» irlandês. Porquê? Choca-me o modo como a Europa reagiu e tratou os irlandeses como idiotas. A elite europeia iluminada permite uma única escolha: votar «sim». A democracia é cada vez mais a democracia aclamatória. E o problema da Europa é que os burocratas europeus querem impor a imagem de que ou se aceita o que eles querem ou teremos a extrema-direita, os protofascistas, o nacionalisno, etc. Não é tão linear como isto: o que eles estão a propor é a sua visão simples e tecnocrática da Europa. É errado ler os votos dos irlandeses como anti-europeus. Há hoje dois modelos em competição: o capitalismo liberal e a China ou os valores asiáticos. Eu não quero viver num mundo onde estas são as únicas escolhas. Temos necessidade de alternativa.

segunda-feira, julho 28, 2008

A INFORMAÇÃO REDUTORA, DESDITOSO AMANHÃ


Leio habitualmente as crónicas de Clara Ferreira Alves na revista Única, do Expresso. É raro não estar desse lado da escrita, da forma de ver o mundo, nas admiráveis imagens sobre situações em invulgares derivas pelo mundo. Desta vez (26. 07. 08), Clara intitula o seu texto com a expressão SPAM LUSITANO. «Uma boa parte do que se publica nos jornais é Spam. Spam é lixo electrónico, a quantidade inesgotável de mails e mensagens sobre coisa nenhuma, avisos e alertas desnecessários, indignações de rodapé e comentários de nada». Em torno disto, nos diversos graus de operacionalidade, os milhares de milhões de dólars gastos assaltam qualquer noção de bens verdadeiros e de segurança no caminho para o futuro. Toda a vigilância sobre a consciência é inútil: o lixo retorna com enormes propriedades de ser hiperexplicado e eufórico, denso de infiltração no que pode ser a nossa identidade mais profunda e verdadeira.
«Existem novas leis: a imagem sobrepõe-se à palavra, a palavra tem de estar dividida e segmentada em parágrafos e pedaços, com destaques, de modo a prender a atenção. Na luta infernal pela atenção dispersa do ouvinte, leitor, espectador, tudo tem de ser hiperexplicado ou, em alternativa, sensacional e disfórico. Uma vez convenientemente digerida nos intervalos de outras informações que competem entre si, a informação não chega a ser hierarquizada nas nossas mentes e tudo é igual a tudo, na grande teoria da indiferenciação cultural que gera a nossa indiferença. Só o aberrante, o pais austríaco que manteve a filha prisioneira durante 24 anos, ou o grandioso, a Espanha ter ganho o Europa 2008, ou o catastrófico inovador, o tsumani na Ásia que matou 250.000 pessoas, ou o criminoso policial, o desapareciento de Madeleine McCann, provoca a nossa intenção não dividida.Todo o resto cai em saco roto, e não nos espanta ver em rodapé de um noticiário pimba de televisão a notícia 180 mortos no Iraque em atentado terrorista, porque a notícia que devia ser importante tornou-se secundária. O terramoto da China foi completamente engolido nas nossas televisões pelo futebol e os desígnios insondáveis de Scolari».

Valerá a pena transcrever mais? Os telejornais podem abrir com notícias de um negócio de compra de jogadores de futebol e os factos internacionais pulverizam-se a todo o instante. Mesmo as nossas realidades comuns e incomuns passam ao formato e ao conteúdo dos tablóides mais grotescos. Clara Ferreira Alves termina um parágrafo esclarecedor com a segunte frase:«o major Valentim é mais importante do que as tropas portuguesas no Afeganistão?». A mediocridade toma conta do nosso espaço físico e cultural como o maior dos derrames de crude sobre países inteiros. A brutalidade de tudo isto acontece na própria estrutura em que nos movemos, numa completa dependência de um único (e esgotável) meio de produção de energia. A deriva de quotidianos concentrados no consumo grosseiro, nos espectáculos megalómanos, nas bandas que ensurdecem toda a gente em parques carregados de 30 a 40.000 pessoas, a eleição sacra dos desportos radicais e a pompa luxuosa como por vezes são apresentados, tudo isso bloqueia a qualidade plural de direitos que acabamos por atirar para o caixote do lixo. Os cérebros atrofiam-se, o corpo incha, a indiferença pelo sofrimento cresce. Os dietistas e coordenadores de ginásios inventam a maravilha de um corpo afinal cada vez mais obsoleto, mesmo que capaz de sobreviver mais anos. A própria farmacologia tornou-se, à escala global, um horror de propaganda e duplicações terapeuticas desnecessárias. Tudo se distende em deformação manipuladora, em informação castrante, em diluições das identidades nacionais. A civilização, assente em tais pressupostos de crescimento, e não de medida ou bom senso, finge organizar-se mas tende para a implosão.

