sábado, maio 23, 2009

INVULGAR HOMENAGEM A UMA VIDA DIFERENTE


Tomei conhecimento em Silves, há cerca de uma semana, que a cidade perdeu um dos seus mais curiosos habitantes, apesar da pobreza e da diferença, cidadão que teve a desdita de nascer com deficiência mental, em definitivo limitado no desenvolvimento da fala, bem como noutros aspectos estruturais ser enquanto da prestação comum enquanto ser humano. Cresceu inicialmente sob a protecção dos pais, gente modesta mas responsável dos deveres inerentes a um caso assim, desde muito cedo, aliás, compreendido e acompanhado pela população da cidade. Na cama de um anexo hospitalar, já com idade avançada mas impossivelmente determinável, morreu Zé Xana, assim mesmo, como era conhecido por toda a gente. Confirmaram-me o que eu próprio verificara, ao longo de décadas, sempre que vinha a férias: que o Zé, eterno moço, inicialmente descalço e depois ajudado e arranjado por instituições sociais, desfrutara sempre de uma saúde de ferro. Umas vezes encontrava-o de sandálias com meias e um casaco escuro, em espinha, calças pardas, amarrotadas, barba crescida, pele curtida do vento e do sol, cabelos hirsutos, negros, gritantes. Outras vezes, anos depois, descobria-o nos sítios habituais, derivas por lugares que lhe eram próprios, paragens nas mesmas praças, rindo a quem passava, «café, café... o Zé sabe, tu és Amorim. Teu pai teu pais?» Se alguém se afastava, com alguma indiferença, ele não barafustava nem gritava -- dizia apenas para a distância maior: «Quando voltas morim, quando voltas? Teu pai teu pai?» Sentava-se na calçada e ria, em bronze, cabelos rijos; chamava por outros que passavam, voltava bem depressa à sua deambulação pela cidade, vencendo horas e horas de passos e pausas junto de qualquer sítio. Sempre capaz de identificar quem via, se era alguém, se era alguém da realidade social da terra ou comerciantes que vinham habitualmente ao mercado. Vencia, com risos e bonomia, todos os silêncios, a mudez dos domingos, a incerteza de certos acontecimentos, e cada vez mais, ao contrário da idade invisível, a sua memória acumulava nomes e rostos de muitas pessoas, fosse qual fosse a hora de chegada, até aqueles que regressavam da guerra no Ultramar, voltando outros. Souzinha souzinha, tás tu?» E eu: «Em Lisboa». Ele ria-se porque já sabia: «Souzinha, zinha, teu mano teu mano, teu mano onde mora? Teu pai morto, tua mãe morta, teu mano souza?» Olhava-o, abismado, via-lhe um rosto de rapaz enrugado, quase castanho, cabelos duros com pintinhas brancas aqui e além: «Toma, Zé, vai beber o teu café». E ele queria, aceitava, pedia mais, ria sempre e não se afastava de nós enquanto não nos despedíssemos dele.
Vivia, por último, numa casinha estreita e branca. As vizinhas e outras pessoas haviam decidido naturalmente tratar de limpar-lhe a casa, lavar as roupas, dar-lhe de comer. Para uma cidade acinzentada e pobre, onde as pessoas se metiam em casa durante dias e dias inteiros, sobretudo quando da morte da indústria corticeira, tal solidariedade era quase patética. E mesmo quando tudo mudou para melhor, de 74 aos anos 90, ninguém esqueceu o Xana, nem o tratou com mais negligência. Ele foi sempre nosso companheiro de chegadas e partidas, ali ficava nas ruas empedradas, acenando com gestos do coração, rouco, ainda que o cuspo lhe aflorasse aos lábios. «Souza, teu mano, pá? diz, diz, teu mano e os meninos, os menos grandes?» Os olhos húmidos sabiam exprimir essa saudade, anunciar essas lacunas, como aconteceu durante a guerra e depois do 25 de Abril.

