domingo, novembro 28, 2010

PERFORMANCE DOS MASSACRES CIRCUNSTANCIAIS

dos jornais
Cimeira da NATO, um dia ao acaso da rua, gente nova agregou-se num ponto de Lisboa, ao Chiado, e fingiu morrer num massacre que algumas vozes, falando para o mundo, atribuíram a uma acção militar daquele organismo do tempo da Guerra Fria. Esta gente tem, pelo menos, memória de filmes e notícias visuais de situações destas, porque a representação performativa foi momentaneamente convincente. Os protagonistas, por certo, nasceram quase todos muito tarde para saber do que falavam, exprimimdo à porta de casa que não aconteceram ou nunca foram assim. Fora da história, alheios aos verdadeiros massacres, estes jovens podem tornar a catarse apenas em mimetismo lúdico, efectivamente descomprometido.
Nada me liga especialmente ao estudo sobre a NATO, mas fui do tempo em que esse organismo se constituíu e acompanhei sempre os factos e reuniões que se lhe referiram. A organização para defesa do Atlântico Norte fez parte, até há pouco, do medo mútuo do Bloco de Leste e dos Estados Unidos da América: as suas restrições envolviam fronteiras geoestratégicas cujo sentido se perdeu ao cair o Muro de Berlim, sobretudo à medida que a Rússia enveredava por um modelo de regime aceitante dos mercados e de muitas das heresias capitalistas. Conservar a mesma designação, porventura com a mesma estrutura militar, em princípios e equipamento, parece mais um acto de sobrevivência de certa força pronta para se gerir em expansão do que uma cordial adaptação do mundo entre a América e a Rússia, geografia política cujo verdadeiro fim lembra forças emergentes mais a leste, poderosas, competitivas, talvez um dia invasoras - China e Índia, entre outras. Mas a Nato quase nunca exerceu grande prestação guerreira, chegando a ajudar trabalho de protecção a operações humanitárias. Combate agora, apoiada, esse sector de terríveis noções sobre o ser e a vida, os talibãs, no Afeganistâo, cujo desenvolvimento atroador terá efeitos sobretudo nefastos em toda a região.
Para os que fingem morrer no chão de uma cidade pacífica, sob o peso do avanço da Nato, o que é legítimo em termos de liberdade de expressão, seria talvez oportuno lembrar os que têm morrido em nome da paz, combatentes ligados à saúde, apoio em alimentação, jornalistas que escrevem e fotografam para se fazer a História concreta, sem véus de fantasia nem bandeiras longínquas.

UM ACIDENTE DE CAMPANHA, ROSTO DE PAPEL


Achei há dias, num jornal sem data, este rosto transtornado pela queda de um olho, rosto rasgado num qualquer acidente do passado ou do futuro, grandeza poetica talvez ameaçada, o olho pendido a pressentir o mundo ao contrário. Este género de imagens ainda funcionam para nós como sinais de perigos ainda sem nome, se esperamos o incerto amanhã que está por surgir; mas podem também apontar para a história, a montante, fugas, exílios, um golpe falhado de catana. Se o poeta, político transitório, ainda se tem como poeta, pensemos que ele volte a cantar arrebatamentos de Portugal.

quarta-feira, novembro 24, 2010

PARA O IMAGINÁRIO DE JOANA VASCONCELOS

Muito espantados andam os portugueses medianamente cultos com uma jovem artista plástica portuguesa, Joana Vasconcelos. Porque se trata, na verdade, de alguém que, em poucos anos, explorando um imaginário rico e bizarro, usando adereços industriais, tampões, pentes e outros objectos/materiais desse tipo, constrói (com uma autêntica indústria caseira) faustosas peças que competem com o sonho jurácico, lustres de tampões, piscinas com a forma das nossas fronteiras, sapatos de salto alto e revestidos por tampas de panela, qualquer coisa do tamanho de um automóvel.
Acontece que descobrimos o uso dos mais diversos preservativos, no tamanho e na cor, enrolados ou desenrolados, unidos uns aos outros, ou sobrepostas ao jeito de certas flores, tudo à chinesa e a favor da moda. Os que viram este espectáculo disseram mesmo que a moda habitualmente proposta nas passerelles, em cima de esqueletos execráveis, fica muito longe desta pujança e deste convite ao prazer (do visual aos outros). Joana Vasconcellos não foi ainda ultrapassada: estes objectos, além de nos preservarem das doenças sexualmente transmissíveis, como salienta o Papa, acedendo ao seu uso, podem manipular-se consoante a vontade expressiva que nos acometa, fazendo deles balões e balõezinhos, atados ou não uns aos outros, flutuando na piscina pedagógica (Portugal metendo água), ou prontos para exportação e com instruções. Sabe-se que as melhores marcas, além do ar, aguentam cinco litros de água. Mil preservativos mais ou menos cheios de líquidos mais ou menos coloridos, atados como um grande astro e dinamitados para uma hora zero em pleno Tejo, eis o lado efémero, performativo, que poderá (assim ou de outra maneira) ser apurado por Joana. Até porque se trata de coisa bem didáctica. Um amigo nosso lembrou que os mesmos preservativos, talvez 2 ou 3 mil, mais ou menos cheios de um gaz leve, formariam no espaço o efeito de grande e espantoso OVNI, o maior jamais visto. Spielberg podia ser convidado para o evento e convidado a transfigurar a máquina de «Encontros do Terceiro Grau».

