Todos os dias passo neste lugar, numa rua mortiça do bairro onde vivo. Passo por aqui e sei que este velho maple, abandonado pelos donos como traste velho e usado pelos pedreiros de uma obra ali à esquina como travamento do trânsito, tem sido conservado no tempo, há largos meses, já sem serventia mas suscitando eventuais encenações do quotidiano.
Perguntei ao vizinho:
«Que raio, então esta tralha vai ficar aqui para sempre?»
E ele:
«A Câmara só tem um giro, de mês e mês, para recolha de coisas assim».
«E acha bem?»
Ele levantou, de espanto, as fartas sobrancelhas:
«Essa é boa, eu não pertenço à Câmara, vizinho».
«Tem, razão, desculpe. É que isto brada aos céus».
«O responsável por isso já lá está, no céu».
«Que ideia é essa?»
«Oiça, oiça: há cerca de duas semanas sentou-se ali um pobre trolha, meio tonto do vinho, que trazia na mão apenas aquelas pedras na lata. Pousou a lata e fez um cigarro. Fumou, tossindo, durante algum tempo. Depois, aparentemente sem forças, deixou-se ficar a olhar para os carros que passavam ali, devagar. Em breve estava a dormir, até o chapéu caíu para o lado. Ninguém lhe tocou, ninguém procurou acordá-lo. Há casos assim, de respeito, de compaixão».
Eu percebi a história mas não a persistência do maple naquele lugar impróprio. Mas o vizinho tinha resposta para isso, aliás igualmente estranha:
«O homem ficou ali toda a noite, sempre na mesma posição reclinada. De manhã, os transeuntes que o haviam visto na tarde da véspera, procuraram saber se o homem precisava de auxílio. E tudo se passou um ápice».
«Tudo o quê?»
«A descoberta (em alarido) de que o desgraçado estava morto».
«Estava morto?»
«Exactamente».
«E depois?»
«Depois foi um ajuntamento de pessoas, a espera durante cinco horas pelo delegado de saúde, e por fim a remoção do cadáver para a morgue.»
Eu disse apenas, para me redimir:
«Que tragédia...»
Logo me lembrei de outra coisa:
«Mas isso não desculpa o facto de não terem removida o maple.»
O vizinho sorriu, meio desolado:
«Muitas pessoas que vivem aqui perto e acompanharam o acontecimento, incluindo a absurda espera pelo delegado de saúde, impediram o piquete camarário de retirar o objecto».
«Porquê?»
«Eles apenas disseram que, se as autoridades tinham o seu tempo para cumprir a lei, eles também reivindicavam a permanência do maple no mesmo lugar, pois assim poderiam exprimir todo o seu tempo de nojo, em memória da vítima.»
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o mesmo objecto serve duas histórias diferentes
mas de reflexão idêntica, aqui e no blog contrupintar02
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