Zé Xana nunca trabalhara, por clara incapacidade cognitiva; trabalhava, contudo, até o sol se pôr. Era o seu modo de trabalhar, manter o seu mundo em volta, exercer a faculdade da memória específica. Assim procurava os outros, saudava os outros, mesmo quando começou a decair, sujando-se, deixando romper-se a roupa. Lá foi recolhido, enfim, para o tal anexo de um velho hospital, a saber o que sofria, não no desespero da morte. Creio que ele não sabia o que isso era, o que não espanta, pois nós mesmos não sabemos, embora nos passe o resultado dela pela consciência. O Zé esteve sempre atento às visitas, porque as recebia, visitas sobretudo da sua zona, pessoas simples, gente que ele agarrava com os olhos sombrios ou molhados, atribuindo o nome certo a cada um, agitado, logo pedindo «abraça, abraça, abraça».
Morreu, enfim, o Zé Xana, figura emblemática de um certo quotidiano. E, por mais surpreenden- te que pareça, a cidade fez-lhe o funeral, um bonito funeral, e encheu as ruas que permitem acesso, demorado, ao cemitério. Vivendo numa bebulosa onde as memórias se certificavam de centenas de pessoas, talvez parentes, Xana passou aos habitantes da cidade uma mensagem profunda, assim agradecida por uma multidão que respeitou, com a grandeza da humildade, aquele desconhecido diferente, morto por nada, aquele «estrangeiro» que todos sabiam ser português e que todos acompanharam à derradeira morada.
Deus não estava ali, mas os homens sabem, por vezes, fazer o Seu trabalho.

segunda-feira, maio 11, 2009

TELEVISÃO DE MASSAS E REVOLUÇÃO IMPOSSÍVEL


A televisão é uma das maiores descobertas do século XX e tem hoje horizontes técnico-expressivos que parecem ultrapassar a capacidade humana quanto à sua veradadeira utilização, entre formatações, efeitos especiais e diversos tratamentos temáticos. Tanto podemos ver um espaço cénico quase impensável, inteiramente virtual, como sermos confrontados com a mais pindérica forma de contextualizar certos processos de comunicação. Os maneirismos primários abundam em quase todos os programas ditos de entretenimento. A «(lei» da oferta e da procura, já de si perversa, torna-se completamente distorcida pelos programadores dos quatro canais portugueses e apêndices em função prioritária: a famosa competitividade caduca nos caducos modos de administração ou de gestão e os criadores, reduzidos ao novo riquismo aparente dos meios, tornam-se reféns de modelos pseudo-avançados, em nome das massas, da carnificina para as massas e níveis de audiência, vivendo obsecados por esses rasgos de triunfo à percentagem. Estas pessoas (consideradas acima do próprio saber elitista) não passam afinal de manipuladores da opinião pública, acabando por acreditar piamente no jogo: se os temas de violência e e intriga fazem subir as audiências, é porque os telespectadores preferem amplamente as matérias de tais produtos.
Assim falava, dizemos por analogia, um Freedman, entre outros, defendendo economias de marcado livre, sem regras «castradoras», pois só dessa troca aberta sairia um natural equilíbrio entre os agentes produtores e s consumidores, entre exportações e importações: a «lei» da oferta e da procura determinaria a dinâmica capaz de contribuir para o simétrico princípio dos vasos comunicantes. Trata-se de mais um embuste, corrente cega que levou o capitalismo de índice neo-liberal a contaminar o mundo inteiro, sob o rótulo retumbante da globalização, a jusante do fenómeno da multiplicação dos escudos pela «banqueira do povo» (Dona Branca) e em biliões e biliões de perdas rasas. O mais apto capitalismo, de preferência «sem Estado ou menos Estado», desabou estrondosamente, a gritar pelo «Pai». Porque, como é óbvio, os operadores e agentes financeiros e toda a panóplia de gigantes da Banca sempre fizeram bluf ao longo da História. Para que um mercado equilibrado e pacífico, sem fronteiras, decorra como sugeria o imaginário de algumas luminárias, seria preciso que todos os homens estivessem marcados por uma honestidade à prova de todos os riscos, não precisando de fiscais, coordenadores ou supervisores. Mas, como a História já demonstrou, o género humano não pertende ao imaginário reino dos anjos bons: aquelas criaturas, dotadas de inteligência, primam em grande medida pela desonestidade, pelo gosto do poder, numa insana ganância fixada nos valores monetários ou de propriedade, e assim se guerreiam pelo vértice da pirâmide. De resto, vivem desde há muitos séculos civilizações baseadas nessa estrutura triangular, ou seja, segundo critérios totalitários, tanto políticos como militares e religiosos, donde surgiram, quer em nome de Deus (a entidade mais totalitária que nos inspira) quer em nome da sobrevivência, sobre placas de oiro. Foi nesta perspectiva cada vez menos defensável que surgiram os grandes objectivos civilizacionais (suicidas) que delinearam, a longo prazo, o crescimento a todo o custo, em vários campos, na quase totalidade dos campos, cujos primeiros resultados já contaminaram praticamente todo o século XX e anunciam crises planetárias e sociais na actualidade e séculos futuros. Admitindo que esta alucinação demente tem ainda condições de reversibilidade, a mudança de rumo implicaria implosões deliberadas e colossais, uso inverso dos meios naturais e tecnológicos, ampla racionalização do contacto com o território, por forma a pulverizar os núcleos comunitários da vida colectiva. E o maior dos trabalhos, a verdadeira revolução, consistiria em matar as emergentes grandes guerras, com o maior pragmatismo possível, dentro de uma enorme reserva de direitos. Espero que os mitómanos saudosos dos fabulosos torcionários da História não me interpretem como arauto da utopia do mal. E que pennsem na grandeza dos meios de que dispõem num mundo cada vez mais pestífero, entra montanhas de informação ou informação feita lixo. Há um interessante video-clip britânico que retrata um mundo em destroços, em consequência do excesso, e algumas minmorias de humanos dependentes da televisão, programas in formáticos, informação em massa, lixo envolvente de tudo isso. A imagem central e ezemplar desse vídeo mostra um homem ainda novo, obeso, engolindo pela boca e pelos olhos milhões de dados informativos que se desfaziam uns aos outros e criavam o risco de fazer explodir o pobre e derradeiro homem do consumo. Essa imagem é-nos dada em directo, depois de assistirmos, com horror, à irreversível expansão da criatutra em todos os sentidos. Um crâneo solto derrama no ar a pasta do cérebro.