alguém pensou que esta rapariguinha seria capaz
de um tão elegante e imaculado aparecimento?

Um dos mais susgetivos bazar da moda,
da arte pós-pop, erótico e floral

quarta-feira, novembro 10, 2010

DOIS ESCRITORES LUSÓFONOS BEM DIFERENTES

Nia Couto, Moçambique, as palavras transitivas

A propósito de alguns livros, de relações e confrontos entre elites de Angola e Moçambique, abordo hoje, sumariamente, duas figuras que desde há anos (Mia Couto há mais) são convocadas por universidades e outras instituições portuguesas. O escritor moçambicano, que nasceu a 5 de Julho de 1955, na Beira, pertence a um género literário ligado ao realismo mágico e à ficção histórica. Ostenta a nacionalidade moçambicana mas é natural que tenha também a portuguesa: é filho de pais portugueses e visita Portugal, onde campeia em diversas actividades culturais, com sensível assiduidade. A sua veia poética, aos catorze anos de idade, já transitara para o jornal Notícias de Beira. Mudou-se em 1971 para Lourenço Marques, iniciando estudos em medicina, embora tenha abandnado essa área e haja enveredado pelo jornalismo. Trabalhou no jornal Tribuna. Agiu pela independência da Província, sobretudo através da Agência de Informações de Moçambique, formando ligações de correpondentes entre distritos durante o tempo da guerra de libertação. Foi director da revista Tempo até 1981, passou para o jornal Notícias e aís se manteve até 1985, altura em que já publicara o seu primeiro livro de poemas, Raiz de Orvalho. Contrariando a propaganda marxista militante, demitiu-se de director do jornal a dim de continuar os estudos universitários na área de biologia.

O seu desenvolvimente como escritor tem neste percurso bases de forte interesse. É considerado um dos mais importantes escritores de Moçambique e bebe, em Portugal, apoios de Fundações e Universidades para melhor girar além fronteiras. Tem sido, assim, muito traduzido; e em muitas das suas obras tenta recriar a língua portuguesa com uma influência moçambicana, utilizando o léxico de várias regiões do país e produzindo um novo modelo de narrativa africana. As palavras inventadas nem sempre se baseiam em lexicos locais, mas o seu «abuso» de tal efeito contrinuiu em muito para o êxito alcançado e para a protecção obtida nas editoras. A sua obra já é vasta, sobretudo novelas e contos, mas falta-lhe chegar a um trabalho de maior fôlego, por via das qualidades da nossa língua e exprimindo a grandeza (a paisagem humana e do trabalho) na dimensão alargada do tempo lento e precioso vivido entre afectos e também numa perspectiva antropológica. 1
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1 Aspectos colhidos na Wikipédia e integrantes de uma análise crítica sobre o autor.

