quinta-feira, setembro 30, 2010

QUE EUROPA É ESTA, ESMAGADORA E SONSA?


A balada dos cães passou na lama escura das cidades europeias. Viajou do grande Ocidente do capital todo-poderoso e varreu tudo até às zonas frias do Leste, mesmo quando Moscovo, há um mês apenas, ardia sob um sol de 38º. Estava tudo a aquecer, em Agosto, e a voracidade dos cães ficcionais já vinha de longe, após a pulverização de um dos maiores bancos do mundo, não por ter sido abandonado pelos milhões de clientes ou dólares mas por ter um só gestor ensandecido, jogando apenas para mergulhar em rios de dinheiro. Está preso, pediu perdão, Obama não lhe respondeu. O presidente americano, atónito mas firme, atravessou um país em risco de receber sobre as cidades, como o efeito em cadeia de todos os jogos, o verdadeiro mega-registo da nossa pobre D.Branca.
A Europa, com pompa e circunstância, carregada de homens de fatos cinzentos e jovens gestores a manipular tudo e todos, deu o sinal de alarme. E foi o que se viu. Ninguém mais sossegou, ministros, ministras, presidentes, ministros das finanças, ministros da economia, banqueiros e bancadas, bolsas e zeladores dos mundos virtuais. Em pouco tempo a Grécia estava a ser intervencionada, sem meios e cravada de dívidas. E nós, portugueses, devedores cegos, presos à banca, ao fisco, às agências de tudo o que possa parecer transacionável, mal podíamos acreditar num destino assim. Galhardamente, ainda nos deixámos levar a férias, do Brasil à Tailândia, e fomos sufocar no Algarve, numa promiscuidade de 80.000 pessoas para nesgas de areia pouco maior que um campo de futebol. Todas as praias da região ficaram assim, atulhadas, embora destituídas dos benefícios, com a paisagem das falésias atravancada por altos muros de hotéis e casario fora do valor PIN.
Sócrates, o Primeiro Ministro português, atravessava a mudança de clima e das falências com uma estranha convicção de que os seus projectos valiam bem não escutar muito os alarmes de tsumani à vista. Ele promovera o plano tecnológico e o país tinha agora importantes polos de produção informática e similar, exportando para 47 países, bem como o retorno de núcleos de investigadores, a par de centros ou criadortes independentes cujo grau de inovação era manifestamente considerável, além das descobertas meio solitárias e invenções à média de duas por dia. As corporações não suportaram as bicadas deste homem meio despachado, mal credenciado de canudos, e desataram a tratá-lo como nunca se vira: o homem era assim escarnecido no próprio país, nesta última República incandescente. Sócrates aguentou, mas não foi capaz de se descolar da sua pele mais ambígua e deve ter acreditado, como muita gente entre nós, que ali estava, afinal, o desvendamento da teoria da conspiração, Freeport, Face Oculta, o Joaquim da Sucata, Ferreira Leite, a direita toda, mesmo no PS, e a esquerda, numa arruaça em plena Assembleia da República como nunca se viu nem filmou.
Recentemente, o eleito líder do PSD, calibrado pela juventude social-democrata, sorriu para Sócrates (que certamente desconfiava de toda a gente) e ofereceu-lhe tapete negocial para a viabilização do PEC, tendo em conta que eram mais fortes as urgências do país do que a pequenez provinciana dos partidos. E o país premiou Passos Coelho (PSD) transferindo para ele as inclinações de voto. Cavaco, o Presidente, jubilou relativamente ao seu próprio futuro. Mas ainda havia as perguntas póstumas de dois procuradores, no encerramento do caso Freeport. E a crise aumentava, até a Espanha soçobrara. Devagar se vai ao longe, terá pensado o Ministro das Finanças, Teixeira dos Santos. A dívida é enorme, senhor ministro, dizia alguém dos bastidores. É preciso cortar, agora sobretudo na despesa. E o senhor quem é?, perguntava o Ministro. Antes de tudo, sou cidadão português, europeu convicto. E veio para falar com quem? Vim, na qualidade de presidente do PSD, encontrar-me com o Primeiro Ministro. Teixeira dos Santos ficou perplexo e disse: Pois entre, ele está aí, a tratar dos grandes centros escolares e das reformas na Saúde e na Educação. Passos Coelho espantou-se: Mas isso já não estava adiantado? Claro que sim, mas é preciso mais, cuidar da nossa formação e do povo em geral.
