quinta-feira, julho 06, 2006

continuação da postagem anterior

cenário interior









TERCEIRO EPISÓDIO
fornatação e sentido

Voltando propriamente à telenovela (em geral) como tema que nos aproximou da televisão e das pretensões dogmatizantes que a têm envolvido, e apesar da colonização brasileira, devemos primeiro reconhecer que nos últimos anos a ficção novelística neste domínio, incluindo algumas séries de teor histórico e de época, subiram exponencialmente de nível. Provou-se que a formação no plano da representação natural não era nenhum bicho de sete cabeças e que a língua portuguesa tem potencialidades expressivas de bom e variável recorte. Por outro lado, o enquadramento dos técnicos nestas exigências, desde a qualidade do registo à orientação lumínica ou ao desenho e construção dos cenários de permanência, alcançou patamares de verdadeira relevância profissional. A vaga de actores jovens tem mostrado como havia sido necessário, desde há muito, a sua ancoragem nos cânones modernos desta actividade artística.
Muitos aspectos da revolução nas artes plásticas, durante o século XX, a par dos estudos científicos que a despoletaram, trouxeram claros benefícios ao domínio das outras artes. E aqui, a fim de os sintetizarmos a esta escala, teremos de optar (em contradição útil) por alguns termos daquele vocabulário sobre o qual se esboçaram reservas e os acertos possíveis.
1 Roteiro: na esteira dos brasileiros, os guionistas portugueses, salvo dois ou três casos de excepção, procuram ainda (certamente porque a produção quer audiências por essa via) as histórias de absurdos conflitos entre maus e bons, os monstros que armadilham a comunidade para tirar de cada sucesso importantes proveitos, as vinganças retorcidas, os loucos perigosos, a realidade interclassista a um nível sociologicamente difícil de verificar.
2 Edição rotineira: a composição das cenas, o seu desnvolvbimento e motivações espaciais, tropeçam com frequência num jeito maquinal (coisa já metida na concepção dos registos) e muitas vezes sobreponível entre três peças que estejam a ser emitidas numa espécie de bloco. As semelhanças formais daí resultantes alienam a leitura inventiva e obscurecem prestações intercalares de valor decisivo.
3 Ruído: a sobreposição à acção dos actores de um excessivo efeito de ambientação, concentração de elementos insignifiativos na cena, tudo isso compromete a clareza de direcção e desempenho dos personagens. No mesmo sentido, o entrechoque de canções ou músicas batidas com a voz dos actores, por vezes exactamente ao mesmo tempo, e até com um terceiro registo de som ambiental, a isso, como sabemos, chama-se ruído - e o ruído, excepto quando exemplarmente justificado pelas circunstâncias expressivas, impede, com largo prejuizo físico, psicológico ou conceptual, a apropriação clara da forma cénica e dos ses sentidos menos epidérmicos.
4 Ruído visual: excessos idênticos aos anteriores, não justificados quanto à realidade expressiva, adereços a mais, um «labirinto» capaz de comprometer o trabalho dos actores, deve ser evitável; e também hoje os designers e técnicos do embiente cénico conseguem por vezes conjugar de forma certa e calorosa os dados solicitados, como acontece com a casa do «professor João» na novela da TVI, «Dei-te Quase tudo». Aquele lugar tem a marca da passagem do tempo, tem os percursos ambíguos das velhas casas onde os livros e outras coisas ganham presença forte.
5 Iluminação: trata-se de um elemento estrutural da composição da cena e pode assim tornar verosímil, a certa hora do dia e da noite, o conjunto de coisas e seres. Durante muito tempo, porventura em consequência de limitações técnicas, oa brasileiros iluminavam as cenas das suas telenovelas por forma a que não percebíamos se elas se passavam de dia ou de noite. As passagens de iluminação não se distinguiam entre essas horas. Esta é uma questão hoje geralmente ultrapassada. Alé do mais, é preciso ter em conta que a luz, além de estrutural, assume um valor expressivo (e até simbólico) cujo manejo obriga a um particular tratemnto no espaço e no tempo.
6 Luz e expressão: como na pintura, no teatro, no cinema, a luz em televisão é, como vimos, um elemento estrutural absolutamente decisivo. Embora possa dar apenas consistência real ao cenário e aos personagens, ela pode, com toda a vantagem, ser utilizada em termos de subtileza numa linha poética de claro-escuro, acentuação maior ou menor do clima expressivo.
7 Lugares: para além de intrigas básicas ou impensáveis - a que a excelente capacidade actual dos actores confere alguma dignidade - limitações de concepção e talvez financeiras definem os lugares onde a acção decorre, casas, salas, quartos, escritórios, criando aí atmosferas pretensamente condizentes com os seus frequentadores, gestos, sensações, sentimentos; ora essa estreiteza e repetição das posturas técnicas ou de entradas e saídas, teatraliza a expressão. De resto, há quase sempre um ângulo morto que não nos é dado ver, dedicado ao dispositivo das câmaras e justificado na rapidez de produção. O espectador confronta-se com os mesmos sítios, os mesmos ângulos, aproximações ou mediações, ao ponto e se tornar possível, a um espectador avisado sobre a gramática fílmica, predizer, diante de um plano, qual o tipo de plano seguinte, e de quem e observado donde.
Não façamos de notas como estas qualquer esboço académico de uma parte desses manuais que circulam entre nós sobre esta matéria. Gostaria que estes pontos de vista, servindo eventuais debates, pudessem iniciar o nosso juízo crítico perante um produto cujos vícios ainda não mataram uma importante direcção de actores - e o constante achamento deles.
A telenovela, de raizes escassas e de utilização comercial pela televisão usadas como expectaiva subjugante de audiências, pode contudo basear uma boa e frutuosa produção no género, com densidade artística e cultural. Mas, em vez de se acentuar a sua agressividade fácil, é preciso criar equilíbrios entre a tensão e distensão, rompendo com a rotina do enredo caseiro (estamos quase sempre dentro de casa) enquanto os exteriores, repetidos, separam algumas sequências de transição mais acentuada.

2 comentários:

naturalissima disse...

Uma critica admirável!
Embora tenhamos em conta que as telenovelas são feitas muitas delas em cima do joelho, tudo para ontem, com uma serie de cenas realizadas num único dia, os actores a decorarem no próprio dia os seus papeis... Em fim, uma rapidez, que na minha opinião, desnecessária. É stressante e coloca em questão a qualidade de trabalho dos actores, dos realizadres e produtores.

Foi interessante ler este artigo.
Beijinhos
Daniela

jawaa disse...

As novelas actuais cansam-me. Excessivas, repetitivas, não me dão prazer. Aprecio as novelas de época, mais brasileiras, em episódios não seguidos, embora tenha consciência de que já se trabalhe bem em Portugal neste género.
Interessante a sua exposição.