sexta-feira, setembro 22, 2006

AS PALAVRAS DIZEM AS COISAS

São horas de vozes ocultas, murmúrios, meninos falando nos quintais, lá fora, eu atrás das persianas e sempre a usar luzes artificiais, doseadas na intensidade que imitava o dia. Fazer e desfazer, quase como nessa extraordinária ideia de que um quadro é uma soma de destruições, sofrendo a minha própria angústia perante os conteúdos indizíveis, alterados em metáforas pobres, em sucedâneos oblíquos, apenas capazes de apontar uma retórica alternativa no caminho aberto à frente, sobre nova tela. Desenhamos e colamos entretanto, quem me fala de longe? As velhas fotografias eram uma dolorosa inspiração, algo que renascia da sua ruína ou da sua referência, ocupando assim o lugar transcendente que se define na obra de arte e do qual não pressentimos senão aquele sopro de existência - a brisa que nos anuncia uma respiração ainda vital.
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pequeno excerto do livro A Culpa de Deus, de Rocha de Sousa

A CULPA DE DEUS
para um ensaio sobre o livre arbítrio
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aqui se dá notícia deste livro que será lançado
brevemente e apresentado em lugar a designar
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Agora blasfema para o Alexandre, irmão ferido e entretanto sustentado, a par da escrita, pela fé ordenadora do Universo. «Deixem tudo isso, as feridas e os erros, o desalinho dos destinos, tudo, todo o sofrimento, todos os equívocos, meninos mal nascidos, sem olhos ou sem coração; deixem tudo isso porque eu já decidi responsabilizar-me, em declaração universal, por esse horror. Bem sei, só posso estar louco, louco e lúcido como o pobre Leo, esse que dizia viver em paz no jogo paradoxal da cultura da revolta. Godot faltou ao encontro, abandonou-nos junto à raiz da árvore que floresce e se despe de folhas todos os anos, ao correr do tempo, para sempre. Deus está morto, nem o corpo do filho foi encontrado. A terra vai ficar inóspita e silenciosa. Mas podem serenar, eu não vivo de ninguém nem para ninguém. E como é preciso haver um Deus, mesmo culpado ou a quem podemos perdoar, eu fico no lugar Dele».
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Breve excerto do livro aqui anunciado, de Rocha de Sousa, nas livrarias em Outubro

ESBOÇO PARA UMA POESIA INICIAL


DISTÂNCIA
*
A prumo, de súbito incandescente,
um traço de imagens desfaz-se dentro de mim
e apaga e acende,
ora sim, ora não,
as letras escritas dedo a dedo,
batendo a tecla provável,
talvez tudo outra vez, num torpor,
talvez tudo pela névoa breve do vapor,
deus electrónico aparecendo e desaparecendo
do fundo dessa outra memória,
afinal tão remota e virtual quanto a nossa,
e perto, e longe, e feia numa só dimensão,
plano côncavo,
caverna platónica,
sombra ou sombras
da revelação sem nome de nós talvez,
ontem, hoje, amanhã,
nessa distância, enfim, da luz rápida entre centímetros,
distância sempre, agora e depois,
caverna de silhuetas que, explodindo na luz,
partem em todos os sentidos,
perdendo-se sem retorno, para nunca nais,
na maior das distâncias, o infinito.

quinta-feira, setembro 21, 2006

ESBOÇO PARA UMA POESIA INICIAL

VARANDA
Sorte vã na varanda do entardecer, um caminho talvez,
Sorte entre sombras e verde e laranja nas veredas do céu
ou nas encostas assim ainda salpicadas de luz,
portal, limite, lugar de partidas entretanto.
*
Oiço passos raspando a terra,
trabalhadores retornando do alto da serra,
dedos sobre a carcaça das roupas velhas,
velhos são os trapos que os dedos dedilham,
tudo devagar, em lassidão, perto do fim.
*
A varanda foi parte de certa casa colonial,
é agora amurada de um posto altíssimo e vital,
muito longe a cidade perdida das horas e dos sinos tocando,
embalada de brisas,
sonhos praticamente vogando
com a aragem trazida por milhões de insectos,
sempre acordados,
preparados,
a respirar num ranger afinal manso,
sons breves e surdos, ainda quentes,
entre outros emergentes.
Coisas que o chão abriga, encobre, esconde,
nessa geografia feita de arestas cortantes,
riscos coincidentes,
varanda afinal já cercada de ventos.
*
Oiço entretanto o batimento excessivo das minhas botas
memória de velhos camponeses e das enchadas deles
enquanto misturo a lembrança do areal cinzento
às dunas e encostas e juncos a convidar ao recolhimento.
Por aqui, antes do assalto da morte,
recejo mitos e ritos de quem colonizou a terra em volta,
heróis talvez para anfrentar no futuro a revolta,
cabeças inesperadamente expostas,
a rolar, a rolar, de olhos abertos e cegos.
*
Amanhã vou enterrar o que resta dos meus mortos,
tantos e tão poucos no jardim queimado,
por forma a ver depois,
da sorte vã da varanda ao entardecer
as cruzes toscas da espera inútil
por um verdadeiro dia de ressurreição.

