terça-feira, agosto 25, 2009

PAULA REGO OU UM ROSTO DENTRO DA PINTURA

Paula Rego

Nem sempre, em Portugal, se prestam as devidas homenagens aos grandes criadores do domínio das artes. Há excepções. Mas nesses casos o excesso de vénias e privilégios redundantes chega a comprometer a o sentido das coisas, a medida do próprio génio. Paula Rego cabe perfeitamente no âmbito deste quadro, no sentido destas palavras. Este rosto arrasta com consigo a pertinência da obra entretanto louvada retrospectiva após retrospectiva, um rosto que ainda conheci jovem e belo, dividido entre uma entrevista que tinha de fazer à pintora, que soletrava o encanto das suas colagens, e o manto de formas fascinantes estendido no chão do atelier. Tudo lhe acontecia, já nessa altura, como ela pensava: pois agora, levada em ombros, como no futebol, aliena a sua grande obra dos anos 60, retira-lhe importância, e afadiga-se, entre modelos vivos e histórias de terrível sentido ou violência, no trabalho alucinante com pastéis de óleo, numa espécie de super academismo com um fio de perfídia, o gosto pelas crianças em plena catástrofe do medo e das maldades risonhas, tornando-se, enfim e afinal, numa das grandes contadoras de histórias em pintura, pintora ilustrativa, sem pudor, a quem os críticos de há uma ou duas décadas, puniriam sem piedade. Eles apagavam quem representasse ou contasse um «pedacinho» de gente à beira mar. Paula Rego tem agora, em abundância, as mais disparatadas consagrações, como este museu ou «Casa das Histórias», tudo feito segundo o lado mais visionário da pintora, mulher forte e sonhadora, que deseja e realiza histórias, as histórias da terrível tradição portuguesa, os pesadelos, os gestos torcionários sobre modelos no exercício da cópia interpretativa, fealdade a conjugar-se como beleza, o belo horrível, gente do fundo dos tempos, um rosto profundamente marcado por tão intensa entrega aos gritos e às armadilhas, um rosto, enfim, que se parece cada vez mais com os outros rostos, os pintados, os rostos do absurdo; é com eles que Paula vai conviver, patética, legando porventura a sua própria máscara às projecções de diversos estados do subconsciente e da memória. Paula sente a angústia de tanta coisa junta, percebe o lado enviesado de tanto êxito e mordomia. Mas é o que sabe fazer no atelier, lugar dos seus «brinquedos», dos seus «bonecos». Fica um pouco impertinente com a balbúrdia, diz coisas tolas e sábias, vai ter uma «catedral» para os mutantes que foi espalhando pela cultura das nossas regiões. Ao menos ninguém lhe aponta um dedo. Ninguém lhe pede contenção. Justamente: porque à sua volta todos perderam a contenção. Portugal está ali. Inteiro.



Declarando-se envergonhada com tantas exposições e ruído à sua volta, Paula Rego, na última revista do Expresso parece tomada por sentimentos patéticos, aflita com a desarrumação do ambiente de montagem do museu e das suas obras, esta tem de ficar à frente, a «Mulher-Cão», aliás capa do catálogo. Mas ela anima-se diz que «todos poderão brincar lá dentro. Seja apenas com um olhar, seja com o desejo de partir à procura dos contos escondidos naquele universo feito de espanto» (A Casa das Histórias é um projecto de Eduardo Souto Mourinho). Trata-se de, reconsagrando a obra de Paula Rego, fazer mais balanços, corresponder à sua obsessão pelos encantamentos das histórias: o museu passa a ser a casinha da senhora-menina, lugar onde ela poderá continuar a rir das suas brincadeiras desabridas e algo pérfidas. A pintora fala das histórias e assegura que «são extremamente violentas, física e psicologicamente. São más e belas, O grotesco é belo, que é a coisa mais maravilhosa que existe». E ainda acrescenta, entre outras coisas: «Há alguns contos (literatura portuguesa) que são terríveis, como o da mulher que corta o peito para dar de comer ao marido». Nesta festa do visual e do terrível, comenta: «Num país de brandos costumes, fazem cada clister... As pessoas são cruéis, mas às vezes também dão beijinhos. Portugal vive muito do chicote e caridade. Isso fascina-me. Admira-me. Espanto-me».
Depois disto não se espere que a pintura de Paula Rego seja um aprofundamento do país em termos de testemunho e denúncia. Apesar das personagens sombrias e da esquizofrenia delas, o que fica não é um dedo rasgando iniquidades. Fica a história de brincar, feita tecnicamente com grande profissionalismo. «Há muita narrativa na minha pintura. Porque não posso fazer um quadro sem ter uma história, sem ter em enredo»
Lá se vai a «pintura pela pintura», o primado da cor, o fim como abstracção. A não sar que Paula Rego seja apenas em parênteses redentor mas equívoco.