PARA UM JUÍZO SOBRE AS NOVELAS E SUA ERRATA

Os dirigentes das televisões, directores de programação, sobreudo, dizem que os produtos emitidos (caso das novelas) são escolhidos ao «gosto do público» e não para fazerem vénias a minorias pem pensantes. Ao falarem assim parece que esquecem o facto de uma das maiores invenções do século XX quase não servir para nada, edicando-se ao arbítrio sa publicidade e ao «estímulo» da líbido. Ao contrário do que dizem tais mercadores, sabe-se que o público se converte, no verdadeiro sentido ao produto de qualidade. Seria perfeitamente possível, no manejo das emissões e horas de presença, fazer com que os telespectadores reconhecessem o muito maior valor artístico (onde o entusiasmo do ver se confirma) da novela Olhos nos Olhos (imagem em cima) em confronto com subprodutos nefastos, em termos culturais e lúdicos, como Flor do Mar ou Feitiço do Amor, títulos que, só por si, confirmam o mais pindérico aceno ao teor marcantilista e de reles manipulação, por baixo, do chamado gosto popular.
À novela acima assinalada deveria ser-lhe dedicado um estudo exaustivo, não só por se tratar da grande excepção, mas porque, no campo formal e conceptual, se distingue por quase tudo, da fotografia à interpretação, do argumento ao modo como é tratado, da escrita ao universo da família judaica, às simulações e aprofundamento de sentimentos. Trata-se de um trabalho de excelência (empacotado por baixo de duas novelas inomináveis), sujas armadilhas de desconforto anti-pedagógico. Ali há jogo, suspense, nível cultural, óptimo desempenho dos actores, vertentes históricas e sociológicas. Um dia, a televisão há-de sentir na pele as mudanças do público para modelos mais próximos desta experiência, se não os minimizarem.


Feitiço do Amor é um daqueles subprodutos ainda muito vinculados à ortodoxia brasileira (separadores em paisagem aérea, a fazer o bonito pelo turismo, e canções gravadas parea acompanhar certas cenas, e cujo nível de som come quase por completo a voz dos autores, o que
é um erro básico. De resto, o turismo trata-se de outra maneira e as canções não podem pecar por defeito. Parece mentira, mas aqui houve sete operadores de texto, sendo certo que a personagem principal, num enjoativo papel debitado por Rita Pereira, numa auto-protecção eqívocada do mau da fita (Afonso) e do bom da Fita (Henrique). Maria João Luis excede-se, ganhando pouco com isso. Uma televisão que se respeitasse a si mesma trataria de superar a voracidade pelas audiência e estudaria com os bons técnicos e actoes de que dispomos outras vias para a telenovela em geral, no sentido do superior interesse do público e do país em termos de cultura disponível nos aufio-visuais. O que se está a fazer só não é crime porque não vem no famoso e errático código penal.