Quando Passos Coelho, após uma larga reunião, passarinhou para o átrio, viu os jornalistas e tomou bem depressa a posição de Estado. A malta dos jornais e tevês queria saber da conversa, naquele delicioso espírito bisbilhoteiro que faz com que uma notícia sem história, sem nada, se torne vendaval na primeira página, dita nos maiores caracteres possíveis. Por exemplo: «Foi negado ao Primeiro Ministro acesso ao multibanco». No artigo, sabe-se afinal que o Primeiro Ministro passara por uma caixa de multibanco onde um grupo de pessoas se queixava da demora quanto à abertura daquele equipamento.
Coelho disse: O Primeiro Ministro não aceita parar com os impostos e preferir o corte na despesa, como estava combinado. Nunca voltarei aqui sem testemunhas.
E cairam o Céu e a Trindade, centenas de radicais, pró e contra, atravancaram os ecrãs das televisões, barafustando em muitos comprimentos de onda, embora sem ganhos fora das teorias habituais, fazendo somente diagnósticos apócalípticos. Medina Carreira, figura ímpar, embora demasiado parecida com o Mr Magoo, fala de garotos, de incompetentes, de um país tão absurdo e demente que nem sequer se parece com Portugal. Passos Coelho, por seu turno, procurou precarver-se, preparando a eventual catástrofe do orçamento chumbar. Reuniu à sua volta, numa tarde lapidar, 20 grandes personalidades, economistas sobretudo, afectas ao PSD. Queria ouvir (calado) o que eles tinham para dizer sobre o desastre iminente. Ouviu, reguardou-se, e o ruído voltou, contra o parecer da OCDE, entre comparações suspeitas e desmuseradas.
Então o Presidente Cavaco convocou os partidos para lhe dizerem o que pensavam fazer na altura da discussão do orçamento, tendo em vista a baixa gradual do déficit. Nada aconteceu de relevante, embora Passos Coelho voltasse a dizer que não aprovaria um orçamento em que subissem os impostos.
E por fim, ontem, a bomba: Sócrates, Teixeira dos Santos e Silva Pereira apresentaram-se ao país para divulgar as grandes linhas de orientação de um duro plano de austeridade capaz de enquadrar o orçamento para 2011. Em primeira página, o «Diário de Notícias» apregoa: «Sócrates anuncia um ano terrível aos porugueses. E é verdade. Leiam-se os jornais. Só há que esperar pelas bombas do «outro» lado. Um alto dignitártio do PSD, reagindo de forma teatral à conferência de imprensa dada pelo Governo, disse, tremente: Sócrates veio declarar ao país a incompetência do seu governo.
Eu só digo o que vejo e sei. Sócrates anunciou o que toda a gente lhe pedia, e fê-lo acima de todas as minguadas expectativas: para salvaguardar os riscos da execução orçamental, o governo e as personalidades que deram a cara, enunciaram cortes em todo o funcionamento do estado, cortes na despesa social, cortes no Serviço Nacional de Saúde, cortes no PIDDAC, outros cortes que minimizam despesas desde o ensino às autarquias, regiões autónomas, serviços diversos. É feita diminuição da receita fiscal, sobe o IVA, e são afastados outros focos de despesa. Tudo vai dar, como preconizavam vários tutores e curadores, a um total de Quatro mil milhões de euros e mais uns trocos que davam para um golpe de resgate financeiro nas Ilhas Caimão.
Entretanto, os problemas que afectam a Grécia e sobretudo a Irlanda, além dos países a Leste que aderiram à Europa mas não se comprometeram na zona euro, levantam questões muito graves e crispações perigosas: porque os países mais fortes e mais poderosos não estão a partilhar quadros de solidariedade, antes parecem gerar caminhos cuja geografia revela pontos fracos, deslizes, barreiras, impiedosas assimetrias. A Europa devia conhecer melhor a sua história: no século passado aqui se desencadearam duas guerras mundiais. E já apareceram as pimeiras vozes, no quadro da actual situação, alertando para os enviesamentos de uma dinâmica contraproducente, envolvida no modo como o dinheiro é usado, e nos perigos de uma guerra generalizada, agora transversal a outros conflitos latentes, do Irão a todo o Mediterrâneo. A geografia política e económica do mundo está longe de ter sido fixada e estabilizada. As forças críticas emergentes surgem um pouco por muitas latitudes e longitudes.

