terça-feira, maio 28, 2013

MEMÓRIA DOS MORTOS OU BANIMENTO PELO FOGO

Múmia de grande antiguidade

Certos povos, da antiguidade e dos nossos dias, perante a morte e os seus mortos, cuidam de os preparar para a eternidade, e desenvolvem liturgias da cremação, muitas vezes ao ar livre e com a participação dos que, assim, apelam a uma vida expurgada dos males da terra e purificada. A chamada civilização Ocidental, à medida que avançou no conhecimento do Homem e das suas expectativas, entre a memória, a História, as artes, as técnicas e o sentido de preservação dos espólios de ligação à família e aos seus bens materiais e espirituais, sempre deu prioridade, em face da morte e dos mortos, à conservação mínima dos entes falecidos, quer nos cemitérios convencionais, quer em jazigos ou grandes túmulos e templos, muitas vezes ditando mais tempo, ou todo o tempo, através da mumificação, à conservação dos mortos, alegando a sua ressurreição e o conforto na longa espera. 
    
As mais longínquas sepulturas, embora trabalhadas com um grande sentido de intimismo e permanência, são já a ideia de que a absurdidade da morte só pode ser temporária. Tal como nas mais sofisticadas e personalizadas mumificações, muito desenvolvidas, quer corpo a corpo, quer em túmulos de importância quase inexplicável, talvez tanto como a da própria morte, como aconteceu no Egipto, quase dando a entender na existência de crenças, em especial para os faraós endeusados, que toda a comunidade girava em torno de uma gigantesca luta contra a morte, na preservação sobretudo dos que melhor, no futuro, poderiam voltar a representar a Nação, as suas glórias e de novo o conteúdo histórico das narrativas, cultos, História, heróis ressuscitáveis. Isto configura passos civilizacionais que explicam ou iluminam a própria contemporaneidade, apesar das modernas tecnologias, viragem das sociedades para a produção diversificada, intensificação das metrópoles e da vertigem consumista, entre desenhamentos filosóficos que foram inquirindo o sentido e o não sentido da própria vida, o corte radical da morte, a ilusória guarda de cadáveres ainda com algum sentimento de luta contra a perda. Os existencialistas e os intérpretes da corajosa literatura do absurdo, assumiram a vida nas suas representações de escassa duração, apesar dos serviços e indústrias trabalhadas para durar por séculos e séculos. Assim se minimizava o Homem, sem o deificar enquanto pensador e criador no curto tempo da sua vida. A morte em massa das duas Grande Guerras e a frente de cariz industrial  de uma espécie de indústrias da morte, com os campos de concentração dos nazis, intuito obscuro de apagar da face da terra o povo judeu; a morte, embora sublinhada de forma trágica, foi sufocando os grandes cemitérios e levando à banalização dos seres humanos, sublinhados em vida com importantes direitos, quase destituídos de tudo, da sua própria memória, depois da morte.



Os velhos cemitérios são hoje cada vez mais controversos, não tanto pela sua desnecessidade, mas por uma indiferença pelo sentido da vida, até pelo sentido do seu não sentido, começam a dar abertura às razões de espaço e de várias mercantilizações. O dinheiro substitui tudo o que vai perdendo estatuto e os governos, na globalização que lançou estranhas crises por todo o mundo, não desdenham erguer novas pirâmides -- só que, desta vez, para arranhar os céus e albergar gente, serviços, tecnologia da comunicação, milhares e milhares de presenças apressadas e cada vez mais doentes entre doenças novas e, noutros continentes, doenças velhas. Vive-se da moda e da marca, enfrenta-se a austeridade ou fome disfarçada e abrandamento das dívidas. Os nossos mortos não são propriamente atirados para a vala comum, mas são submetidos a um novo serviço funerário -- a cremação. Se isto é tão óbvio, resumindo-se depois a uma taça cujo pó obtido pelo fogo fica meio cheia de cinzas, as quais podem ficar numa prateleira ou espalhar-se pelo mar, entre flores em agonia, porque não se institui, então, um serviço público de apagamento corporal dos mortos? Se tudo é a bem do sentido prático e da economia de recursos territoriais, porque é que as novas funerárias do fogo ainda metem o corpo numa urna cara e pagam-se sumptuosamente pela fogueira que a Inquisição gostaria de ter inventado?