Perguntava um senhor de bengala a um menino da rua: «Bom, agora que já comeste o bolo diz-me lá o que é que queres ser quando fores grande?
E ele, com a esperteza amarrotada: «Jogador de futebol»

quinta-feira, julho 17, 2008

IMAGENS DE UM PESADELO SEM LIMITES

Guerreiros mujaedines abrigam-se, em Setembro de 1999,
do fogo de soldados talibãs.

PRISÃO
Foto que rendeu a João Silva uma mencão honrosa. Presente na exposição da galeria Diário de Notícias: série de imagens recolhidas em trabalhos realizados no Iraque, Líbano, Afeganistão, Malawi. Esta fotografia serviu para ilustrar uma matéria de Michael Wines sobre as cadeias do Malawi, em Junho de 2005. Centenas de prisionairos dormem amontoados numa cela para duas ou três pessoas. Cada «cela» chega a comportar 160 prisioneiros. Esta imagem alucinante ultrapassa muito, muito acima do pensável os maiores exemplos da falta de respeito pelos direitos humanos.
«As minhas imagens são como se as pessoas estivessem a ver um pesadelo prolongado», diz João Silva, repórter de guerra português, que terá exposto parte do seu vasto trabalho na Galeria DN, em Lisboa, a partir da data deste post. Modesto nas palavras mas corajoso na acção, o repórter que já esteve muitas vezes (demais) perto do inferno, reuniu uma série de testemunhos dessa fogueira pelo mundo fora. Da África do Sul, onde acompanhou o fim do apartheid, ao genocídio do Ruanda, passando pelas guerras no Iraque e Afeganistão, viu e registou a morte, a miséria, o ódio, o racismo. E atravessaram a sua lente, valendo-lhes alguns prémios, outras «paisagens» da irraccionalidade humana. Obteve assim uma menção honrosa no World Press Photo, com imagens de um ataque sniper a uma patrulha do exército norte-americano em Karmah e com o espantodo registo de uma prisão no Malawi. E a cores, pois, segundo amigos próximos, o jornalista terá dito que o preto e branco é o refúgio de fotógrafos medíocres, opinião muito controversa, pois todos os meios podem servir os génios. O resultado deriva do génio, da sensibilidade, do talento, da vertigem de diálogo do homem com o real a cada instante.

segunda-feira, julho 14, 2008

S.VICENTE, AS PRAIAS DO FIM DO MUNDO

fotografia de Paulo Barata (fragmento)


Lá para o fundo
das terras do fim do mundo,
as de perto,
pertode S. Vicente,
orladas de rochas onduladamente,
há praias em concha plana
que são breves desertos
escondidos pela Natureza
entre abismos de falésias fracturadas,
brancas e lisas enseadas,
curvas largas, lentas, em belos sedimentos
sempre afagadas pelas marés subindo.

Há gaivotas que voam devagar, rindo.
Há murmúrios das águas saltando, abauladas,
sobre as rochas baixas, redondas, faseadas,
paisagem rasa e geométrica,
cascos e barcos outrora partindo,
barcaças, depois traineiras, sem braços nem velas,
sempre a velha aventura do mar nas tardes belas,
sempre a falésia do promontório, vigilante,
e as vozes soltas dos pescadores rasurados,
peixe de rede, lulas à candeia, polvos com tridente,
ninguém antes nem depois do retorno à muralha.
Há horas assim, muitas, com sardinas saltando na malha,
ou tentáculos estendidos nas canas a prumo,
crucificados, feridos,
lagosta dos pobres nos dias seguintes,
petisco depois das lides.
e olhares de longe, do cimo da falésia,
como quem espera o fim das marés
e o direito de usar as asas de da Vinci
para pousar no anfiteatro dos deuses,
poucos, solitários, já destituídas de transcendência
ou de asas próprias de cada ascendência.