terça-feira, setembro 07, 2010

TALVEZ A ARTE MINTA PARA DIZER A VERDADE

abertura do blog de António Lobo Antunes

A vida é feita de uma falsa continuidade e a arte procura alcançá-la com propriedade de sentido e valores expressivos de diferente projecção no espaço perceptivo de cada um de nós: porque somos dotados de um sistema visual de grande resolução objectiva, revestindo-se de notória propriedade na absorção do real, apesar de depender de um conjunto de regras redutoras da natureza integral dos objectos percepcionados. A resolução das imagens no cérebro permite-nos nomear conceptualmente as coisas e colar a elas um saber plural, capaz de descodificar uma aparência e oferecer à vigília consciente a forma tridimensional da coisa vista, guardando dela e do próprio espaço envolvente o significado inteiro, grande parte das informações aí achadas. Esta questão tem de ser ajuizada convenientemente nos actos de reresentação do visível, quer pelo desenho ou pela escrita alfabética, entre muitos outros géneros de instaurar discursos artísticos, como nas artes plásticas, no cinema e na fotografia, na poesia ou na literatura em geral. A arte contorna as evidências (porque elas encobrem de certa maneira o real) a fim de tornar visível cada parte registada pelo olhar e pelo fundo enganador da visão. Em certo sentido, já tem sido dito que a arte transforma as aparências (mentindo) para as dar a ver com mais verdade. Estas notas ocorrem-me a propósito de uma estranha controvérsia gerada a partir da reacção dos militares, sobretudo declarada pelo Presidente da Associação dos Ex-Combatentes. O alarido tomou conta de muita gente, uns que defendiam o escritor e outros que o julgavam pela negativa, considerando parte de uma peça inserida no 2º livro de crónicas de António Lobo Antunes. E há quem, nessa ira, se esqueça do atroador «Cu de Judas», uma das primeiras obras daquele escritor sobre a guerra de Angola, testemunho magoado e nada louvando, peça que muitos de nós leram com um nó na garganta. O problema, desta vez, é que a frase mais destacada do protesto, parece mesmo, antes de qualquer literatura declarada, um outro testemunho, laminar, decisivo, destituído de ficção ou simbologia -- a verdade apenas, por mais absurda que a pequena história se apresente. Ao contrário do que costuma acontecer nas crónicas de Lobo Antunes, cujos textos surgem quase sempre orvalhados de um segundo sentido, entre símbolos e metáforas finais, a crónica apontada contém um período tão limpo como a verdade da própria verdade. Escreveu, a certa altura, Lobo Antunes: «Eu estava numa zona onde havia muitos combates e para poder mudar para uma região mais calma tinha de acumular pontos. Uma arma apreendida ao inimigo valia pontos, um prisioneiro ou um inimigo morto outros tantos pontos. E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava e, como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros».

