domingo, agosto 23, 2009

A BELA IMPERTINENTE E A DOR DE FRENHOFER

fotomontagem de rocha de sousa

Ainda bem que te revejo, Marianne. Fazias parte de outro filme meu, colada à imagem de Odette e aos sonhos brevíssimos da Alice. Meninos ainda, vasculhámos as teses de Antonioni em «Blow-Up», Brian de Palma em «Blow-Out», e assim por diante. É preferível viver assim, folheando o futuro, do que beber de uma só vez a purga do tempo. Lourdes, que belo rosto, perdeu-se num cemitério e automóveis e foi sofrer para a Grécia. Não, ela tentou libertar-se das feridas que lhe haviam provocado: voltou salva mas irremediavelmente envelhecida. Estivemos uma tarde a ver «O Contrato», do Greenaway. Sim, ainda bem que sabes: toquei no assunto num livro quase impossível de escrever, porque metade dele tem que dar a ver grandes pinturas não assinadas. Ah, isso? Podes dar uma vista de olhos, podes até ler. Sim, sim, aceito que o digas: escrever é uma forma de ler e uma forma de ver.

«No filme «Bow-Up» é claramente investigado o acto perceptivo enquanto tal e como qualidade básica da visão, comprometendo a consciência das impressões móveis numa necessidade não explicada de escolha. No caso da «Bela Impertinente», há uma espécie de enunciado vago da ideia de projecto, algo que poderia ter o mérito táctil das coisas, no sentido de as transformar em várias configurações de um sonho qualquer meio perdido, afectos antigos, o lado metafísico que informa muitas das nossas buscas práticas, técnicas, sempre a contornar ou ultrapassar o visível».


publicado a partir de Construpintar 02
onde o excerto utilizado é outro

«O pintor, que parecia ter saído de uma crise indeterminada, queria dar corpo a um certo projecto, abandonado, velho de dez anos. Eu acho a tese absolutamente determinante para enquadrarmos a natureza do pensamento plástico, a contingência da nossa relação com o mundo aparente, carregado de armadilhas e escondimentos. A Inabilidade inicial de Frenhofer, ou o ruído rasgador do aparo com que entra em perfeita deriva pelo papel, tudo isso nos remete para o lado trágico da arte enquanto criação emergindo de um pântano de memórias, fixações, afectos gastos ou desfeitos. Eu vejo isso. professor. E vejo que a tese, de um Balzac demasiado disciplinado, tem no filme um bom acerto. Em todo o caso, não posso deixar de acentuar que Rivette se perde no tempo e nos perde enquanto espectadores. Tenho que confessar, por outro lado, que a mão de Dufour exprime bem o envelhecimento da sua oficina, honrando o trabalho de Picolli na sua patética procura do amor acabado, da verdade atrás da porta -- o irreprimível desejo de dar sentido às formas antropomórficas, mas da ordem do monstruoso, que rasura sobre a tela. Para quê o modelo?, dir-se-á então. O artista, enfim na margem, aflora com o carvão a alvura preferível do papel ou rasga arduamente, em cadernos de mercearia, toscos nus de aparência velha e amarga. É isso que ele vê ou é isso que pretende dar-nos a ver, passando pelo modelo para interiorizar a parte do desejo que toda a criação envolve? Será que pinta apenas para si mesmo, arrancando a cumplicidade de Marianne, catarse regeneradora de um tempo único, afinal irrecuperável, cuja memória o vai devastar por dentro, fazendo soçobrar também a esperança inicial do modelo? É muita coisa para um filme só, apesar das quatro horas, e sobretudo porque, explicando as coisas por uma cartilha mais ou menos acessível, nos deixa entregues à nossa própria deriva. Muito bem, julgo dever dizê-lo, a citação de que a arte, permanecendo pelo tempo fora, será sempre esquisita e incompreensível. Bendita inutilidade, votada a guardar os nossos mais poderosos segredos e apontando para posteriores utilidades cuja natureza nos nos alegra e magopa, nos liberta e faz sonhar, o homem assim capaz de produzir civilização e poética. Por aí passa, mesmo em jeito de sombras chinesas, a nossa verdadeira identidade».

1 comentário:

Paula Raposo disse...

E de um momento inesperado tudo muda! Beijos.