sábado, setembro 27, 2008

O MUNDO SOCRÁTICO, A LAGARTIXA E O JACARÉ


O Homem, além de se constituir como a mais transcendente criação da Natureza, tem a liberdade de se duplicar ao espelho, ou de se contradizer perante si mesmo, ofuscando a Criação com os grandes cartazes da sua efígie, dizendo aos mais pequenos da sua espécie a importância da escala, nos valores que defende e na sua realidade visível. Sócrates foi um dos filósofos do mais profundo pensar na tão lembrada civilização grega. Tão fino e alegórico quanto um outro também deificado, Platão, o da «Alegoria da Caverna». A sombra dos seres que se recortavam na abertura daquela sublime gruta projectava-se na parede rasurada do fundo, silhuetas sobrepostas, duplicadas, simétricas, laterais - ruído enquanto verdade decifrável, o real em si, capaz de suportar os comportamentos dos seres e de se significar por cada descoberta da sua natureza aparente e encoberta.
Um pensador dos nossos dias, que circula por Lisboa e pelo Mundo, comentando quais as possibilidades de certas coisas serem valiosas, no encontro, aliás, de uma maioria de indigentes ou lunáticos da política, nunca se esquece de publicar, semanalmente, a estranheza dos acontecimentos, sobretudo em Portugal, procurando assinalar as assimetrias menos toleráveis, essa distância demencial definida entre a lagartixa e o jacaré. Sócrates já abandonou a caverna, pois sabe os meios que hoje pode usar para fazer as suas palestras, com ideologia, sem ideologia, com ponto transparente ou sem ponto nenhum, aprendendo o discurso breve e preciso, próprio dos meios de comunicação moderna. Fala curto e preciso, deliciado com a força que a sua voz ganha na distância. Os seus detractores escarnecem desses novos hábitos, porque a filosofia e a política, estruturantes da Res Pública, devem beber-se como um chá chinês, na respectiva liturgia. O Sócrates de que o comentador fala, professor independente de Platão, é hoje um homem sem qualquer espécie de ideologia, não passa de um puro pragmático, tendo poderes mágicos que fazem inveja a muita gente, o poder da metamorfose, surgindo em pleno espaço público com metade da face transformada na respectiva metade de um pigmeu chamado Loução.
É claro que, bem vistas as coisas, uma simbiose tão cabal e pragmática envolve uma duplicidade pensante verdadeiramente arrojada e de importante recorte ideológico.
Mas a o jacaré (ou será a lagartixa) vive numa amargura de grande ciumeira, vendo arrogância a torto e a direito num filósofo que tantos discípulos acharam sóbrio, dialogante, sério e grave. Só a plebe se embebeda com tal maledicência, usando nomes e características impróprias do Mestre. Ora o Mestre está com as rédeas do poder nas mãos, não pode ser lasso, nem esticar muito o cabedal: toda a gente sabe disto, mas tão tarde depois ainda dizem que o único fio condutor (de Sócrates) é o discurso do auto-elogio mais ou menos arrogante (outra vez?) suportado por muita propaganda. O outro fio condutor (desta diarreia de vaidade) é o ataque sistemático e também arrogante (mais?) a tudo o que mexe e lhe parece oposição. Meu Deus, o que havemos de fazer a este senhor que grita penalty por tudo e por nada, dizendo dos outros que já sabe tudo, tudo antecipadamente, já se vê, mesmo quando se está dormindo no sofá, sem força para saltar nele como nas alturas em que o Benfica mete um golo. Toda a gente julgava quea função das forças governantes era a de defenderem os seus pontos de vista, dando publicidade a isso (o que não se confunde com arrogância, nosso senhor nos acuda). Nesse caso, Sócrates teria de dizer, com mais ou mens pormenores, é uma questão de método, não de maldade, o que pensa do que devem ser as respostas às situações envolventes. E à própria oposição, que se deve opor, está bem de ver, com aquilo de cujo fundo discorda, propondo alternativas, com mais ou menos ideologia, com mais ou menos vitalidade.
Ninguém percebeu aquela frase de que agora assiste-se a uma nova valorização das virtudes populistas. Além do mais, o que devemos pensar dos estragos que este homem e o seu governo estão a fazer ao País, quando o exemplo para tão grande crime é declarado como o discurso socrático, anticapitalista, feito em Guimarães? O senhor que fala assim, baralhando, em plena batota, a carta do valete Loução com a carta do valete Sócrates. É um senhor com uma excelente cabeça, estilo ex-revolucionário, que gritava contra o Magalhães num programa de rádio cham,ado «Flash Back». Não, ainda não era o Magalhães computador. Era o Magalhães Magalhães, aquele que também era zurzido no programa televisivo «O Círculo da Quadratura».
Quatro cavaleiros andantes, onde em geral se sobrepunham vozes, o comentador talvez mais com empáfia do que com arrogância (coisas próximas) e sempre sem a menor dúviuda dos defeitos alheios. Mas agora todos nós estamos interessados em que ele deixe as tricas com os homens do poder político e venha, sem tantos truques de linguagem desenfreada, analisar no limite de velocidade os fenómenos deste tremor de terra que faz estremecer o mundo capitalista (já não há outra coisa em parte nenhuma) e deita pelo chão muita ganância encoberta. Que soluções? Que novos projectos e sentidos para a vida, para as urbes apodrecendo, para territórios abandonados? O deserto e o apocalipse já «todos sabemos» que estão à porta, mas é tempo de nos pouparem a essas palavras disparatadas que significam crescimento, concorrência, competitividade, liberalismo, neo-liberalismo.
Oxidou a máquina do génio, sabiam? Isso dos votos, dar votos, tirar votos, é mera estratégia urbana de pantomineiros que só mimetizam os pequeninos factos do dia a dia, o mistério de uma palavra, o conflito de A com B, os siameses que nasceram na Assembleia da República e que o
dr. Gentil Martins vai operar, para os separar a preceito. E de vez.