Trata-se, com efeito, de uma implícita afirmação de grande gravidade. Também estive em Angola, mais ou menos na mesma altura, em Zala e Nambuangongo, onde perdemos vidas, mas a guerra ainda não adquirira o grau de sofisticação para provocar tais «ajustes de contas». Vinte anos depois de ter regressado de África, escrevi um livro a que chamei, talvez impropriamente, «Angola 61, crónica de guerra». O livro só será crónica porque todos os factos e pessoas nele abordados correspondem à pequena e grande história do batalhão, embora transmitidos por uma forma literária a lembrar a expressão ficcional, incluindo um forte apelo ao cinema. Mas há nele denúncias aterradoras, como tenho lido noutros textos e, em particular, na obra de Lobo Antunes, a que toca militares e a que não toca. Mentiras dizendo verdades cortantes, da guerra à Inquisição e a muitos outros estados de várias idades históricas do nosso país. Um colega amigo, a propósito do assunto aqui abordado, chamou-me a atenção para o lado gélido, como que imparcial ou neutro, da redacção daquele parágrafo de Lobo Antunes: o desinteresse pela forma literária, assaz mal falada, e o batimento seco e sintético dos factos e dos métodos com que eram contabilizados. Para este meu amigo, trata-se de um forte indício de que o escritor testemunhou aquele procedimento, quase impensável, mesmo para quem esteve na guerra colonial, ou através da filmografia sobre o Vietnam. Mas nada disto é assim tão simples e o problema (visto que tantos outros foram deslidos) parece residir no facto aparentemente institucional em si, difícil de esconder dos não alinhados ou dos oficiais da companhia. Até porque, num outro ponto da crónica, Lobo Antunes declara que pertencia a um batalhão de 600 homens, dos quais morreram 150, percentagem altamente desajustada de todas as estatísticas conhecidas, entre as mais isentas. Aliás, o escritor acedeu a desfazer esse eqívoco em carta para o Presidente dos Ex-Combatentes, carta onde não explica a questão dos espólios e dos pontos; porque sempre disse que a escrita dele só pode ser lida como expressão simbólica, mesmo nos eventuais eventos que decorram de factos presenciados. Isto é verdade que nos acontece; e Lobo Antunes, apesar de tudo, não estava ali a escrever um relatório para enviar a um qualquer chefe do Estado-Maior. Feitas estas distinções e abertas estas disponibilidades de circulação pelo sentido da obra de Lobo Antunes, aquela e outras do mesmo índice de acutilância, atrevo-me, sem querer assumir-me como advogado de defesa de um escritor que muito admiro, a adiantar mais duas ou três questões de valor substantivo: a) Em Angola, anos 60, uma companhia era constituída por 3 grupos de combate, cerca de 160 homens, entre soldados, cabos, sargentos, alferes, um tenente e um capitão, comandante da unidade. O tenente em geral era o médico, e os alferes milicianos concretizavam a cadeira superior hierárquica, com vértice no capitão. Os sargentos comandavam secções de 9 homens, integrando o grupo de combate. O problema posto pelo texto de António Lobo Antunes, enfrenta os seguintes (possíveis) problemas: ou o sistema de pontuação por acções desenvolvidas em combate e similares situações era circunscrito a um grupo de pessoas, secreto, e nesse caso a transferência do que mais pontuasse seria negociada por subterfúgios, ou esta roleta implicava toda a companhia, facilitando a transferência do vencedor para uma «unidade pacífica», o que coloca dentro da sigilosidade da operação toda a gente, desde o capitão ao último dos soldados. Apesar de tudo o que me foi dado ver, negociatas, abastecimentos directos e sem a menor transparência, escolhas de materiais passando por percentagens, desgaste não explicado nos géneros entregues às companhias, promiscuidade entre militares e civis em preparações especiais de aquartelamentos, pressão disciplinar sobre aqueles que não acatavam trocas obscuras entre chefias consoante interesses pessoais e vantagens financeiras, violência aplicada a dois prisioneiros, a verdade é que nunca estive perante situações tão abjectas quanto as referidas por Lobo Antunes. Podemos duvidar delas na base de um raciocínio técnico como aquele que sintetizei atrás, mas não podemos condenar o seu relato, mesmo que em relação directa com a realidade passada. Porque o contexto, o género da crónica, absorvem o significado dos conteúdos para o domínio do símbólico, da analogia com outras possíveis crueldades, em metáfora capaz de desmontar o real e a sua verdade numa outra verdade. Em termos litrários, Lobo Antunes pode ter-se socorrido de um jogo promocional cruel para dizer outras verdades, assinalando a brutalidade de muitos meios bélicos, aceites como norma. O próprio treino militar, antes de qualquer prontidão, chega a ser cínico e bárbaro, e bem me lembro disso em Mafra. Já não falo das mortes de jovens em instrução militar ligada aos comandos nem da criação de sistemas de dependência psicológica.

