sábado, março 02, 2013

MORREU EDUARDO NERY: OBRA PLURAL, IMENSA

Eduardo Nery

Morreu hoje, de manhã, o artista plástico Eduardo Nery, grande pintor formado pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Nasceu na Figueira da Foz, em 1938. A sua capacidade de pesquisa e de desenvolvimento de novas formas em diversos procedimentos artísticos, desde o desenho e a pintura à escultura, à tapeçaria, arte pública em vários meios, arquitectura de interiores, instalações, tratamento da cor no espaço urbano, desenvolvimentos experimentais a partir da arte africana (que coleccionava) e também na gravura e na fotografia, onde é inventor de soluções poéticas surreais e do fantástico, entre outras. Tudo isto com grande rigor e um cuidado final de excelência. Será difícil encontrarmos alguém, em Portugal, com tamanha abertura de espaços artísticos, capacidade de investigação, pluralidade de meios e formas, inovação em todos os campos abordados.
Foi logo em 1959 (após ou durante a frequência da ESBAL) que viajou para Paris, iniciando um estágio com Jean Lurçat em Saint-Céré, França, para aprofundar o universo da tapeçaria contemporânea. No âmbito da Manufactura de Portalegre, produziu das mais belas tapeçarias que se fizeram em Portugal, quer no plano da respectiva genuinidade plástica, quer integrando aí exemplares da pintura "op", excepcional no rigor e na teoria da percepção, o que também logrou alcançar em pintura, bidimensional e tridimensional. Trabalhou praças, (Alentejo), interiores de edifícios, planos urbanos exteriores, sempre a convocar os seus códigos mais coerentes, uma geometria que não desdenha a base estrutural mas se alarga em consonância com a arquitectura e o próprio ambiente. 
A sua pesquisa na fotografia é das mais relevantes do universo português: desde as misturas a preto e branco às encenações lumínicas das máscaras africanas e até às subtis osmoses do real e do irreal, a cores, numa linha surreal e num trajecto ligado ao fantástico, pelos caminhos de um imaginário -- fascínio, relações subtis de cultura, entendimento da história e do mundo contemporâneo.
A sua atenção estendeu-se a quase todos os sinais da época. Depois de uma lógica de coerência interna, Nery chegou a soluções dadaístas de anti-pintura, na destruição aparente de quadros, molduras decepadas, tudo atravessado por uma nostalgia mordaz, entre o peso do dourado e a ironia do trompe l'oeil. Saber a fundo o fenómeno da perspectiva correspondia, neste autor, a estudos sobre arquitecturas inteiras suspensas no espaço, na exaltação simulada da terceira dimensão, incluindo a luminosidade certeira e um cromatismo penetrante.
Com os padrões de repetição, Nery inventou soluções visuais de grande efeito, «espacialidades perturbadas, onde a vertigem ou o labirinto se instalam como metáfora de uma geometria plana.»

No livro que lhe dediquei, escrevi na primeira página em branco:

 Para uma cultura aberta e sem omissões.
 Para um país que tem direito a conhecer
 a História da  sua Cultura
 e não apenas o esplendor da contingência.
 (rocha de sousa, 1989)

Foi neste sentido que Eduardo Nery trabalhou. Ao terminar o livro, havia lá a nota de que assim ou de outro modo (porque ver o visível é efectivamente transformá-lo à medida do nosso sonho, de acordo com as paisagens que nos habitam) o artista assume a função de um espaço poético que nos define e sem o qual nada existiria após os desertos.

1 comentário:

Miguel Baganha disse...

Registo o meu respeito pelo grande artista que foi Nery, um artista singular na forma como exprimiu a multiplicidade da sua obra. Nery, foi, com efeito, «um inovador da forma ilusória, do efeito de profundidade e da articulação modular, tanto na bi como na tridimensionalidade.»

E depois do adeus...fica a memória do homem, do artista e da obra.

Bonita e sentida homenagem, João.