Flor do Mar não tem classificação. É um produto inadmissível para qualquer valência média de cultura e mesmo de apego ao jogo, ao entretenimento. Os operadores de escrita fazem o inominável em banalidade de texto e concepção grosseira de tipos: os personagens têm mil vezes na boca a pergunta de quem não percebeu bem («Desculpa?») ou respostas igualmente estereotipadas («É impressão tua»). Para actores de qualidade já uma direcção sem préstimo. Rogério Samora (Gaspar) faz porventura o pior papel da sua vida (e nem se sabe como disfrutam tanto este medíocre intérprete). A sua atitude (da Actors Studio?) de pôr e tirar os óculos tem momentos absolutamente risíveis. E esteve quase para improvisar o mesmo truque com uma desgraçada caneta. Provoca a hilariedade e o drama torna-se farsa. Gaspar grita em mais de 70% das suas falas, aliás como outros, levados na corrente dionisíaca. Mercês (C. Carvalheiro) faz uma tia que nem o piores momentos do teatro D. Maria serviriam para medida. É uma coscuvilheira compulsica e caricata. A Salomé (Paila L. Antunes, que deveria continuar a trabalhar a sua figura feminina e a graciosidade que ainda a serve) rasga-se toda em mulher má e ganaciosa, afogando as suas melhores qualidades e deixando em destaque a sua boca de lábios a contradizer a fulgor dos olhos. Além do mais, há canções a propósito e tudo e de nada, separadores paisagísticos, nehuma criatividade de registo, todo o abuso no Flash back. Aqui foi seguida à letra a pior das metodologias brasileiras, erro crasso de que os nosso geniais irmãos ainda não se libertaram. A telenovela brasileira tem de ser substituída por idêntico género, mas
em termos próprios do nosso tempo e numa dinâmica que não se leia como erro, errância, publicidade crassa. Aliás, nos seiados, nem sequer o Equador serve de exemplo: texto seco e pobre, cenas breves por conveniência, péssima direcção de actores, hieratismos ridículos. Aí nos cale uma boa produção, contextos de qualidade, e um razoável acerto da câmara.


sexta-feira, maio 01, 2009

PRIMEIRO DE MAIO, TRABALHADORES E PÂNTANOS



O Primeiro de Maio foi considerado o dia do trabalhador. Todos os anos aumenta o número de potenciais trabalhadores, enquanto tudo se multiplica inutilmente e as cidades industriais são tomadas pela poluição até níveis impensáveis, proibitivos, contrários à vida e ao respeito pelo nosso habitat, mesmo que pensemos em termos planetários. Os grandes países que caminham para a obstrução de tudo por tudo, subindo na soma absurda das taxas de crescimento, obrigam os operários e outros agentes da produção a recorrer à mecânica dos pedais e das bicicletas à medida que os carros entopem as vias e são sujeitos às mais diversas mutações híbridas. Um capitalismo sem medida e sem balança de estabilidade foi implodido de forma global, entre estrangulamentos de toda a ordem, desemprego alucinante, falências, crises de difícil saída. Apesar das tentativas para manter no futuro um Maio florido, hoje, em Lisboa, a multidão fazia o caminho do protesto. É notório o desencaminhamento de todos, incluindo a agressão a um candidato às eleições para a Europa, desvio sem sentido na pessoa considerada, de todo sem relação com os oportunistas da crise, em termos nacionais e mundiais.
Grande turbulência por essa Europa fora, no medo por um futuro inacessível. Chovem objectos inúteis de fábricas inúteis, justamente quando mais precisávamos de planeamento justo e justifi- cado, nem demais nem demenos, um outro sistema, um novo caminho civilizacional em que os espaços comunicassem harmoniosamente entre si, produzindo a medida certa e criando a boa quadrícula da distribuição dos povos pelos territórios, sem metrópoles monstruosas e assime- trias de tudo em tudo. O crescimento não favorece o desenvolvimento, nem as cidades odiosas ajudam a aprender melhores comportamentos e um espírito criativo assente em sólidas bases éticas.
Talvez um dia, assim, o mundo se redimensionasse de forma humanista, Maio de novo florido fora da industrialização por excesso. Lembram-se do 1º de Maio de 74, em Portugal? Parecia anunciar um país novo, as mãos dadas, e afinal chegámos em 2009 a uma democracia feita de partidos apodrecidos em pântanos, o mundo em volta também.