E então, nas praias desertas, mal habitadas,
um milagre aconteceu.
Não era um deus com asas de madeira,
nem Ícaro, nem da Vinci.
Era apenas um jovem saltando do alto da falésia
pendurado num belo e leve pano de riscas coloridas,
pássaro brincando, subindo e descendo
em traços de curva perfeita,
por vezes tão baixo que tocava o mar,
logo voltando a subir, a subir,
até desaparecer na quina das altas rochas a prumo.
As gaivotas, suaves,
seguiam-lhe de longe o milagre do rasto.

segunda-feira, julho 07, 2008

A PRESIDENTA DA FUNDAÇÃO JOSÉ SARAMAGO


Pilar del Rio, mulher de José Saramago, concedeu uma interessante entrevista ao jornal «Diário de Notícias». Ficou a perceber-se que se trata de uma personalidade carregada de auto-estima e que não tem medida para relativizar aquilo de que gosta. Quer ser considerada e nomeada como Presidenta da Fundação José Saramago porque é mulher. Dizem-lhe que a palavra não existe. Mas ela sabe que tem de existir e aponta o caso das mulheres que são chamadas para um ministério: todos as tratam por ministras. A política é um campo onde ela se expressa pela vanguarda e pela mais carismática imobilidade. Vota à esquerda, em Espanha, e uma vez por outra no PSOE. E em Portugal, como seria? Não hesita: Votaria no Partido Comunista. Os jornalistas fazem o que agrada às empresas. Pensa que os jornalistas não têm qualquer capacidade para ajudar a mudar o mundo. Quem poderá mudar o mundo são os seres humanos com capacidade para isso. Não se sabe se e como acontecerá. Pilar continua jornalista porque aprendeu a ler aos sete anos e sentiu sobre si a «revelação» de que queria ser jornalista. Não há jornalismo neutro. Um momento genial de Fidel de Castro quando esteve em Portugal: ele observava que os jornalistas, em redor, pareciam todos democratas. Descartando-se de perguntas de escasso interesse, Castro bombardeou assim os jornalistas: quantos anos estudaram jornalismo? É uma carreira universitária? Cobram muito? E a resposta dos jornalistas foi a seguinte: «Estamos num país democrático».
(Não lembra ao diabo, realmente)
Pilar del Rio tem muito mais pica: para ela, na Europa, todos os governantes que governam para seu benefício próprio e não para o povo são democratas? Berlusconi é um democrata? Bush é um democrata? Quem massacra um povo como o do Iraque é um democrata? Perguntas que vão desaguar, a terminar, nas especialidades de Fidel. Pilar, aliás, gosta de Hugo Chávez, embora não fosse a pessoa com quem tomaria café. Virtudes sim, defeitos à parte. Seja como for, Chávez é a pessoa que está a pôr água e luz nas casas onde não havia, faz escolas e preocupa-se com a saúde.
Ela pensa-se de esquerda. Votaria à esquerda. Não gosta de uma Europa onde pontificam senhores como Berlusconi e Sarkozy. E falando de Zapatero e Sócrates, Pilar disse que não são consideráveis porque vão ser isolados. «Quem manda é essa coisa tão patética e ridícula chamada Berlusconi» Pessoas assim irão fazer o possível por isolar os partidos socialistas.
Um pouco mais adiante, a vibrante Maria del Pilar diz que Zapatero é esperto e que soube rodear-se de mulheres, entes que (obviamente) trabalham mais do que os homens, melhor e em várias coisas de cada vez. Saramago? «Saramago gosta de mulheres» Aliás, perguntada sobre o casamento de homosexuais, diz que «é muito pior e mais complicado para a vida matrimonial os homens com barriga». A propósito: que presidente para os Estados Unidos? «Um negro». Dizendo que Hillary está cheia de ira e de raiva. «As pessoas deixaram-se levar pelo discurso muito bonito e poético de Obama»
(Quem diria?)
A Caminho foi comprada pelo império Leya. Não é desconfortável para Saramago? «Montar um escâmdalo porque a Leya comprou a Caminho parece-me um pouco provinciano.» A Fundação seguirá o critério de Saramago, o espírito crítico, mas sem negócio. Existem projectos, aberturas a publicações de escritores desconhecidos. «Não. Porque Saramago ainda tem vários séculos de vida». Gosta de estar orgulhosamente só? Pergunta errada porque Pilar é «a pessoa mais orgulhosamente acompanhada que existe no mundo». Acredita em Deus? «Não, porquê?» Nunca foi à missa? «Fui quando tinha de ir porque a minha mão me obrigava, porque me obrigava a sociedade, porque me obrigava a norma políticamente correcta e porque nos diziam que tínhamos de crer em Deus porque se não acreditássemos íamos para o inferno e o inferno era a ameaça que nos controlava.» Não Ficou chocada quando leu O Evangelho segundo Jesus Cristo?

