A balada dos cães passou na lama escura das cidades europeias. Viajou do grande Ocidente do capital todo-poderoso e varreu tudo até às zonas frias do Leste, mesmo quando Moscovo, há um mês apenas, ardia sob um sol de 38º. Estava tudo a aquecer, em Agosto, e a voracidade dos cães ficcionais já vinha de longe, após a pulverização de um dos maiores bancos do mundo, não por ter sido abandonado pelos milhões de clientes ou dólares mas por ter um só gestor ensandecido, jogando apenas para mergulhar em rios de dinheiro. Está preso, pediu perdão, Obama não lhe respondeu. O presidente americano, atónito mas firme, atravessou um país em risco de receber sobre as cidades, como o efeito em cadeia de todos os jogos, o verdadeiro mega-registo da nossa pobre D.Branca.
A Europa, com pompa e circunstância, carregada de homens de fatos cinzentos e jovens gestores a manipular tudo e todos, deu o sinal de alarme. E foi o que se viu. Ninguém mais sossegou, ministros, ministras, presidentes, ministros das finanças, ministros da economia, banqueiros e bancadas, bolsas e zeladores dos mundos virtuais. Em pouco tempo a Grécia estava a ser intervencionada, sem meios e cravada de dívidas. E nós, portugueses, devedores cegos, presos à banca, ao fisco, às agências de tudo o que possa parecer transacionável, mal podíamos acreditar num destino assim. Galhardamente, ainda nos deixámos levar a férias, do Brasil à Tailândia, e fomos sufocar no Algarve, numa promiscuidade de 80.000 pessoas para nesgas de areia pouco maior que um campo de futebol. Todas as praias da região ficaram assim, atulhadas, embora destituídas dos benefícios, com a paisagem das falésias atravancada por altos muros de hotéis e casario fora do valor PIN.
Sócrates, o Primeiro Ministro português, atravessava a mudança de clima e das falências com uma estranha convicção de que os seus projectos valiam bem não escutar muito os alarmes de tsumani à vista. Ele promovera o plano tecnológico e o país tinha agora importantes polos de produção informática e similar, exportando para 47 países, bem como o retorno de núcleos de investigadores, a par de centros ou criadortes independentes cujo grau de inovação era manifestamente considerável, além das descobertas meio solitárias e invenções à média de duas por dia. As corporações não suportaram as bicadas deste homem meio despachado, mal credenciado de canudos, e desataram a tratá-lo como nunca se vira: o homem era assim escarnecido no próprio país, nesta última República incandescente. Sócrates aguentou, mas não foi capaz de se descolar da sua pele mais ambígua e deve ter acreditado, como muita gente entre nós, que ali estava, afinal, o desvendamento da teoria da conspiração, Freeport, Face Oculta, o Joaquim da Sucata, Ferreira Leite, a direita toda, mesmo no PS, e a esquerda, numa arruaça em plena Assembleia da República como nunca se viu nem filmou.
Recentemente, o eleito líder do PSD, calibrado pela juventude social-democrata, sorriu para Sócrates (que certamente desconfiava de toda a gente) e ofereceu-lhe tapete negocial para a viabilização do PEC, tendo em conta que eram mais fortes as urgências do país do que a pequenez provinciana dos partidos. E o país premiou Passos Coelho (PSD) transferindo para ele as inclinações de voto. Cavaco, o Presidente, jubilou relativamente ao seu próprio futuro. Mas ainda havia as perguntas póstumas de dois procuradores, no encerramento do caso Freeport. E a crise aumentava, até a Espanha soçobrara. Devagar se vai ao longe, terá pensado o Ministro das Finanças, Teixeira dos Santos. A dívida é enorme, senhor ministro, dizia alguém dos bastidores. É preciso cortar, agora sobretudo na despesa. E o senhor quem é?, perguntava o Ministro. Antes de tudo, sou cidadão português, europeu convicto. E veio para falar com quem? Vim, na qualidade de presidente do PSD, encontrar-me com o Primeiro Ministro. Teixeira dos Santos ficou perplexo e disse: Pois entre, ele está aí, a tratar dos grandes centros escolares e das reformas na Saúde e na Educação. Passos Coelho espantou-se: Mas isso já não estava adiantado? Claro que sim, mas é preciso mais, cuidar da nossa formação e do povo em geral.
Quando Passos Coelho, após uma larga reunião, passarinhou para o átrio, viu os jornalistas e tomou bem depressa a posição de Estado. A malta dos jornais e tevês queria saber da conversa, naquele delicioso espírito bisbilhoteiro que faz com que uma notícia sem história, sem nada, se torne vendaval na primeira página, dita nos maiores caracteres possíveis. Por exemplo: «Foi negado ao Primeiro Ministro acesso ao multibanco». No artigo, sabe-se afinal que o Primeiro Ministro passara por uma caixa de multibanco onde um grupo de pessoas se queixava da demora quanto à abertura daquele equipamento.