UM PENSADOR ANGOLANO

Ruy Duarte de Carvalho

Ruy Duarte de Carvalho, escritor emérito, cineasta, escultor e antropólogo angolano, foi encontrado morte na sua residêmcia na Namíbia, como tivemos oportunidade de salientar aqui, em Agosto passado. Tinha apenas 69 anos. Nascera em 1941, Santarém, Portugal e passou a infância em Angola e na Namíbia, onde viria morar anos depois. Retornou a Santarém aos dezanove anos para ingressar no curso técnico em agropecuária. O seu primeiro livro surgiu em 72, intitulado, Chão de Oferta. São poesias marcadas por temáticas portuguesas e africanas.
Optou pela nacionalidade angolana em 1983, depois de muitos anos de trabalho no sector do desenvolvimento agrícola. Morou também algum tempo em Moçambique e, depois de terminar o doutoramento em antropologia na École des Hautes Études de Sciences Sociales, em Paris, assumiu a docência na universidade de Luanda.
Ruy foi considerado pela crítica como um importante nome da literatura portuguesa, assim representando uma síntese do mundo lusófon, não apenas pela sua bografia, mas também pela dedicação às temáticas desse idioma. Muitos pontos da cultura erudita referiram a importância do autor.O esforço de unir antropologia e literatura levou Roy Duarte de Carvalho a um verdadeiro trabalho de se livrar do academismo que porcura opor as duas áreas. Os seus trabalhos antropológicos de natureza mais reflexiva, a par dos seus textos de ficção, encontram-se num mesmo ponto de vista, perspectiva de um observador assumidamente não neutro. O seu olhar para a literatura e para a antropologia exige do autor uma reflexão sobre si próprio e sobre esse mesmo olhar -- o que legitima uma observação conscientemente parcial e não por isso menor.
Nesta perspectiva, a literatura que pratica, cerca de 15 livros, pouco ou nada se pode comparar com a do moçambicano Mia Couto. O seu admirável estudo sobre os Kuvale, povo que vive no sudoeste de Angola, foi publicado em 1999 sob o título Vou lá visitar pastores. Entretanto a produção cinematográfica deste cientista e poeta (documentário e ficção) revela a intensidade do olhar que dirigia à pessoa humana, aos problemas sociais. São bons exemplos Nelisita: narrativas nyaneka (1982) e Moía: o recado das ilhas (1989). Documentários de longa metragem que se contrapõem às narrativas antropológicas e cinematográficas, tudo fazendo parte de um universo de observação empírica sem perda da autocrítica, atitude ética que o autor relevou da sua concepção do mundo.
A sua escrita trespassa os conteúdos propriamente discorridos por ter em comum o facto de reflectir sobre si, autor e autor social, não apenas sob a condição de escritor, também na perspectiva de um modo particular de ser e observar. Aliás, em Ruy Duarte, como noutros escritores de orientações semelhantes, há um fôlego (tempo, espaço, substância), a literatura não se basta enquato forma de observar o mundo, reflecte-se a si mesma e aos actos da formação da escrita.

quarta-feira, novembro 03, 2010

DIA DE NASCER E DE MORRER: CARLOS AMADO

escultor Carlos Amado

A morte do escultor e professor Carlos Amado é noticiada no «Diário de Notícias» sob o título «Um escultor que conciliou modernidade com tradição», juizo talvez um pouco subjectivo mas susceptível de ser avaliado sobretudo nas concepções do artista sobre a vida, sobre a própria natureza do ser humano, da cultura e do ensino seperior das artes. Carlos Amado, longamente companheiro e admirador do professor Lagoa Henriques, a quem foi dedicado até ao fim, homenageando-o há pouco tempo com uma espécie de resgate da escultura poética do Mestre, desenho, obra pública, comunicação audio-visual, as coisas e os lugares de um homem de facto invulgar na sua saudação à vida. Com alguma modéstia, Amado seguiu de perto o emigo e trabalhou muito em ajudas logísticas e outras.
Carlos Amado foi discípulo do escultor Salvador Barata-Feyo, de Lagoa Henriques e de Joaquim Correia. Não tem uma obra escultórica muito extensa, mas não foi displicente nos estudos que desenvolveu, sobretudo enquanto professor na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Faleceu na segunda-feira, na Ericeira, onde comemorava os seus 74 anos. O Director da Faculdade de Belas Artes, Luis Jorge Gonçalves, teceu ao colega elogios em torno do seu empenho e da forma como marcou, em certos pontos, aquela Escola, cuja história, desde o 25 de Abril de 1974, muitos de nós ajudaram a reformar, actualizar e integrar-se na Universidade, como Faculdade de Belas Artes, numa deriva de sacrifícios, perdas e debate com os sucessivos governos durante cerca 13 anos consecutivos.
Carmos Amado nasceu em Carcavelos a 1 de Novembro de 1936. Foi professor de desenho, escultura e museologia na ex-Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e na actual Faculdade. Ainda activo, tinha agendada uma palestra na Academia Nacional de Belas Artes sobre o restauro de obras de pintura na I República, por Luciano Freire, e de escultura, monumentos e palácios nacionais.