terça-feira, setembro 23, 2008

TELENOVELAS DO NOSSO DESCONTENTAMENTO



Não pensem que a torturada expressão desta actriz, Alexandra Lencastre, se integra no contexto de uma profunda dor de alma, o corte brutal, olhos nos olhos de quem recebe a notícia da morte de um pai ou de um filho. O que acontece é que esta senhora, engolida por tudo o que a televisão tem de pior, se vê neste constrangimento facial sem perceber o péssimo efeito que daí resulta. Será bom acrescentar-se que Alexandra Lencastre era uma boa actriz. Mas há cedências que nos estampam o amargo do lucro no próprio rosto. Alexandra representa aqui não mais do que uma birra de mulher que sobe na vida através das mais alvares maldades, das armadilhas mais torpes, inomináveis em última instância. A senhora jé é viúva de um velho comerciante com quem casou no ocaso da vida (dele), já abandonou a família reles que é das mais grosseiras caricaturas que a Lia Gama alguma vez pensou desempenhar e exagerar, apanhou entretanto maridos alheios, praticou ilícitos de dimensão cósmica, usa a filha para ter relações o seu próprio amante e filma tão edificante situação, procura entretanto caçar um falso brâmane, filho do velho há pouco citado e que desembarca (riquíssimo) em Lisboa, no império das lojas Império, herdeirode boa parte de tudo isso. Alexandra Lencastre consegue deslizar como um réptil na mansão da família da Império, manipulando a filha, cujos genes são iguais aos seus, no mesmo sentido do golpe, do roubo dos namorados alheios, na vileza de crimes de morte, meninas impertinentes até ao vótimo, sem um mínimo de ocupação, sem nada, entrando e saindo dos quartos, pronunciado os mais despudorados clichés.
Estas anotações extraídas do que pude ver e compreender deveriam ser ajustadas a todo o guião, ao mesmo tempo que gente séria e independente teria a missão oficialíssima, sem omissões nem prazos de silêncio, de analisar este apopdrecido produto, impróprio para consumo, cujos rasgos de malvadez (a personagem principal a mandar matar a irmã a fim de lhe roubar a fortuna, os filhos, o próprio marido) não têm disfarce nem fim pedagógico. Esta é que é a verdadeira violência dos audiovisuais, em telenovelas que prendem os incautos e enganam o Eduardo Moniz com parolas audiências ou sonolentas passividades. Três novelas de seguida, qualquer delas com o mesmo modelo e a mesma impunidade de louvar ao Diabo. A degeneração das personagens que espalham o ódio, os vícios, as mortandades, nada contrapõe a essa indigestão de beleza adiada a ácido sulfúrico, quer quanto a uma nuance sobre o histerismo complexo do mal, quer em relação à indigência das falas, da escrita. Tudo aparece a nu, dito a cru, combinado a cru, cruelmente, gerando grandes partes de espectáculo tão vil quanto pronográfico. As audiências não justificam tudo. Com a antiga Lassie, regressando a casa depois do maior estoicismo, podemos dizer que o irreal também poluía as mentes, apesar dos milhões de pessoas que aderiam áquele modelo. Um bom modelo, como já aconteceu, capta grandes massas de público em pouco tempo. Se a TVI fosse menos ganânciosa e tivesse um bocadinho de bom gosto e de maior paciência, veria que a difusão continuada de produtos de grande conteúdo estético e de aprofundamento do homem não demorariam tanto como pensa a aderir a esses valores. Não é por acaso que os concertos no CCB chegam a estar cheios, que Pina Bausch esgota lotações, que muitos outros importantes autores arrastam multidões. Claro que há as mutidões da «pesada» e do «futebol», mas uma coisa não exclui a outra. O que se vê na TVI, em termos de novelas portuguesas, é a pior literatura de base, o mercado dos piores valores, e a constante humilhação dos artistas nacionais, algo que parecia impossível por causa do teatro conservador e da «naturalidade» dos brasileiros, e que hoje nos absorve com inteira justiça. Há tudo por onde escolher e actores jovens a par dos mais velhos, capazes de representarem a um nível invulgar. Seria bom que, com mão certa, se escolhese e produzisse a sério, sem levar actores valiosos a se mercantilizarem trocando cachets chorudos por caretas intermináveis e gritarias arrevesadas nem realistas nem expressionistas.