«Não! Por Deus?»

Em Portugal só os falsos amigos é que ficaram chocados. Há problemas de tradução, catelhano é uma coisa, português outra. Mas, no plano político, zelará pela melhor tradução possível, pelo politicamente correcto. «Se a igreja Católica não tem problemas de defender o que defende, de dizer que as pessoas têm de morrer sem cuidados paliativos e todas essas coisas que vão contra o senso comum...» Diz-se que Maria del Pilar foi responsável por levar José Saramago para Espanha. «Claro que não. Foi o governo Cavaco Silva. Arranje outra razão». A Fundação José Saramago entende-se numa perspectiva ecológica. Isso importa à Presidenta? «Sim, mas a Presidenta assume o espírito da Fundação, que é o espírito que Saramago passa. Como iríamos viver tranquilamente a ler estpendos livros se o mundo está feito numa merda? Eu não posso ler rodeada de porcaria».
(É aceitável)
Que acha do próximo livro do seu marido?
«É um livro saramaguiano, cem por cento saramaguiano»

terça-feira, julho 01, 2008

NARCISA DOUBLE LIVE ou Ana Teresa Vicente


Esta exposição de fotografias de Ana Teresa Vicente mostra o lado mais profundo desta forma de registo e expressão, domínio onde a tecnologia abriu novos espaços de pesquisa, o que é notório, aliás, nos exemplos aqui apresentados. Aqui, uma jovem licenciada (Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa) trabalha uma encenação das coisas, dela mesma, em confronto com o espelho. O espelo ele mesmo. O espelho que resulta de uma janela e dos olhares que a atravessam e retornam. Ana Vicente pode questionar a distância, entre portas, ou projectar-se no espelho sem que a atitude narcísica se consolide, antes explica o Outro por fragmentações do real, detalhes, essa espécie de invisibilidade que continua existente epois da apropriação do visível.
Um dos problemas hoje recorrentes concentra-se na realidade e na aparência do corpo, dilatando-se a relação entre o sujeito e a sua imagem. A arte contemporânea, fracturante, legitimou diversos modos de aceder ao imaginário e de trazer para o espaço da realidade. O mito de Narciso, em vez de nos amarrar a um processo de auto-contemplação, desdobra-se num plano de múltiplas alucinações, entre o que se julga ver e a dimensão do sonho.
Ana Teresa Vicente, com as suas belas fotografias, chama-nos a atenção para muitas coisas, do projecto mimético, cara a cara, pelo espelo, o encontro com o Outro, ilusão que tem vindo a centrar-se na edificação da bra em superfície. Nesse sentido, cita Roland Barthes quando ele nos fala da ideia de Spectrum ao abordar o sentido de uma fotografia: «assim que permito ser fotografado, torno-me num espectro, numa sombra» As velhas fotografias dos nossos avôs, algo desfocadas em sépia, são agora mais verdaeiras do que no tempo em que eles viveram, tempo em que ainda desconhecíamos a sua verdadeira natureza de fantasmas. Memória para o futuro, tais apropriações dependiam e dependem de actos de encenação. E a nossa criação de novos duplos, após esse reencontro, tudo liberta e tudo irrealiza em ordem a outra invenção do real.