 porventura, século XXI, a morte
de funeral de marca e muito prático 


 portanto ao pó voltarás

sábado, maio 18, 2013

ENTRE CORTES E EMBUSTES, PORTUGAL NEM SEQUER SE FAZ AO MAR



Primeiro Ministro, ontem, rezando ao povo


Chovia copiosamente a um mês do Verão e alguns lisboetas iam comer pipocas para cinemas em miniatura, olhando filmes cuja expansão sonora tem provocado tantas doenças dos ouvidos como cancros da mama. E eu, cidadão K, encontrei um velho amigo do tempo do décimo quarto ano da guerra "colonial". «Olá, velho amigo, só nos encontrámos duas vezes depois daquela fuga de Angola. Ah, e também na Fonte Luminosa, depois do 25 de Abril.» O velho amigo disse: «É verdade, as voltas que a vida dá. É bom encontrar-te, K. Sabes, eu já estou aposentado, juntei uma pequena poupança, mais de cem mil euros, mas agora com a crise e a ladroagem dos sistemas tive que dividir aquilo por três bancos, porque a Europa Unida já se esqueceu dos direitos e deveres humanos: dizem que só são sacrossantos os tais cem mil, qualquer cêntimo a mais pode vir a ser engolido (roubado) em maiores crises ou complexas situações dos bancos (falências, que hoje até se fingem).
Coloquei a mão sobre o ombro do meu velho amigo e disse: 
«Podes guardar metade em casa ou meter tudo num paraíso fiscal.»
«Não sou capaz. Já dividi as tranches. Como a reforma (pensão) vai sempre para o banco, e como eu até há meses confiava nos bancos, nunca contei sequer a seriedade dos depósitos. Ontem fui lá e vi um pequeno aumento na conta à ordem: era da pensão, mas quase por metade. Fui saber: o empregado, triste, disse-me que isso era o resultado dos vários cortes feitos nas pensões desde o entendimento com o plano da Troika para o plano de ajustamento. O que é isso? E ele, pesaroso: «é o plano de austeridade.» Encrespei-me: «mas a reforma de um trabalho de mais de 40 anos passa por um direito inalienável, para isso servem contratos, cálculos, a própria vigilância do Tribunal Constitucional. Quando querem adiantamentos por conta do IRS, mandam pelo correio um papelito com a conta: é um aviso de dívida que eu não contraí mas sempre é um aviso. Agora não: sou confrontado com um corte silencioso e cego, sem que ninguém tentasse saber se eu não entraria logo na falência, porque as despesas com senhorios e outros ganhadores do mesmo tipo podem provocar despejos, palavra imunda para figurar em qualquer lei, mesmo essa.»
«Oiça, meu velho amigo, há um deserto à nossa frente e eles andam a discutir se fingem que pagam mais taxas (cortes) nas pensões ou engolem mesmo as medianas pensões e reformas com mais cortes, o que lhes está à mão de semear e não tem nada de reajustamento nem de civilizado, é só mais fácil, como num casino falsificado em que se arrecadam jogo perdido a três milhões de cidadãos frequentadores». E o homem, meu velho amigo, arregalou os olhos: «então estou frito: ou mato-me ou mato parte dessa gente que manda de olhos vendados. Isto começou com o Saramago e o Nobel: cegou as pessoas de manhã, em branco, deu cabo deles todos, e depois fugiu para Lanzarote, deixando o mundo submetido aos cegos mafiosos, que violavam mulheres e roubavam tudo o que podiam.»