quarta-feira, setembro 17, 2008

DRAGÕES, LEÕES, E OUTRAS PRECIOSIDADES



O futebol português tem sofrido com o mercado de jogadores, suspeições relativas a dirigentes e árbitos, vultos supremos do treinamento, vitórias morais, falta de sorte, tráfico de infuências, excesso de estádios e muita relva para cuidar, entre várias outras coisas confrangedoras, tendo em conta estes velhos ícones de gerações que erguerem o dedo a Federções, tribunais federativos, UEFA, Liga dos Clubes, sempre em nome de uma Pátria de aventureiros sem fronteiras.
O presidente da Câmara de Gondomar, PSD dedicado à população e plural nos seus afazeres em vários campos, sobretudo no futebol, apontado por alguns como um injustiçado, foi indiciado, por volta de 2004, pela prática de 23 crimes de corrupção desportiva e tráfico de influências, saindo em liberdade na noite de sexta-feira, tendo como medida de coacção a proibição de contactar com outros elementos envolvidos no processo, a aplicação de uma fiança de 250 mil euros e a suspensão dos cargos de presidente do Metro do Porto e da Liga Poruguesa de Portuguesa de Futebol Profissional.
É um retrato estranho do futebol nacional, o que decorre desta envolvência jurídica que aponta o dedo a um homem suspenso de três presidências, diferentes entre si, e a uma coação de 250 mil euros. Esta notícia já foi ultrapassada: Valentim Loreiro tem vindo a derrotar o tribunal e, ao que
parece, faltam-lhe ainda dirimir o ultraje de mais sete acusações. O «apito dourado» soa em todos os nossos estádios e vai, porventura, passar a figurar nos estandartes dos clubes. A profissionalização escandalosa dos jogadores, movimentando milhões e milhões de euros, devia terminar com uma boa dose de reformas antecipadas. Um futebol de amadores dispensava muita gente inútil, dirigentes em excesso, deixando que a turbulência da competitividade se acantonasse noutras fortalezas igualmente sufocantes.
(risos).