segunda-feira, setembro 18, 2006

COMPRAZIMENTO DO VER


Margarida Cepêda: «Efêmero e Permanente»


Margarida Cepêda é uma pintora actual, intencionalmente vinculada a processos veristas no sentido de alcançar a essencialidade da composição, o lado surreal das coisas em mutação, a vida de complexas simbologias. Por vezes, algumas das suas peças mais complexas evocam pausas de encenações teatrais, o receio e o apelo pelo lugar longínquo de todos os mistérios, um amor imanente, um sonho sobre lagos, planícies, sítios paradoxais e frequentemente enigmáticos. Ao inventar personagens e evocar outras, do quotidiano ao sagrado, a artista congela o instante de uma acção, finge dessa forma a possibilidade de parar o tempo. Surgem assim cenas arrancadas ao visível, tanto diáfanas quanto carnais, e contra elas parece opor-se a a geometria da composição, o despojamento dos elementos e dos actos, a aridez perturbadora do contexto de cada reconhecimento.

AS VOZES ENGANADORAS OU A RELIGIÃO DA MENTIRA

Öyvind Fahlström


Conhece este livro? Nem o autor? Ah, também não conhece. Eu li um artigo que falava desta obra, embora o jornalista não mostrasse grande apreço pela forma. O que o seduzira concentrava-se nas áreas mais agressivas dos assuntos económicos, das sombrias urdiduras dos mercados entre pontos decisivos do mundo, estratégias das transnacionais e do tráfego de estupefacientes, coisas imensas e indizíveis, a vida dos ricos, o porquê dos pobres, doenças avassaladoras que devoram continentes inteiros, como no apocalipse. O que disse? É tudo maquinação dos jornais sensacionalistas e contra-informação das máfias em sucessivos desdobramentos - é essa a sua ideia? «Mais ou menos» não configura qualquer resposta. Ou então direi como Frédéric Beigbeder: «Se os pobres morrem é porque os ricos têm razão para viver» Imaginemos que eles têm razão mas em geral falta-lhes o direito, consoante engordaram e acumularam secretos proventos já lavados. «Em África, um branco que dirige a palavra a um negro já não tem a condescendência racista dos antigos colonialistas; agora é muito mais violento. Agora tem o olhar compadecido do sacerdotde que ministra a extrema-unção a um condenado à morte». De maneira nenhuma, esta agressão de que fala Beigbedec não se resume apenas aos casos verificados em África: o colonialismo vai e retorna, assume novas formas de reiterar falsos princípios, trafica armas e fomenta guerras humanitárias. Não há guerras humanitárias? A televisão, apesar de tudo, mostra-nos a deriva dos monstros. «Toda a gente que critica a Sociedade dos Espectáculos tem televisão em casa». O aborrecimento é inextricável da rede de todas as dependências a que chamam desenvolvimento e que não passam do mais decorativo dos novelos, crescimento apenas, lado a lado com os velhos trapos dos velhos vagabundos, milhares de negros a morrer todos os dias, crianças também, novos autos-de-fé para limpar o mundo dos que caíram em desgraça, etnias empobrecidas e por fim sujeitas ao pragmatismo de meia dúzia de genocídios . O totalitarismo publicitário chega até este inferno, parece o acto de Poncio Pilastos a lavar as mãos diante da decisão sangrenta, rasgada sobre os ombros de Cristo. O sistema que rege o mundo, hoje, vende gatos por lebres, entre representações persuasivas. «Vivemos no primeiro sistema de dominação do homem pelo homem contra o qual até a liberdade é impotente.» Não me olhe dessa maneira, não estou no domínio da heresia. «Os nossos destinos são destruídos e descritos de uma maneira bonita» Lembro-me de Calígula, não sei porquê, quando ele desejava a lua e quebrava todos os dias o espelho da noite. As necessidades não desabrocham do chão, nem da alma, inventam-se e comercializam-se. Imagens que dizem valer por mil palavras e que normalmente só se significam para nós através de nomes e adjectivos. «Nada mudou desde Pascal: o homem continua a fugir da sua própria angústia, entregando-se ao divertimento». Não acha? «O mundo é irreal, salvo quando é chato» Não volto a Beigbedec para dizer frases assim como verdades insofismáveis da nossa filosofia ou para alargar o seu sorriso céptico. Céptico sim, porque se curva na liturgia católica e pensa confusamente em Deus, em todo o caso sem meios para aceder a Ele. O homem inventou-O com a ideia perversa de O substituir um dia, todo poderoso. A fé está sob a alçada da publicidade e das grandes operações comerciais. É tudo nítido quando vemos a multidão na Praça de S. Pedro, em Roma, esperando a imitação do espírito supremo. Não quero ofendê-lo, tento apenas perceber os fios que ligam o Bem e o Mal, que enleiam doutrinas no mais decorativo dos novelos, lado a lado com os velhos trapos dos velhos vagabundos, milhares de negros a morrer todos os dias, crianças também, novos autos-de-fé para limpar o mundo dos que caíram em desgraça, etnias empobrecidas e por fim sujeitas ao pragmatismo de meia dúzia de genocídios. O totalitarismo publicitário chega até ao inferno, parece Poncio Pilatos naquele acto de lavar as mãos diante da decisão sangrenta, rasgada sobre os ombros de Cristo. O sistema que rege o mundo, hoje, vende gatos por lebres, entre representações persuasivas. «Vivemos no primeiro sistema de dominação do homem pelo homem contra o qual até a liberdade é impotente». Não me olhe dessa maneira, não estou no domínio da heresia. «Os nossos destinos são destruídos e descritos de uma maneira bonita». Lembro-me de Calígula, não sei porquê, desejando a lua e quebrando todos os dias o espelho da noite. «Não nos safamos de nenhuma maneira. Está tudo aferrolhado, com um sorriso nos lábios. Bloqueiam-nos com créditos a pagar, mensalidades, rendas. Têm estados de alma? Lá fora, milhões de desempregados esperam que vocês libertem o lugares. Podem refilar o que quiserem, Churchill já respondeu: é o pior sistema à excepção de todos os outros. E não nos apanhou à traição. Não disse o melhor sistema, disse o pior.»
«Em breve os países serão substituídos por empresas. As pessoas já não serão cidadãs de uma nação, mas habitarão marcas: viverão em Microsófia ou em Mcdonaldlândia; serão Calvin Kleinianas ou Pradaisas».
Veja como é inevitável e simples: sempre soubemos que há várias espécies de apocalipses.
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Extractos em colagem do livro de Frédérico Beigbeder, «14,99, a outra face da moeda».