a avó dos meninos que brincam com os brinquedos dela

domingo, agosto 23, 2009

A BELA IMPERTINENTE E A DOR DE FRENHOFER

fotomontagem de rocha de sousa

Ainda bem que te revejo, Marianne. Fazias parte de outro filme meu, colada à imagem de Odette e aos sonhos brevíssimos da Alice. Meninos ainda, vasculhámos as teses de Antonioni em «Blow-Up», Brian de Palma em «Blow-Out», e assim por diante. É preferível viver assim, folheando o futuro, do que beber de uma só vez a purga do tempo. Lourdes, que belo rosto, perdeu-se num cemitério e automóveis e foi sofrer para a Grécia. Não, ela tentou libertar-se das feridas que lhe haviam provocado: voltou salva mas irremediavelmente envelhecida. Estivemos uma tarde a ver «O Contrato», do Greenaway. Sim, ainda bem que sabes: toquei no assunto num livro quase impossível de escrever, porque metade dele tem que dar a ver grandes pinturas não assinadas. Ah, isso? Podes dar uma vista de olhos, podes até ler. Sim, sim, aceito que o digas: escrever é uma forma de ler e uma forma de ver.

«No filme «Bow-Up» é claramente investigado o acto perceptivo enquanto tal e como qualidade básica da visão, comprometendo a consciência das impressões móveis numa necessidade não explicada de escolha. No caso da «Bela Impertinente», há uma espécie de enunciado vago da ideia de projecto, algo que poderia ter o mérito táctil das coisas, no sentido de as transformar em várias configurações de um sonho qualquer meio perdido, afectos antigos, o lado metafísico que informa muitas das nossas buscas práticas, técnicas, sempre a contornar ou ultrapassar o visível».


publicado a partir de Construpintar 02
onde o excerto utilizado é outro

«O pintor, que parecia ter saído de uma crise indeterminada, queria dar corpo a um certo projecto, abandonado, velho de dez anos. Eu acho a tese absolutamente determinante para enquadrarmos a natureza do pensamento plástico, a contingência da nossa relação com o mundo aparente, carregado de armadilhas e escondimentos. A Inabilidade inicial de Frenhofer, ou o ruído rasgador do aparo com que entra em perfeita deriva pelo papel, tudo isso nos remete para o lado trágico da arte enquanto criação emergindo de um pântano de memórias, fixações, afectos gastos ou desfeitos. Eu vejo isso. professor. E vejo que a tese, de um Balzac demasiado disciplinado, tem no filme um bom acerto. Em todo o caso, não posso deixar de acentuar que Rivette se perde no tempo e nos perde enquanto espectadores. Tenho que confessar, por outro lado, que a mão de Dufour exprime bem o envelhecimento da sua oficina, honrando o trabalho de Picolli na sua patética procura do amor acabado, da verdade atrás da porta -- o irreprimível desejo de dar sentido às formas antropomórficas, mas da ordem do monstruoso, que rasura sobre a tela. Para quê o modelo?, dir-se-á então. O artista, enfim na margem, aflora com o carvão a alvura preferível do papel ou rasga arduamente, em cadernos de mercearia, toscos nus de aparência velha e amarga. É isso que ele vê ou é isso que pretende dar-nos a ver, passando pelo modelo para interiorizar a parte do desejo que toda a criação envolve? Será que pinta apenas para si mesmo, arrancando a cumplicidade de Marianne, catarse regeneradora de um tempo único, afinal irrecuperável, cuja memória o vai devastar por dentro, fazendo soçobrar também a esperança inicial do modelo? É muita coisa para um filme só, apesar das quatro horas, e sobretudo porque, explicando as coisas por uma cartilha mais ou menos acessível, nos deixa entregues à nossa própria deriva. Muito bem, julgo dever dizê-lo, a citação de que a arte, permanecendo pelo tempo fora, será sempre esquisita e incompreensível. Bendita inutilidade, votada a guardar os nossos mais poderosos segredos e apontando para posteriores utilidades cuja natureza nos nos alegra e magopa, nos liberta e faz sonhar, o homem assim capaz de produzir civilização e poética. Por aí passa, mesmo em jeito de sombras chinesas, a nossa verdadeira identidade».