segunda-feira, novembro 01, 2010

O BELO ENGANO EM MISTÉRIOS DE LISBOA

um filme sobre um romance não é a narrativa
integral dessa obra literária

Para ver cinema hoje, em Portugal e em português, é preciso fazer um seguro contra todos os percalços, surdez, publicidade, claustrofobia, além de ganhar um elevado sentido de precaução acerca do que os críticos ou colunistas de circunstância dizem das obras (nacionais) tão pouco distribuídas, sequestradas pelos monopólios da respectiva indústria de comprar para reter e censurar. Alguns filmes de autores portugueses, sem contar com Manuel de Oliveira, «emigram» logo que nascem, vendidos ao estrangeiro e mercantilizados através de prémios, pequenos prémios e citações autenticadas das agências internacionais. Quanto à opinião dos nossos opinidadores, tal é a sua vanidade contraditória, deve ser comparada com a obra de António Areal, «Dramática História de um Ovo» estrelado. A partir das duas estrelas, comecemos a desconfiar, a fritura pode estar contaminada pelos francesismos de outrora. No caso das duas estrelas, devemos pedir estudos de opinião a verdadeiros conhecedores, obscuros cidadãos que ainda gostam de Ucello e veneram Tarkoski ou Orson Wells. Mas tais criaturas são referências obsoletas, dirão outras criaturas que bebem Coca-cola. O pior é que, tanto no cinema como na literatura ou na pintura, não podemos alienar esses exemplos. Ninguém se lembra de riscar a azul Tolstoi nem de retirar da história do cinema um Eisenstein. Depois é preciso saber que o cinema é uma arte autónoma e capaz das mais completas sínteses pelos meios que opera: da luz à cor, do claro-escuro à profundidade de campo, do movimento ao ritmo e à cadência quase quotidiana da urdidura a que se chama montagem, do ponto de vista em termos de percepção ao ponto de vista enquanto conceito sobre o visível, entre evidências e significativas obscuridades, tudo isso, aliás, em apresentação do espaço e do tempo, sob sonoridades do real, na voz e nos murmúrios, na tradução de ventos ou brisas, por vezes acelerando as emoções produzidas com o adequado recurso à música, sem esquecer que muitas vezes reiventa a pintura, a fotografia, as dores e as alegrias das mais empenhadas captações das guernicas eternizadas pela história, viagem dos povos, carnificinas e outras temáticas do mundo e da vida, a espera juvenil de um amor ou essa «luz de inverno» que antecede a morte.

Vejamos o belo engano do filme «Mistérios de Lisboa», obra em dois grandos actos, homóloga daquele livro de Camilo Castelo Branco e realizada faustosamente por Raoul Ruiz. Pode ler-se Camilo como se viajássemos por um folhetim do século XIX, embora o escritor tenha a potencialidade de abertura à palavra e se empenhe na criação de atmosferas que o tempo absorvia como nas antecipações das dores românticas impossíveis. Manuel Halpern, no JL, chama a nossa atenção, a propósito daquele filme, para as «novelas publicadas em jornais, cheias de intrigas, histórias de faca e alguidar, escândalos, paixões assolapadas, crimes e tragédias», traçando pouco depois uma ligação de modo/moda à obra «Mistérios de Paris», de Eugene Sue, e voltando a Raoul, importante realizador europeu de origem chilena, cuja carreira tem melhores recortes e profundidade. Em todo o caso, saudando o esforço do produtor Paulo Branco, Halpern aponta ( e é consistente no que diz) que «nunca se viu nada assim no cinema português. Uma irrepreensível reconstituição de época com 266 minutos, uma notável competência técnica, um elenco extenso, um guarda-roupa apurado, um grande realizador estrangeiro.» Infelizmente, a grandeza física do filme não basta para resolver o problema apontado por Raoul: o livro parece quase lido na íntegra, pedra sobre pedra, e o filme desgasta-se quanto mais o tenta. A primeira parte seria fácil de finalizar e teria uma coerência formal quase completa. Na segundo parte, e é bom dizê-lo, a linha formal altera-se, a ideia de folhetim dilata-se, o medonho comprimento de cada coisa descrita e redita pela imagem, tudo falado em francês (aliás bem) não passa afinal de um outro filme, aceno ao mercado internacional e porventura a tentativa de premiar os altos favores da produção. Há certas áreas de mais incisiva qualidade: a excelente fotografia, acenando à pintura e ao profundo sentido dos espaços naturais ou arquitectónicos, tratada através de uma luz lendária, de um efeito de distância, acolhendo de forma notória a composição dos elementos do plano, personagens, adereços, sombra/luz, legibilidade.