fotografias de Ana Teresa Vicente

A DIFÍCIL ARTE DE SER COMENTADOR


Não me sinto especialmente ligado aos chamados comentadores políticos (e afins) da televisão. E o que me faz publicar a fotografia do ministro Jaime Silva, omitindo a do prof. Marcelo Rebelo de Sousa, é o facto daquele membro do governo ter sido colocado bem perto da guilhotina. Escapou até agora, ao que parece, porque não há, entre nós, nem guilhotinas nem pena de morte.
Sou um observador vulgar dos acontecimentos políticos, não percebo porque é que os governos são todos tão maus, nem entendo muitos critérios jornalísticos, a completa anarquia da maior parte dos debates televisivos. Sou político porque sou cidadão. E hoje, aliás, o que me convoca para este espaço é mais uma questão relativa à deontologia dos redactores de jornais e a componente ética dos comentadores que nos visitam sem qualquer respeito por nós.
Num pequeno texto de Leonete Botelho, editado no «Público» de há dias, é dada a notícia de que Jaime Silva tem sido criticado em surdina por deputados do PS. O problema parece prender-se, depois de outros desaires, com algumas declarações do ministro da Agricultura e Pescas sobre «as supostas orientações políticas da CAP e da CNA», o que lhe teria trazido dissabores, comentários mordazes, a sua colocação na lista dos remodeláveis.
Esta pequena nota de entrada contextualizante ao que se segue, serve sobretudo para se sentir o modo de avaliações que se processa entre nós, entre pontas contundentes e sem qualquer análise de fundo ao que cada interveniente diz ou aponta programaticamente, tanto mais que essas questões, segundo me parece, deveriam ser explicitadas diante do público e discutidas de forma pedagógica. Fora isso, declaro que não venho avaliar nem julgar o ministro mal-amado, a sua perigosidade para o desastre nacional, a qualidade do seu jeito para o cargo que ocupa. Venho, isso sim, como cidadão e consumidor de informação audio-visual, fazer uma chamada de atenção para as declaracões cada vez mais incómodas da rubrica de Marcelo Rebelo de Sousa na televisão. Lembro-me de o apreciar desde longa data, apesar de algumas ginásticas menos correctas politicamente, mas, da última vez, tenho de considerar que a sua intervenção, em especial no que se referia àquele ministro, ultrapassou qualquer domínio de decência, de análise justificada, tudo atirado gesticuladamente para o ar com uma total falta de cortesia relativamente a quem o ouvia. Fiquei sabendo que «o ministro é a pessoa mais inculta do mundo», que nem vale a pena saber o que diz, porque é «completamente incompetente», além de poder levar com mais adjectivos decapitantes, como de resto aconteceu.
E eu, pergunto: a imprensa não escalpeliza esta competência do comentador político? Isto não é mais importante do que um cigarro fumado a bordo de um avião oficial a caminho da Venezuela? O que é preciso Marcelo Rebelo de Sousa dizer mais, aos sacões, cada vez com menos ordem e pior inteligibilidade, para que se faça a análise pública desse fenómeno, dado o lugar conferido ao professor, o programa especialmente tratado que lhe concedem, o que ele diz e como diz? Isto é tolerável, na sua completa falta de ética, ou há processos e pessoas que se guardam na gaveta das impunidades? Não teria sido possível, a um mestre do direito, prolixo aliás, desenvolver comentários bem medidos, bem explicados e sem aquela abusiva falta de respeito? O que é que está a acontecer na parcialidade partidária do professor, respeitável em si mas desaconselhável num programa de televisão conduzido daquela maneira? O comentário politicamente empenhado deve ter um lugar próprio e não se ocultar no nome. Há felizmente dois ou três exemplos do que resta no tornado português.
E, por mais estranho que pareça, calhou ter a oportunidade de ouvir o tal ministro a responder aos jornalistas sobre o incidente daquelas declarações. Para além de relativizir o programa como de entretenimento, sintetizou o problema e a sua posição com meia dúzia de frases claras, adequadas e respeitadoras.