sábado, agosto 22, 2009

FÉRIAS MÍTICAS NA PRAIA: O MUNDO DESFAZ-SE














Quem renuncia à praia não é gente
de verdade, porque a praia, apesar das multidões,
das promiscuidades, da desordem urbanística,
do pouco zelo pelo tratamento das falésias,
é, dizem os aficcionados, o melhor tónico
de sempre, mesmo tendo cada vez mais nocivos
raios solares e até o fanatismo feminino,
ou de toda a gente, em passarem da pele
branca, por vezes bem bonita, ao mais sujo
dos bronzes.









Até se bronzeiam
previamente em máquinas,
das tais geradoras de doenças que até custa nomear.
E agora, além do mais, passa a haver outro
desporto de alco risco: procurar sombras debaixode falésias e rochas
avisadamente prestes a ruirem.
Ontem aconteceu que um troço de rocha
certamente instável, acabou por desabar sobre
os banhistas que se acomodavam afoitamente
naquela sinistra sombra. Vários mortos e feridos.
No Allgarve

Aconteceu numa praia perto de Albufeira.


Desta vez, a falésia desmoronou-se fragorosamente sobre a areia
e as pessoas que se acolhiam se acolhiam à sombra dessas «fortalezas»
em vias de ruir. Mortos e feridos. Casos dramáticos. Ajuda tardia,
sem a sem prospecção de lugares cujo uso por humanos coincide
com a regular erosão de colinas, barreiras, rochas, falésias.
E as autoridades, que colocaram uma placa de perigo ou proibição
na rocha que se pode ver na última destas imagens, falando
pelas televisões, dizendo o que vão fazer para que as pessoas
não se aninhem debaixo dos «matadores».
O que restou desta derrocada, um aparente sinal menhir,
Torre de Pisa sem engenheiros,
um rochedo há muito instável que vai ser
cautelosamente derrubado.

quinta-feira, agosto 13, 2009

MORREU SOLNADO, FICA UMA OBRA HUMANÍSSIMA

Raul Solnado

Sei muito pouco o que dizer perante a morte, entre familiares e grandes amigos da nossa história contemporânea, como é o caso de Raul Solnado. O que me vale, nesta situação de Solnado nos pertencer a todos e todos lhe pertencermos, é que o vazio provocado pela morte, absurdo da própria criação, distende-se por uma obra que ele nos deixa e que podemos visitar de várias maneiras, segundo meios muito avançados. Um dia isso será para todos, se chegarmos a esse dia, mas o actor pensou sempre em nós e tinha um apreço muito grande pelo lado mais humano e mais modelar dos seres que vivem, num certo abismo, nas margens da sociedade, quase párias, velhos perdidos na orla da calçada, artistas que morrem sem uma brisa de presença e de amizade. Mas em boa verdade, esta atitude solidária estendia-se a toda a gente, sem subserviências e com um grande sentido de solidariedade.



Desde muito cedo que recebi, calorosamente, este gesto, como outros, o triunfo do riso sem vaidade e os efeitos de um grande currículo profissional, no teatro, nas rábulas, na extraordinária criação de personagens em que nos reconhecíamos, a nós e a muitos outros, no cinema que vem desde o D.Roberto e que alcançou domínios de seriedade exemplar, de rigor, de contenção, aliás na mesma medida de importantes entrevistas. Sobre ele se escreveu talvez menos do que era preciso, pois Solnado, além de ser um dos maiores vultos na história do seu género mais conhecido, em Portugal, países lisófonos, Brasil em particular, era também, por excelência ,um personagem humano digno de estudo, de aprofundamento técnico e sociológico. Sempre lutou, mesmo nas peças de verdadeiro non-sense, pela afirmação do homem, dos seus valores, da ética e de uma afirmação da liberdade responsável a todos os níveis. Dele nos fica, com efeito, uma obra significativa. Um testemunho de humanidade. Um facto de arte limpa, apesar de, tantas vezes, ser inspirada na incultura e no analfabetismo do país, politicamente esfacelado.
Morreu o nosso amigo Solnado, um amigo em quem podiamos confiar. Talvez alguma perplexidade o assaltasse nos últimos tempos. Mas não era (disse) por medo da morte, coisa universalmente inevitável, antes porque gostava imenso de viver. «Viver é bom»