«Eu, K, do "Projecto K" já pertenci a uma PP e tenho as massas arrecadadas na Suiça. Ultimamente tenho sentido vergonha e trouxe algumas poupanças para Lisboa. Os debates estão cada vez mais acesos, o tempo corre, as decisões contradizem-se, o dinheiro desaparece, o governo vai assiduamente passear à Alemanha e beijar a senhora Merkel, a recessão começa a surgir um pouco por toda a parte. A Troika não sabe nada do nosso país, senão através de papéis e de relatórios básicos para medidas absurdas, sem amanhã, iguais para todos os países, a Europa praticamente desfeita do sonho inicial, nacionalismos outra vez, os países do norte doidos de sobranceria, dizendo que a malta aqui não trabalha. O sul é que gerou o mundo onde eles se acoitaram, metidos no frio e na noite, fumegando carvão até ao fim da Revolução Industrial. O fim? Talvez. Agora é só velocidade de cruzeiro e balelas de grandes grupos económicos a sugarem novas energias, novas tecnologias, para não terem concorrência e ajoujarem os clientes/contribuintes. A Síria arde e o mundo é um mundo sem razão. A ditadura das finanças abarca tudo e não abre a porta à economia e à recuperação inovada de uma perspectiva de desenvolvimento sustentado. Qualquer cidadão percebe hoje que o aumento dos prazos para pagamento de dívidas é o aumento do deserto e em Portugal, onde toda a população se acomoda miseravelmente ao litoral e às grandes cidades, com uma qualidade de vida aviltante, há muito deserto interior para preencher, revertendo propósitos e dependências. Passos já não sabe onde esgaravatar o dinheiro, porque só quer dinheiro e não ideias, projectos. Avanços. O Gaspar ensinou-o assim, trabalha sem ver o mundo e sem comparar os momentos da História, dos homens e dos dinheiros. Não basta um computador e uma teoria já falida, desempenhada por funcionários hirtos, meros contabilistas apenas com gente a seus pés.» 
O senhor K ficou pensativo: fez contas e chegou à conclusão que tinha de emigrar para a Suiça ou fazer retornar o dinheiro. Porque o plano da União de Bancos (na Europa), a revisão dos tratados, a intervenção consensual do BCE, emissão cuidada de moeda e ajudas de um fundo Orçamental Europeu, apurar funções e poderes do parlamento e da comissão, ajuizar das capacidades e neutralidades do Conselho Europeu.
Em Portugal, por outro lado, é preciso dizer ao governo, nem que seja a poder de raptos e formação forçada, que despedir quadros em nome de uma reforma da Administração que ainda não está dimensionada, é de loucos, mais aquela coisa eufemística da "requalificação". É urgente fazer ver aos nossos governantes que arranjar mil biliões de euros aqui e além não é reforma nenhuma do Estado. É preciso primeiro saber o que se quer que o Estado seja, perante a História, a Cultura e as realidades da miséria actual: isso é trabalho de  sábios (não de gestores bem pagos), incluindo as Universidades e certas Instituições técnicas. O plano da reforma só precisa de papel, canetas e computadores, além de secretários para configurarem organogramas e textos pré-legislativos. Depois, a forma final discute-se e só  então se avialiam os montantes para os diferentes sectores e projectos a médio e longo prazo, quantias para o trabalho e para os sectores de controlo e gestão de recursos. Ouve-se falar em dinheiro e parece que só com ele logo a reforma resulta: não resulta "coisíssima nenhuma". É preciso planear, inovar os planos, avaliar bem os recursos. Porque é que os nossos políticos ainda não recuperaram o conceito do mar, do oceano, e de tudo o que ele nos pode dar? O Atlântico mata a nossa periferia, por muito que a Alemanha se arranhe: o Atlântico garante-nos a CENTRALIDADE -- de nós, nos vários sentidos para as Américas e África e Europa, placa giratória de distribuição e pontos para onde exportar as nossas originalidade e competência científica e tecnológica.

O amigo do Senhor K suicidou-se hoje, perto da Assembleia da República e deixou ao país uma nota nova de 5 euros e um jantar oferecido por um restaurante solidário.