sexta-feira, setembro 12, 2008

CADA ESCOLA É UMA ESCOLA

Marçalo Grilo, ex-Ministro da Educação



No pós 25 de Abril de 1974, entre cravos e bandeiras de esperança, as escolas, secundárias ou superiores, ficaram reféns das mais variadas teses de reforma. Já havia a reforma da autonomia universitária (a aceitação política do facto, pelo menos) e abaixo desse patamar depressa começou a verdadeira revolução, ao sabor dos elencos partidários, maiorias, minorias de interventores, as liberdades e o caos. O caos era quase todo da mesma cor, mas as liberdades variavam consoante uma mistura capciosa de ordens, as do Povo e as do Ministério a Educação.
Quando Marçalo Grilo era Director Geral no sector da Educação, estava a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa a procurar consagrar uma reforma posterior à de 57, mas num trajecto que já vinha de 72. A pretensão dos elementos desta instituição de Ensino Superior era a de contribuir para a actualização do país nesse domínio, numa altura em que o Ministério da Educação mantinha as rédeas do sistema como podia, ainda sem grandes ideias, Os Conselhos Directivo e Científico da Escola fizeram sentir a Marçalo Grilo que a situação das Escolas Superiores de Belas Artes do país, à semelhança do que se fizera em Espanha, e em geral, aliás, na Europa, implicava a integração daquela área, a do domínio dos estudos de índole artística, nas universidades. Estava-se num tempo em que já não se concebiam tais instituições sem investigação artística, estudos de arte avançados, incluindo o design e a arquitectura nas suas principais vertentes. Tudo, naturalmente, numa lógica de desenvolvimento a que os nossos governos saídos de Abril pelo menos tiravam o chapéu. Pensou-se que tal atitude não correspondia a uma simples gesto de cortesia. Em todo o caso, e para grande espanto dos colegas estrangeiros, em Portugal só havia, soltas, desalinhadas em inovações execráveis, três Escolas Superiores: Belas Artes, em Lisboa, no Porto, e Medicina Dentária.
Aquele membro do Governo, ao tempo, resistiu a todos os argumentos apresentados pelos representantes da Escola de Lisboa: dizia, em suma, que o país não precisava de artistas (julga-se que se referia apenas áquela altura), que o Design roçava a utopia e não tinha designação nacional, que a arquitectura sim, sobretudo pela natureza da sua produção.
Ninguém quererá discutir isto de novo, considerando o nosso estatuto na Europa e o presumível facto da natural evolução do ex-ministro da Educação, hoje Administrador da Fundação Calouste Gulbenkian e Presidente do Fórum para a Cidadania entre 2006 e 2008. Marçalo Grilo revela-se mais aberto, falando sobre o domínio da Educação entre os professores, pontos de decisão, autonomia das escolas. Foi sereno na entrevista, sem contradições de maior, advogando que «não há um sistema educativo, há escolas, e cada uma deve ter autonomia para desenvolver o seu projecto educativo». Afirmou também que «temos professores magníficos e que são eles a peça fundamental para resolver o puzzle da educação. Um puzzle que nunca estará completo sem os pais e, claro, os alunos. Que estão lá para aprender e ir o mais longe possível».