Resta talvez anotar que a forma dos artistas se assumirem como testemunhas empenhadas perante desvios sociais, políticos, religiosos, militares, seja qual for o grau de possível sanção (ilegal) que as corporações accionem contra eles, tem sido entre nós muito pobre. Há mais casos na literatura do que nas artes plásticas, e há uma infinidade de documentos expressivos em cinema, com graus aterradores de verosimilhança perante casos históricos amplamente conhecidos. De resto, quem são os portugueses ainda vivos, participantes sem escolha numa guerra dita colonial com 14 anos de extensão, que não tenham percebido como esses milhões de factos e resíduos traumáticos foram omitidos até ao maior dos desrespeitos por um povo assim sacrificado, com muitos dos seus mortos enterrados no teatro de operações e que só agora, lentamente e sobretudo pelas famílias, começam a ser resgatados, em recato, sem pompa nem circunstância. Todos as pequenas intrigas futebolísticas com que as televisões nos intoxicam sem medida, entre outras coisas idênticas, deveriam desde há muito ter sido substituidas em parte por debates, revelações, a história da guerra travada teimosamente por Portugal em Angola, Moçambique e Guiné. Muitos ainda esperam por isso, mas só lhes cabe ouvir as migalhas de programas com filmes de arquivo e testemunhos de patentes superiores. A guerra não foi nada disso. E Lobo Antunes, que era tenente miliciano no teatro de operações e sabe que não é preciso mentir num universo com tantos exemplos reais para abordar, tem de facto razão quando lidera frases assim: eu poderia escrever que na minha companhia, formada por 150 homens, morreram 150; e no batalhão, de 600 homens, morreram também todos eles, isto numa forma de exprimir que ninguém se salva após tão terrível experiência. O escritor, na correspondência travada com o Etado-Maior, diz que quanto mais simbólica é a linguagem mais verdadeira se torna. E asseverou que o tema acarreta «reacções emocionais fortes», até porque «a guerra colonial foi profundamente injusta. Pode esquecer-se a guerra mas ela não nos esquece. Deu cabo da nossa juventude e há-de dar cabo da nossa velhice. A negação de nada serve e a guerra continua a ser uma experiência muito dolorosa para mim. Quando venho de um almoço com os meus camaradas, essa noite é muito difícil. Todos nós morremos um bocadinho na guerra».

foram consultados materiais publicados no blog de ALA e por José Roldão

segunda-feira, setembro 06, 2010

POR MAPUTO: REDESCOLONIZAÇÃO EM VIOLÊNCIA

registos da reportagens televisivas
Já ouvi da boca de vários personalidades conhecidas palavras resmungadas que a descolonização, pelo menos no que se refere a Portugal, não fora precipitada, fora, pelo contrário, indevida, no tempo e nos métodos. Tem-se falado muito, também, num dos autores mais favoráveis aos processos de descolonização, Franz Fanon, que alertou, apesar disso, para os enormes riscos que se corria ao lançar povos inteiros, de súbito e ainda largamente impreparados, para a contemporaneidade. O desajustamento seria, em alguns casos, de efeitos devastadores, entre o desenho das fronteiras e a divisão das etnias ou nações. E foi afinal isso que se fez, apesar de alguns territórios privilegiados por prolongamentos coloniais enviesados, como no caso da antiga Rodésia, hoje um país vandalizado, sem ordem nem produção ordenada, esmagado por uma das mais patéticas ditaduras do Continente. Angola, por sua vez, entregue, por acordo institucional, aos três «movimentos de libertação, em breve se lançou numa terrível guerra civil, muitas vezes mais grave do que a guerra colonial, após a qual cidades haviam desaparecido, populações tinha percorrido fracturas enormes de deslocalização e outras, enquanto Luanda inchava de gente, de perturbação e um vasto tipo de carências, enquanto um núcleo em volta do Presidente e de outras entidades militares ou políticas, enriquecidas desproporcionalmente já nessa época, se entricheiravam na maior grandeza, entre o luxo, os bens e a força sobre todos os que caminhavam esforçadamente, estropiados, num largo horizonte de perigos ocultos e miséria.

