sábado, outubro 16, 2010

OS HOMENS QUE DISPENSARAM SER HERÓIS

Miguel Sousa Tavares

No Expresso de hoje, 16 de Outubro, Miguel Sousa Tavares escreve sobre os resgatados mineiros do Chile:

«O Chile deu uma lição ao mundo e soube aproveitá-la, com planeamento e sabedoria. Durante 24 horas, milhões de pessoas, da China à Patagónia, tornaram-se fisicamente familiares daquele quarteto que, mais ainda do que os mineiros, ocupou a boca de cena o tempo todo: o Presidente Sebastián Piñera e a sua primeira dama, o cinematográfico ministro das Minas, uma espécie de António Mendonça austral, e a já-não-muito-jovem loira das relações públicas (...) Piñera aproveitou cada minuto de transmissão para efeitos de propaganda interna e externa. Ignorou ostensivamente o contributo da NASA para a construção da Fénix e não só, o papel determinante do americano chamado à pressa do Afeganistão para manobrar a perfuradora que chegou ao abrigo (...)
Nada, porém, teria funcionado se não fosse a extraordinária lição dada pelos mineiros, eles próprios. Dezassete dias sem comunicação com o exterior, sem poder dizer que estavam vivos, sem saber se os procuravam ainda e racionando a comida que dava apenas para dois dias. Um líder assumido desde o início, um chefe de turno que, não só não fugiu às responsabilidades, como se impôs para assumi-las. E uma capacidade de resistência, uma vontade e determinação exemplarmente patentes no texto da mensagem enviada para cima, ao fim de dezassete dias, agrafada à sonda que, enfim, os descobriu: "1. estamos todos bem no refúgio. 2. somos 33". Repare-se: nenhum apelo desesperado ("salvem-nos"), nenhuma queixa inútil ("não temos comida, as condições são terríveis"), nada. Apenas o que interessava saber cá em cima. A partir daí, esperaram, confiaram, prepararam-se para a hora do resgate e fizeram questão de sair barbeados, limpos, calmos, dignos: nada de sair como mártires, sujos, miseráveis, a apelar ao sentimento e à desgraça. Essa foi a grande lição: os grandes momentos exigem grandes homens»

ARTE COMO ESTATUTO SOCIAL E VERTIGEM

Leonor Nazaré

Num recente programa de televisão dedicado à situação do ensino artístico em Portugal, com a colaboração da Sociedade Nacional de Belas Artes e algumas personalidades do contexto,ouvimos coisas bem interessantes e a confirmação de que os governos que nos governam têm vindo a contrair a presença da Educação Visual, as bases do ensino artístico até ao 12º ano, bem como o valor formativo, em termos gerais pluridisciplinares.
Falando com os críticos e curadores, a coordenadora do programa, entrevistou brevemente Leonor Nazaré, do CAM, e por ela ficámos também informados de que o peso das instituições de prestígio, Gulbenkian, Culturgest, Serralves, é determinante para o sucesso de muitos artistas mais ou menos dotados. Os jovens sim, porque já não se praticam actualizações sobre o que estão a fazer os mais velhos (dotados de obra séria), e nenhum artista hoje pode dar-se ao luxo de não tratar, com os meios inerentes ao meio, do seu próprio marketing. Mais: as instituições vocacionadas para o serviço público, como as que citámos, têm todo o direito de enveredar por uma tendência, estudando-a e propondo-a com prioridade cultural. Mas a Leonor está enganada, no seu plinto dourado: são essas organizações as que mais têm o dever de formar públicos, de ser plurais na qualidade e na publicação pedagógicas das artes em geral. Grupinhos de curadores, sedentes de voltar a dividir (para reinar?) aquilo que é aberto e indivisível nas suas semelhanças e diferenças, disso já vimos as consequências, lutas, razões cegas, injustiças.
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Leonel Moura

Leonel Moura, artista plural, incisivo e por vezes impertinente com aqueles que não saúdam a sua intocável razão, tem feito percursos interessantes nas artes plásticas, desde a bad painting à recente exploração da robótica. Não sendo uma descoberta isolada, esse trabalho com robots, ele aprofundou variantes e criou uma realidade sua, apelativa, que produz efeitos (não bem resultados) de grande interesse visual e susceptíveis de alcançarem melhores performances.
Também entrevistado naquele programa, Leonel Moura, como habitualmente, falou em geral de instituições ligadas ao ensino artístico e da sua dificuldade na procura dos acompanhamentos das rápidas mudanças dos novos paradigmas neste domínio. Paradigma, para tudo e todos, eis a questão. Mas sim, as escolas e outras instituições ligadas às artes devem acompanhar os novos valores, novos métodos e novas tecnologias. Os computadores são uma ferramenta de eleição, mas a massificação da sua presença tem perigos evidentes. É verdade, contudo, que o próprio computador pode fazer de pincel, pode criar formas e figuras inusitadas. Eu próprio já apresentei experiências desse tipo, com obras inteiramente trabalhadas através do computador enquanto ferramenta principal. Mas isso, num campo não dogmático como a arte, não tem nada a ver com instrumentos obsoletos ou de última geração. Pode trabalhar-se com pincéis, rolos e ferros de soldar. E com as mais invulgares matérias sustentáveis. O que é lamentável é a afirmação peremptória, e destituída de qualquer verdade estético-funcional, com que Leonel Moura mimoseou os telespectadores. «A Arte tem de acompanhar a velocidade das transformações técnicas e de conteúdo da criação artística no presente. Um pincel, por exemplo, é já, sem dúvida, um instrument o obsoleto».
Um pincel é um instrumento como qualquer outro. E se hoje usamos o machado de aço e madeira para cortar certos materiais, isso deve-se ao fascinante património que bem conhecemos -- o coup de point. Magritte representou mimeticamente um cachimbo e legendou esse trabalho da seguinte forma: Isto não é um cachimbo. Hoje podemos fazer o mesmo com a representação de um pincel (isto não é um pincel) e trabalhar com ele logo a seguir: a grande capacidade do homem em recorrer a ferramentas inesperadas ou antigas, torna os aparelhos obsoletos paralelos a um bisturi electrónico.