Coelho disse: O Primeiro Ministro não aceita parar com os impostos e preferir o corte na despesa, como estava combinado. Nunca voltarei aqui sem testemunhas.
E cairam o Céu e a Trindade, centenas de radicais, pró e contra, atravancaram os ecrãs das televisões, barafustando em muitos comprimentos de onda, embora sem ganhos fora das teorias habituais, fazendo somente diagnósticos apócalípticos. Medina Carreira, figura ímpar, embora demasiado parecida com o Mr Magoo, fala de garotos, de incompetentes, de um país tão absurdo e demente que nem sequer se parece com Portugal. Passos Coelho, por seu turno, procurou precarver-se, preparando a eventual catástrofe do orçamento chumbar. Reuniu à sua volta, numa tarde lapidar, 20 grandes personalidades, economistas sobretudo, afectas ao PSD. Queria ouvir (calado) o que eles tinham para dizer sobre o desastre iminente. Ouviu, reguardou-se, e o ruído voltou, contra o parecer da OCDE, entre comparações suspeitas e desmuseradas.
Então o Presidente Cavaco convocou os partidos para lhe dizerem o que pensavam fazer na altura da discussão do orçamento, tendo em vista a baixa gradual do déficit. Nada aconteceu de relevante, embora Passos Coelho voltasse a dizer que não aprovaria um orçamento em que subissem os impostos.
E por fim, ontem, a bomba: Sócrates, Teixeira dos Santos e Silva Pereira apresentaram-se ao país para divulgar as grandes linhas de orientação de um duro plano de austeridade capaz de enquadrar o orçamento para 2011. Em primeira página, o «Diário de Notícias» apregoa: «Sócrates anuncia um ano terrível aos porugueses. E é verdade. Leiam-se os jornais. Só há que esperar pelas bombas do «outro» lado. Um alto dignitártio do PSD, reagindo de forma teatral à conferência de imprensa dada pelo Governo, disse, tremente: Sócrates veio declarar ao país a incompetência do seu governo.
Eu só digo o que vejo e sei. Sócrates anunciou o que toda a gente lhe pedia, e fê-lo acima de todas as minguadas expectativas: para salvaguardar os riscos da execução orçamental, o governo e as personalidades que deram a cara, enunciaram cortes em todo o funcionamento do estado, cortes na despesa social, cortes no Serviço Nacional de Saúde, cortes no PIDDAC, outros cortes que minimizam despesas desde o ensino às autarquias, regiões autónomas, serviços diversos. É feita diminuição da receita fiscal, sobe o IVA, e são afastados outros focos de despesa. Tudo vai dar, como preconizavam vários tutores e curadores, a um total de Quatro mil milhões de euros e mais uns trocos que davam para um golpe de resgate financeiro nas Ilhas Caimão.
Entretanto, os problemas que afectam a Grécia e sobretudo a Irlanda, além dos países a Leste que aderiram à Europa mas não se comprometeram na zona euro, levantam questões muito graves e crispações perigosas: porque os países mais fortes e mais poderosos não estão a partilhar quadros de solidariedade, antes parecem gerar caminhos cuja geografia revela pontos fracos, deslizes, barreiras, impiedosas assimetrias. A Europa devia conhecer melhor a sua história: no século passado aqui se desencadearam duas guerras mundiais. E já apareceram as pimeiras vozes, no quadro da actual situação, alertando para os enviesamentos de uma dinâmica contraproducente, envolvida no modo como o dinheiro é usado, e nos perigos de uma guerra generalizada, agora transversal a outros conflitos latentes, do Irão a todo o Mediterrâneo. A geografia política e económica do mundo está longe de ter sido fixada e estabilizada. As forças críticas emergentes surgem um pouco por muitas latitudes e longitudes.
1 comentário:
Esta Europa é cada vez mais semelhante ao quotidiano opaco e enfadonho (talvez sem saída) do "Elias Santana".
Numa altura em celebramos o centenário da República, efeméride que marca a sangue o fim de uma monarquia subjugada a interesses exógenos, Portugal deveria repensar, seriamente, em "actualizar" a sua política decadente, impertinente e inconsequente.
Os Partidos devem deixar de lado certas ideologias, falsas ou desajustadas, e unirem esforços no sentido de serem capazes de devolver ao país o prestígio perdido e coloca-lo de novo na senda do progresso.
Um país carregado de matéria-prima tem de exportar mais e importar menos.
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