Já se ouviu isto em qualquer parte, em qualquer tempo, em diferentes situações. É como se fosse possível, demagogicamente, dizer, com a sonoridade de 74: «Menos Estado e mais Escolas Autónomas». Procurando bem, na entrevista, conceitos, métodos, que processo autonómico defende Marcalo Grilo,veremos como fala da autonomia das escolas, se a seu belo prazer, entre a vila e o cosmopolitismo, mas de forma calibrada na relação com o meio e os materiais disponíveis, se numa invenção e numa liberdade da Escola integrada. Ele acentuou, quanto à reforma da escolas, «que o parceiro que menos deveria intervir é o próprio governo. Se olhar para uma escola inglesa, o papel do governo é essencialmente regulador». Embora não se deva brincar com estas coisas e se deva respeitar a opinão dos outros, quem evoca o exemplo inglês não o pode extrapolar, sem qualquer insert regulador, para o nosso espaço sócio-cultural. Porquê? Porque não é possível: serve, em termos académicos, para colocar questões, estudar outras formas, entre a diferença e a semelhança. Há um momento da entrevista em que parece que o entrevistado é imperativamente a favor da autonomia integral das esclas, estejam elas onde estiverem, com mais ou menos limitações, com mais ou menos menoridades de contexto, origem, ausências, distâncias. Não é bem isto, como parece, pois o estado sempre regula alguma coisa, o leitinho, tecnologias novas, algumas regras universais, a da própria sobrevivência do Estado, por exemplo.
Mas vejamos que teoria floresce aqui, sensata ou utópica. Numa das suas respostas, Marçalo Grilo diz: «Mais do que tomar medidas, é preciso ser cauteloso, sensato, equilibrado na sua aplicação. A ideia da uniformização das escolas é aberrante e perigosa, porque as escolas são toda diferentes e nesse sentido devem adoptar sistemas de governo e formas de aplicação da lei que podem ser diversas. A uniformidade é inimiga da melhoria do funcionamento das escolas. Aquela ideia peregrina de ter um sistema educativo, uma espécie de estrutura tentacular em que as escolas eram todas iguais, está hoje completamente abandonada. Cada escola é uma escola e cada uma dela terá formas, quer do ponto de vista organizativo, quer do ponto de vista pedagógico, consoante as melhores soluções».
Em Portugal, neste momento, é preciso meditar nestas palavras. Não porque estejam erradas e defendam a instauração súbita da utopia no real. Mas porque um caminho destes, no caos de aptidões e estruturas que existem, na brutal distância que separa os saberes uns dos outros, precisa de outros alinhavos primeiro. Houve uma altura em que o país não precisava de artistas nem de designers. As prioridades eram outras e as vontades políticas também. Pois vejamos: se naquele tempo o Drector Geral errava a sua mira, sob a plausível verdade do seu saber, a estranheza da parte dos professores ali presentes começava pela pintura que estava atrás da secretária da pessoa que os recebia de forma tão certeira. Hoje o senhor Administrador volta, apesar de muitas outras aprendizagens entretanto conseguidas, a pecar por desajuste entre a teoria e a prática. Cada escola consigo mesma. o Estado, pouco. Entre isso e o agora, nem uma almofada? Porque há corpos que rejeitam certos remédios. E há Escolas que rejeitam certas camas. É preciso quem os socorra e as socorra numa tragédia assim, contra assombro da solidão do interior ou mesmo no recurso a um mínimo de rede contra o grande espaço urbano, onde a peste impera.