domingo, setembro 17, 2006

AS DIFÍCEIS ESPERANÇAS DO «SOL»


José António Saraiva, em plena escassez, lançou um novo jornal - O SOL, semanário - formato aconchegante e papel péssimo, concorrente declarado do EXPRESSO. Falando em entrevista com judite de Sousa, Saraiva ensaiou um futuro vitorioso, uma audiência cujo tecto sonhado parece coiosa da primeira semana, eventualmente seduzindo os leitores viciados nos jornais ruidosos, com grande cópia de notícias e surpresas ou intrigas da política e da sociedade portuguesa em geral.
Naturalmente que desejo bom sucesso ao SOL, mas, enquanto leitor do primeiro número, não posso ocultar que me senti razoavelmente frustrado: há uma pobreza física, intrínseca, nos cadernos desta publicação, mal impressa em papel rasca, com fotografias em quantidade mas quase sempre feridas de falta de qualidade, a par de uma paginação, ou organização formal, de forçada dinâmica, como se os assuntos se misturassem e os recursos do olhar se perdessem no ruído envolvente. Desenhado, o título diz-se fácil e para toda a gente. Mas toda a gente está habituada a logotipos da ciência gráfica, enquanto aqui, sobre uma mancha de céu (presumo) algum menino mais dotado desenhou um círculo amarelo, tortuoso como as duas circunferências sugeridas dentro dele. O S e o L, a preto, ficam pendurados à esquerda e à direita, acentuando a pobreza do conjunto e engolindo o O. «Sol de Esquerda» é, ao que parece, a coluna de Miguel Portas. Margarida Rebelo Pinto defende o espaço «Com muito Prazer» e brinda-nos, desde logo, com o sexo como forma de poder. «Corte & Cultura» mostra-se tão ao gosto do leitor, em tamanho, que nem percebemos se se trata de uma «coluna» A revista TABU acompanha o critério referido, engtre o quase sério e o digestivo, beneficiando de um papel (material) próprio para o fim desta parte da publicação mas perdendo-se no mesmo gosto dos bonecos (más ilustrações) e pouca substância de reflexão. Paulo Portas e Carla Quevedo convivem lá para o fim após páginas mais sedutoras na qualidade gráfica e fotográfica.
Esta minha experiência, olhar corrente e um pouco impulsivo, deve poder corrigir-se, quer do lado do jornal, quer presumivelmente do meu ponto de referência. Não quero nem posso ser definitivo diante de um bebé acabado de nascer e ainda por lavar.
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sexta-feira, setembro 15, 2006

