Não, tu não sabes nada. Basta de palavras sem sentido. Tu não o conheceste, eras mais velho, sonhavas com as estrelas do cinema e, bem vistas as coisas, nem percebias que o cinema estava muito para lá da sua ostentação mediática. Quando nos levaram para Caxias, naquelas carrinhas pretas, depois de uma terrível viagem de combóio, tinhamos chegado para férias, a barba mal aflorava na pele do nosso rosto, retratos perdidos, gavetas que hoje podemos esvaziar sem que nelas encontremos um único sinal desses pobres adolescentes acabados de aceder à Universidade. O teu irmão sabia muito bem o que fazia, os riscos que corria, mas assumia sobretudo o traço ético das relações, a solidariedade nas conversas murmuradas ao cair da noite. Estás enganado, ele nunca aceitou verdadeiros contactos com o Partido. Se deixaste de o ver é porque te remeteste para as festas da tua tia, beneficiando de boas instalações, melhores contactos, numa clara ambição de chegar à magistratura, presumindo facilidades nos estudos e uma carreira na estrada dos priveligiados. Não? Não como? A tua participação nas defesas do Estado Novo foram meros acenos de brincar, a fatiota de estudante cravejada de marcas e rótulos sem origem? Não te lembras de nada melindroso, nem dos lusitos, nem dos actores que iriam reger o teu perfil, a tua pose de Estado, porque atiravas os sumários para o caixote do lixo, com displicência? Eras muito mais velho do que nós e andavas de cara sem barba, talvez por falta de hormonas masculinas ou pelos cremes que usavas no casino da praia. Eu sei, tenho a ideia precisa da distância que nos separava em férias ou em Lisboa. Isso não te garante o direito de apontares ao teu irmão, pelas ideias que o moviam, a repetição de que apenas recebias ordens superiores e que, de face obediente, aquele tribunal de normas específicas era tão legítimo como qualquer outro. Claro que não era, nem passava pela tua natural cara de efebo, apesar das honras e distinções que te pouparam a muitos sacrifícios. A tia, sim. A ideia meio achada de um brasão ostentado pelos antepessados. Não tem nada a ver uma coisa com a outra? O que é que queres dizer com isso? Ah, pois claro, aceitaste uma oferta, eras mais velho, começaste primeiro a via da tribuna e a roda de doutores que cercavam o teu tio, ministro da ordem pública, senhor dos deslizes encobertos. O André não badalava liberdades e subversões, nada disso, mas é certo que tinha o direito de partilhar as suas ideias acerca do país e do mundo com os colegas, com os amigos de café. Nunca tivemos, enquanto estudantes, senão essas tertúlias de uma privacidade legítima e respeitável. Quando passaste a gerir o vértice do tribunal, juiz acima de toda a suspeita, ainda tiveste a grandeza de salvar aquele médico que tratava o teu pai. Bem sei que julgar pode não se relacionar com uma simples memória de camaradagem ou de agradecimento. Mas não foi esse o teu juizo sobre as falsas acusações que atingiram o teu irmão e o atiraram para uma fuga sem medida. O regime era assim e os tribunais nunca foram impolutos, ainda que, em certras circunstâncias, o pareçam. O julgamento do André foi uma farsa, depois de cair nas malhas da polícia política, de ser acusado de movimentos subversivos (eufemismo mal amanhado) e de pertencer ao Partido na clandestinidade. Não queres ouvir estes disparates? Há sempre mal entendidos que te deixam de fora. Claro que aceito que não sabias das diligências em torno daquele grupo da faculdade de Direito. Ainda por cima. Aceito, ou melhor, acredito; o que não altera a parte de responsabilidade que te coube no julgamento hipócrita e na sentença cujo destino (o Tarrafal) te fez, enfim, assinar como vencido. Vencido de quê, se a tua argumentação marcava definitivamente o André e podia ter as consequências que veio a ter? Choraste? Mas que lágrimas foram essas, se nem os deveres de família cumpriste. Nós temos as gavetas cheias de fotografias dessa época, imagens amareladas, cartografia dos lugares que ocupaste desde a infância até às visitas à velha casa do sul, duas janelas ainda voltadas para a praia, antes da venda aos empreiteiros do muro que nos separa do mar. Longe, nesse mesmo mar, no oceano sulcado pelos tais antepassados cuja história se coloriu de glória, o Tarrafal foi um arrebatador monumento à insanidade dos governantes, dos juizes especializados, da modernidade que o poder se esforçava por anunciar com os argumentos paradoxais da sua negação. O teu irmão não foi julgado com justiça, não teve verdadeiramente culpa formada. Partiu ao cair da noite para a ilha do campo de concentração, em nome da defesa do Estado. E nunca mais voltou. Enterrado no chão calcinado pelo sol, ele que suportara trinta dias de solidão escaldante, só regressou ao nosso lugar pela parte generosa com que a revolução de Abril salpicou alguns monumentos da resistência e as cabeças brancas que vogaram no seio da multidão daquele primeiro de Maio. Achas que não? Achas o quê? O saneamento provisório do teu cargo foi apenas um gesto simbólico. Só agora o André chegou ao cemitério da nossa terra, em urna metálica como os soldados que o precederam nas colónias, e nem uma página, uma carta, um selo de esperança nos resta como memória desse esquecimento ilegal e monstruoso. Ah, essa nostalgia de Salazar não fará dele um verdadeiro herói: foi tardiamente saudado pelos votos incautos de um ridículo concurso de televisão. Deixa lá a Comédia da Vida. Abre as tuas gavetas e arruma os escassos valores que lá encontrares.
terça-feira, agosto 14, 2007
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1 comentário:
Não tenho irmãos. Achei necessário esclarecer este ponto para o que pensei sobre este texto.
A família, o Pai, a Mãe, os irmãos, a política, a ambição, a ditadura, a cobardia, a ausência de valores, tudo de uma vez. Gostei muito, talvez dos textos mais sentidos que lhe li.
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