Rocha de Sousa

quarta-feira, setembro 10, 2008

QUEM É ESTA MULHER QUE VEM COM McCAIN?


Lugar de OPINIÃO do «Diário de Notícias», secção o tempo e a memória, de Mário Soares. Sob o título «Mudança dos Republicanos», este político incansável, atento, activo, controverso mas inegavelmente lúcido, alinhou no capítulo 1 da sua crónica de 8.09.08, uma importante série de considerações sobre o «choque psicológico e do excepcional êxito da Convenção Democrática», que parece ter remobilizado o Partido Democrático dos E.U.A, considerando, nesses termos, que se esperava uma forte reacção da Convenção Republicana. Nada disso se verificou. Bush teve assim o pretexto de que precisava para não comparecer, dado que a sua presença já era vista como perigosa, tal é o nível baixíssimo da sua popularidade e a própria agitação, quase simbólica, das forças da Natureza.
McCain, candidato republicano à Presidência dos E.U.A. tinha vindo a ensaiar um distanciamento de Bush, o que era, de um ponto de vista estratégico, bem compreensível. Contudo, numa viragem surpreendente, aquele candidato mudou a sua orientação política, convidando para o cargo de vice-presidente a «quase desconhecida e ultraconservadora governadora do Alasca, Sara Palin». Mário Soares faz então diversas perguntas: se as razões do convite partiam do facto da personalidade convidada ser mulher?, se tivera importância o facto de ser gonernadora do Alasca?, se garantia o discurso electrizante apropriado às circunstâncias? Seja como for, pelo menos esse discurso foi de facto produzido, deixando em segundo plano as palavras do próprio McCain. Palavras que o articulista achou formarem um discurso «descabido, confuso e pouco convincente.
A imagem feminina da senhora Palin, antes de falar, parece capaz de adoçar a virulência republicana. Nada disso, pelo que se viu. «A senhora Palin (escreve Soares) ultrapassou, pela direita radical, as posições desastrosas de Bush e de Cheney. Um discurso que, embora muito aplaudido na Convenção, fará mais estragos, no eleitorado americano, do que se imaginava pudesse criar o Gustav. Ela foi o verdadeiro furacão que abalou a Convenção.» Com efeito, é quase certo que terá consequências sensíveis sobre muito do eleitorado moderado e flutuante, republicano ou independente, aquele mesmo eleitorado que McCain procurava captar.
Mário Soares também foi sensível ao contraste entre a senhora Palin e McCain no jogo das aparências, o desiquilíbro entre uma relativa juventude e um homem que acaba de festejar os seus 72 anos. E contudo, a senhora Palin alimenta «ideias dificilmente aceitáveis pelo eleitorado moderado (mesmo republicano) que tem vindo a afastar-se de Bush. É uma neocon radical. Reclama mais armas, mais política de força, intensificação das guerras, mais pena de morte, mais petróleo, sem a mínima preocupação com a defesa do planeta ameaçado. É religiosa fanática, contra o aborto, contra os gays, criacionista, subscreve os desvarios anticientíficos contra a teoria da evolução, unilateralista, estando convencida de que a América, com a benção de Deus, poderá governar o mundo. Ela ignora as crises, o desemprego, o déficit astronómico.» Vistas bem as coisas, e aceitando que o articulista poderá alimentar algumas subjectividades, o que parece é que esta mulher, uma vez eleita, daria à América mais quatro anos do mesmo assombro. «Um pesadelo para os E.U.A, um desastre para o Ocidente. Soares quer concluir o que é óbvio numa argumentação assim, aliás plausível: que o desastre atingiria a Europa e o Mundo. Na esteira de um clima, aguçado pelo homem, que já começou a tratar do assunto.*

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* Leitura do artigo de Mário Soares, com citações, dada a sua oportunidade

quarta-feira, setembro 03, 2008

AS MÁSCARAS E O CORPO, ARTE OU DESEJO

AS TRIBOS DE OMO
fotografias de Hans Silvester



Nos confins da Etiópia, entre séculos de modernidade, Hans Sylvester dedicou seis anos a fotografar tribos ou homens, mulheres, crianças e velhos, verdadeiros génios de uma arte ancestral. A seus pés, eles tinham o rio Omo que cavalga o triângulo Etiópia, Sudão, Quénia, o grande vale de Rift que se separa lentamente de África, uma região vulcânica, enfim, que forneceu a estas comunidades uma imensa paleta de pigmentos, ocre, ocre avermelhado, verde, amarelo, branco ou cinzento. Na verdade, essa gente invulgar tem um jeito dinâmico para a pintura e usa como suporte das tintas o seu próprio corpo. Como chegam a medir dois metros de altura, não têm melhor tela para exercer a magia da sua arte. A força dessa arte pode resumir-se a três palavras: os dedos, a velocidade e a liberdade.
Desenham, por exemplo, com as mãos abertas e com as pontas das unhas, por vezes com um bocado de madeira, uma raiz, um tronco queimado. Os gestos são vivos, rápidos, espontâneos, desde a infância; tais gestos consolidam um movimento essencial que faz lembrar os grandes mestres contemporâneos, justamente quando eles têm muito para aprender e tentam, por bem, tudo esquecer.
Somente o desejo de ornamentar, de seduzir, de ser belo, um jogo e um prazer permanentes, isso lhes parece bastar, às gentes de Omo, para mergulharem os dedos na tinta e, dentro em pouco, dois ou três minutos, alcançar a expressão plástica: ela surge sobre o peito, os seios, o pubis, as pernas, tudo nada menos que as conhecidas invenções gestuais, mais ou menos contidas, de um Miró, um Picasso, um Pollock, um Tàpies, um Klee. Todas as diferenças são aqui ultrapassadas e aceites as semelhanças da vontade intrínseca, lúdica, litúrgica, entre a beleza e magia do ser.