domingo, outubro 10, 2010

BREVE, A MORTE, ENTRE O LUGAR E O TEMPO

o lugar
Todos os dias passo neste lugar, numa rua mortiça do bairro onde vivo. Passo por aqui e sei que este velho maple, abandonado pelos donos como traste velho e usado pelos pedreiros de uma obra ali à esquina como travamento do trânsito, tem sido conservado no tempo, há largos meses, já sem serventia mas suscitando eventuais encenações do quotidiano.
Perguntei ao vizinho:
«Que raio, então esta tralha vai ficar aqui para sempre?»
E ele:
«A Câmara só tem um giro, de mês e mês, para recolha de coisas assim».
«E acha bem?»
Ele levantou, de espanto, as fartas sobrancelhas:
«Essa é boa, eu não pertenço à Câmara, vizinho».
«Tem, razão, desculpe. É que isto brada aos céus».
«O responsável por isso já lá está, no céu».
«Que ideia é essa?»
«Oiça, oiça: há cerca de duas semanas sentou-se ali um pobre trolha, meio tonto do vinho, que trazia na mão apenas aquelas pedras na lata. Pousou a lata e fez um cigarro. Fumou, tossindo, durante algum tempo. Depois, aparentemente sem forças, deixou-se ficar a olhar para os carros que passavam ali, devagar. Em breve estava a dormir, até o chapéu caíu para o lado. Ninguém lhe tocou, ninguém procurou acordá-lo. Há casos assim, de respeito, de compaixão».
Eu percebi a história mas não a persistência do maple naquele lugar impróprio. Mas o vizinho tinha resposta para isso, aliás igualmente estranha:
«O homem ficou ali toda a noite, sempre na mesma posição reclinada. De manhã, os transeuntes que o haviam visto na tarde da véspera, procuraram saber se o homem precisava de auxílio. E tudo se passou um ápice».
«Tudo o quê?»
«A descoberta (em alarido) de que o desgraçado estava morto».
«Estava morto?»
«Exactamente».
«E depois?»
«Depois foi um ajuntamento de pessoas, a espera durante cinco horas pelo delegado de saúde, e por fim a remoção do cadáver para a morgue.»
Eu disse apenas, para me redimir:
«Que tragédia...»
Logo me lembrei de outra coisa:
«Mas isso não desculpa o facto de não terem removida o maple.»
O vizinho sorriu, meio desolado:
«Muitas pessoas que vivem aqui perto e acompanharam o acontecimento, incluindo a absurda espera pelo delegado de saúde, impediram o piquete camarário de retirar o objecto».
«Porquê?»
«Eles apenas disseram que, se as autoridades tinham o seu tempo para cumprir a lei, eles também reivindicavam a permanência do maple no mesmo lugar, pois assim poderiam exprimir todo o seu tempo de nojo, em memória da vítima.»
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o mesmo objecto serve duas histórias diferentes
mas de reflexão idêntica, aqui e no blog contrupintar02