UM HOMEM DE REFERÊNCIA, HOMENAGEM NO LIMITE



Este homem é meu irmão. Faleceu repentinamente, enquanto trabalhava ao computado, na manhã do dia 13 de Setembro de 2006, aos setenta e seis anos, na cidade de Maputo - no país a quem dedicou uma vida, a todos e sem evasivas, com a maior das solidariedades. Moçambique deve-lhe uma obra esforçada nos caminhos de ferro e em muitos outros trabalhos de natureza técnica e cultural, a par da arquitectura, domínio no qual estava acabando pormenores de um grande hospital com elevado número de valências.
Toda a sua vida, amando a terra e as pessoas, foi assim: na família e na sociedade. O seu currículo poderia encher muitas páginas, mas o que verdadeiramente conta é, entre afectos, a obra que deixou, nas vias férreas, na arquitectura, na pedagogia, sempre a estudar as profundas questões da vida e da realidade universal, recebendo, das personalidades ao lado das quais lutou, o rápido testemunho de uma forte admiração, sob o efeito ensurdecedor desta morte súbita, sem dor, que lega aos outros, afinal despertos, a indeclinável obrigação de acompanhar o amigo, o homem que trabalhou até ao último segundo, crente no futuro e na evolução dos povos.
Este homem é meu irmão, porque a morta não o apaga em mim, memórias de outras memórias, da infância a uma vida afastada no espaço mas consolidada por longas e mútuas devoções, quer nos reencontros, quer pela partilha de sonhos e da semelhança de mitas escolhas. Presto-lhe esta homenagem, como os filhos, pela referência que ele represente e continuará a influenciar os nossos próprios limites, entre a saudade e o espírito solidário, alma da vontade de conhecer e de ser continuadamente - essa identidade cujo aceno nos é possível rever através de uma simples imagem.

quinta-feira, setembro 07, 2006

OS PAIS DO MEU PAI



Se o avô morreu não sei. Bato na porta com a pequena mão de ferro e ninguém responde. Também não sei se o levaram para qualquer outro lugar ou fim. Como sabem, cheguei ontem e decidi ficar.

terça-feira, setembro 05, 2006

A MÃO DE FERRO



Percebi tarde o desamparo
de haver esquecido em casa
esse entrave,
a chave,
segredo para cada retorno
ao esconderijo
de todas as urgências.
Chave mágica

que substitui a mão de ferro
e o seu batimento
por cada volta de quem chega
ao lugar multiplicável,
entre o sofá e a sua negação.

Eu sabia o que significa
ficar preso na rua,
sob a luz crua,
impedido sem prazo
de refazer o esconderijo
onde inventamos
o encantamento
de quando nos entregamos,
descalçando os sapatos,
ao prazer morno da lassidão
e às memórias
de todas as histórias inteiramente lá fora.

Cá fora estou,
horas a fio, enfim,
que o dia levou tempo para o entardecer
a fim da noite tecer
e as luzes dos outros tardiamente,
pobre gente em todo o caso chegando a casa,
contempoprânea da última viagem
do último eléctrico rangente, atroador e plangente.

Comecei então a atravessar a cidade com o fim de alcançar a casa de meu avô.

Uma noite de sono em caridade.

A mão de ferro da porta dele é velha, pintada de prata e ainda grata no seu bater já espalmado, de lata.

E agora a mão de carne empurra o ferro da mão prateada, quase sem tinta e amolgada,

barulho inquietante, parece enorne no silêncio restante.

Se o avô morreu não sei, nem sei se o levaram para qualquer outro lugar ou fim.

Sei, isso sim, que me tornei de súbito vagabundo, neste compacto cimento do mundo.

Sem-abrigo, impensavelmente antigo, enrolado sob a mão de ferro pendurada:

Espécie de vida amargurada

e os meus olhos a sangrar mais tarde já no emergir da madrugada.