A regência dos planos é um dos mais brilhantes aspectos da realização da obra: a câmara é um dos fortes factores da realização conceptual do filme, ela inventa prodigiosos olhares de grande amplitude de concentração, abarcando sinais determinantes sobre o que vai acontecer; começa a rodar circularmente em travelling e circunda a cena e as falas, permitindo desvendamentos invulgares do próprio significado romanesco, tanto do lugar como do clima intimista de certas retomas. E tudo continua a resolver-se dessa forma, não bem por panorâmicas, mas quase sempre por travellings -- em frente, atrás, para cima e na perpendicular, entre contrapontos dos planos picados, cuja zona próxima se povoa de entidades ou presenças objectuais desfocadas, através das quais se descortinam (em pleno foco) coisas e certa gente. Tudo isto segundo uma geometria clássica, dentro de alguma virtude renascentista, ou ligada aos roteiros em espiral, de expressão frondosa mas contida. Este método de encenação entre planos, cenas, sequências, incluindo a colagem, o ir e vir de quem vê e significa, passa por um constante distaciamento quanto aos quadros vivos do que está acontecendo, chega ao plano médio e fixa-se, nunca chega verdadeiramente ao enquadramento muito aproximado de coisas e sobretudo rostos. O espectador é assim conduzido a fluir sempre, mas como quem espreita diversas cenas, nas quais figuram pessoas que nunca consegue conhecer verdadeiramente. É um critério em ordem à homogeneidade, não uma virtude, em especial quando a dor transforma a alma e a face de gente suspensa do destino.

O som: a banda sonora referente à música acompanha, por vezes como nos momentos do grande cinema, a maior parte de tudo o que é preciso fazer pulsar, novamente em murmúrio, outra vez carregando a densidade dos próprios movimentos de câmara. Muitas cenas passadas nos salões da aristocracia emplumada e fútil, beneficiando (ou não) do olho sempre a circular, espectador voyant, que acompanha o que de facto ganha visbilidade, tudo parece acontecer no silêncio em redor, além dos poucos que falam, explíctos de intriga e devaneio: o tal silêncio em redor é cumplíce do «segredo», sublinha o «mistério», facto relevante da forma escolhida por Ruiz e que talvez falhe frequentemente pelo não tratamento do meio tom contra um rumor indistindo na sala.

Actores: é um caso particularmente interessante, não porque tudo esteja bem entrosado em correntes de frases ou falas, mas porque as marcas das personagens, no plano representativo da fala, dependem de uma identidade que parece inalterável, de uma pronúncia quase a roçar a voz branca. Porque tudo acontece além e não aqui, perto de nós, naturalmente. Se os personagens sofrem mutações de enredo, em termos de redenção, digamos assim, isso é história trabalhada a meio do corredor ou junto a porta inacessível de um salão, sob o peso grave de altas pinturas murais. São opções que têm um sentido formal e estético, uma significação própria, tudo apurado com extrema competência. Mas se a competência exceder o lado plausível de um sorriso ou de um rosto em lágrimas, a questão pode dar que pensar. E no belo filme de Ruiz dá, com toda a certeza, nem sempre numa roda de consensos. Seja como for, notável é o trabalho de Adriano Luz (padre Dinis no filme). Os actores acertam na meia tinta da atmosfera descarregada à sua volta, deslizam numa obediência ao mesmo fado que também trabalha a metamorfose, o dos personagens que se refazem em diferentes fatos/factos, tendo por isso o encargo mais difícil, uma estranha riqueza interior, um lado de inverosimilhança que teria sido bom ter sido mais espreitado em toda a obra, mesmo correndo ao lado ou para além de Camilo.

Off: o recurso à voz off era quase inevitável numa opção destas. E não é bom nem acontece para bem do filme, embora possa recobrir a narrativa de tanto caso. Esta solução, assaz muitas vezes a arranhar o pefil das coisas e das pessoas, poderá ser útil ao folhetim, não é com certeza tão harmónica como o entendimento da sonoridade musical da paisagem.

Segunda parte: é um delírio de estradas coladas umas às outras, bem desenhado na sua própria monotonia, encostado a uma câmara menos versátil e todo oferecido a algum mecenas francês. São actores portuguseses, com excepções curtas, que se encarregam (bem) deste fardo que acrescenta desnecessariamente mais duas horas e meia às duas da primeira parte. Não me apetece comentar. Gostava de ver Raoul Ruiz, com tão pouco dinheiro como Fernando Lopes, inventar um filme a partir da obra literária «Uma Abela na Chuva».

Adriano Luz e Maria João Bastos



Actores belíssimos que as telenovelas devoram e os filmes «para toda a gente» compromete. Haverá ainda vida que nos possa legar um cinema português sem os vícios da indústria e dos pecados de vassalagem à ignorância, aos devaneios cosmopolitas da criação redutora?