Há sempre semelhanças entre estes desastres: Moçambique dividiu-se, logo após o cessar fogo das tropas portuguesas e o seu abandono do território, em duas forças opostas, em litígio bélico de intensidade muito menor do que o de Angola, mas, apesar de tudo, largamente danoso para o país. A FRELIM, desde o início da guerra colonial, apostada nos ditames libertadores, teve à sua ilharga, ainda durante esse tempo, o movimento homónimo RENAM, débil, menos municiado e ideologicamente impreciso. Mas, quando vieram as eleições de tipo democrático, a FRELIM foi vencedora, tendo na Assembleia Nacional de confrontar-se comos deputados que a RENAM conseguiu eleger. Esse perfil das forças que iniciaram os caminhos da independência não era preocupante e a sucessão dos vários presidentes tem decorrido com consensos quase nada pertrubadores. O problema, dada a escassez de meios imediatos de riqueza, coisa já existente em Angola, passou a residir nas políticas de de contenção, realidade agravada pela explosão populacional em Maputo, em termos por vezes capazes de provocar repugnância, desde o lixo, às sujidades dos imóveis e dejectos em avenidas principais. Tudo isto foi sendo combatido, como quem rema contra a corrente, pois o tipo de cultura das populações do interior não era ajustável às regras da vida citadina nesta escala. A situação, há pouco tempo, começou a degradar-se. Até que, em revolta contra o aumento dos bens básicos de consumo, a população, recrutada por SM S, entrou em estado de revolta, bloqueou a cidade, o próprio achefe de aeroporto, acabando por cometer alguns desacatos sobre lojas e pessoas. O governo reagiu em termos de espera, socorrendo-se da PSP para situar algum recato. algumas dispersões. O Chefe de Estado falou em nome do apaziguamento, sublinhado o dinheiro que se perdia em cada dia de paralisação da cidade, o que ocorreu, de forma completa, durante pelo menos dois dias. Apesar dos destroços, mortos e feridos, este incidente esbateu-se depressa: seja como for, não deixa de ser um sério aviso para aqueles que vivem acima de maior parte das pessoas, em assimetrias monstruosas, fio em certa medida anunciador dos erros cometidos nos anos 70, por Portugal e pelas Colónias. Esvaziadas dos quadros técnicos e administrativas competentes, o esforço de equilíbrio e de ordem social gerou ou agravou diversos tipos de «epidemias» que este género de subdesenvolvimento costuma tornar crónico. É o salto na contemporaneidade, seguido de catástrofes indizíveis.


Tudo isto poderia ser diferente, pausado, seguro, equilibrado, partilhado, num Continente que, em vez de entrar em agonia, deveria ser tomado pela humanidade como fundo de garantias em diferentes plataformas de produção e comservação? Por mim, penso que sim, não por achar que a descolonização estava fora do projecto nacional. De resto, a ditadura teve todos os sinais para salvar a face e os povos. Um «génio» chamado Salazar castrou toda um país com as suas sobrevivências e referências através das colónias. O que penso é que a descolonização não devria ter sido feita sob uma espécie de efeito de derrota, sem nada se preservar, indústrias, fecundação da terra, organização social, disciplina. Os portugueses e moçambicanos brancos que tiveram de abandonar de súbito aquele país, como aconteceu ao mesmo tempo em Angola, foram apenas martirizados por slogans e dirigentes cobardes que não souberam negociar e agilizar as tropas numa ajuda pós-militar. Alguém me poderá garantir, com razões técnicas e humanas de valor indesmentível, porque carga de água um exército que combate em três ferentes sem destruir os territórios e as populações tem de se retirar à pressa, com a tralha mal atada à cintura e uma cerveja para refrescar o «regresso» a Metrópole? Tratou-se de um erro grotesco, o que aliás veio reflectir-se em Portugal, num PREC maníaco-depressivo, falsamente chamado de revolucionário, proletarizando o campesinato e procurando mesmo a tomada do poder por um golpezinho patético, o qual o país conseguiu travar em pião -- e sem sanear verdadeiramente os que haviam ensandecido pelos quartéis e pelas quentes veredas do Alentejo. Assim ficaram as coisas, pela teimosia inerente a Salazar, pela incapacidade assombrosa de Caetano, pelo varrimento de toda a ética militar dos chefes que tinham «trabalhado» nas ditas colónias durante 14 anos, conhecedores dos problemas e do apoio que podiam dar no próprio espaço da independência e durante os primeiros tempos da mesma.
Franz Fanon tinha razão. Mas, como muita gente naquele tempo, achou mais rico o espectáculo das bandeiras desfraldadas pelas anharas fora e guardou no bolso as consequências que ele mesmo anunciara. Os militares portugueses, que não queriam meter-se na política, apoiaram um dos maiores desastres políticos sofrido pelo país. Hoje queixam-se de relatos que espreitam a história, como no recente caso de Lobo Antunes, mas esquecem sempre de olhar-se ao espelho e de relembrar uma guerra sobre a qual também se teceram elogios e aceitações de brandura. Não direi tanto, sobretudo nos costumes, até porque uma década dá para ensaiar uma civilização e os seus poderes ou armadilhas encobertas.

um pouco de sangue, nada mais, os motins acabam depressa, mas o futuro ainda não chegou.