quinta-feira, outubro 07, 2010

REPÚBLICA PORTUGUESA, CEM ANOS E DOIS DIAS

ilustração alusiva à proclamação da República Portuguesa



Foram vontades e sonhos, a revolta contra o abismo, algumas consciências visionárias. Portugal mudou de regime com a proclamação da República a 5 de Outubro de 1910. A comemoração dos cem anos da República propriamente dita decorreu há dois dias, mas as ressonâncias foram de molde a cuidar ainda do facto, passando apenas alguns sinais dessa história conturbada e fascinante.
A primeira acção da I República que se colou aos meus olhos e ao meu espírito, além das conversas ouvidas durante a infância, foi o cuidado havido em instaurar um verdadeiro ensino artístico, embrião de um tipo de cultura que é inerente à realidade da civilização. Quando ingressei na ex-Escola de Belas Artes (depois superior, depois integrada, como faculdade, na Universidade de Lisboa) começei a perceber a história deste ensino maldito, sempre na rectaguarda do que se foi fazendo na Europa. Mas os republicanos, vivendo uma revolução complexa, entre golpes e governos de poucos meses, institui aquele ensino em 1911, um ano apenas depois do seu começo. Mal ou bem, com mestres de academias e frouxa modernidade, a verdade é que o conceito integrava uma visão própria de progresso. E, apesar das várias e tímidas transformações das Escolas de Belas Artes, atrás só nomeadas, a verdade é que um novo regime demonstra uma nova ideia ao fim de um ano. E essa ideia, defeituosamente instalada pela elites do tempo, acumulou atrasos e mais erros, tendo chegado ao seu verdadeiro nível ao fim de um tempo de cobardia de cerca de 90 anos. A própria democracia proporcionada pelo 25 de Abril de 1974 (e esta já é uma generalização incerta) só criou condições para fazer avançar o ensino superior artístico 13 anos depois das primeiras comissões da Escola terem feito chegar ao parlamento e aos governos para lhes lembrar o que, neste âmbito, já deviam ao país e à sua substância ce cultura e civilização. Ninguém percebia o que era isso, os artistas foram transitoriamente declarados como desnecessários, e um posterior acaso de pessoas e de certas circunstâncias permitiu abrir a tal luz ao fundo do tunel, entre vários meses de trabalho de uma Comissão providencial. Os governantes (em Portugal) demonstraram quase sempre, nessa época, uma enorme desactualização sobre as questões da cultura, realidade que não permitiu a criação de um espírito nacional aí ancorado, sede da abertura ao futuro -- como bem compreenderam os republicanos de 1911.

Não vou reiterar, noutros campos a comemoração deste centenário, porque isso está feito e as festividades tiveram pontos fortes, apesar da crise que nos atinge neste momento. O Viva à República será assim (talvez) um dito e uma imagem que emblematizam a hora, cem anos atrás.

Apesar da agitação havida e dos recontros de frentes de acção política. É inquietante e libertador ler a história da I República.


a hora dos revolucionários

À noite do dia 4 a moral encontrava-se baixa entre as tropas monárquicas estacionadas no Rossio, devido ao perigo constante de serem bombardeadas pelas forças navas e nem as baterias de Couceiro, aí colocadas estrategicamente, traziam conforto. No quartel general discutia-se a melhor posição para bombardear a Rotunda. às três da manhã, Paiva Couceiro partiu com a bateria móvel, escoltado por esquadrão da guarda municipal, e instalou-se no Jardim de Castro Guimarães, no Torel, auardando a madrugada. Quando as forças da Rotunda começaram a disparar sobe o Rossio, revelando a sua posição, Paiva Coiceiro abriu fogo provocando baixas e semeando a confusão entre os revoltosos. O bombardeamento prosseguiu com vantagem para os monárquicos, mas às oito da manhã Paiva Couceiro recebeu ordem para cessar fogo, pois ia haver um armistício de uma hora.
Entretanto, no Rossio, depois de Paiva Couceiro ter saído com a bateria, o moral das tropas monárquicas, julgando-se desamparadas, piorou ainda mais, devido às ameaças por parte das forças navais com bombardeio. Infantaria 5 e alguns elementos de Caçadores 5 garantiram que não se oporiam ao desembarque de marinheiros. Face a esta confraternização com o inimigo, os comandantes destas formações dirigiram-se então ao quartel-general onde foram surpreendidos pela notícia do armistício.
Quando as tropas retiraram do Rossio, e com a saída à rua por parte dos populares, a situação tornou-se muito connfusa, mas já favorável aos republicanos, dado o evidente apoio popular. Machado Santos confronta o general Gorjão Henriques com o facto consumado e convida-o a manter-se no comando da divisão mas esterecusa. Machado Santos entrega assim o comando ao general António Carvalhal que sabia ser republicano. Pouco depois, pelas 9 horas da manhã, era proclamada a República por José Relvas, na varanda do edifício da Câmara Municipal de Lisboa, após o que foi nomeado um Governo Provisório, presidido por membros do Partido Republicano Português, com o fim de governas a nação até que fosse aprovada uma nova Lei Fundamental. 1
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1. O triunfo da revolução, consultado em Wikipédia, a enciclopedia livre

Lê-se e não e acredita, parece quase uma opereta um uma performance amadorística, não contando com a instabilidade posterior, entre grandes sonhos para um país novo e a derrocada já anunciada a montante, no estertor da monarquia. E depois parece um guião para o 25 de Abril, esse dia morno em que os carros de combate de Salgueiro Maia «acantonaram» no Terreiro do Passo. Houve a Junta de Salvação Nacional e também uma Assembleia Constituinte para redigir outra Lei Fundamental, agora já em começo de roptura numa crize mal explicada e mal gerida, eventualmente o início de uma Superior Reforma à escala global, como tanto se apregoa. Mas de verdade ninguém sabe verdadeiramente em que consiste essa globalidade e se deve ou não ser combatida quanto antes. Lá porque as comunicações o permitem, não parece razoável deitar ao lixo todos os enxovais e apertarmos o botão de uma mútua mortandade.

uns esperando por outros, um passeio armado pela Rotunda