segunda-feira, agosto 14, 2006

O BRANCO LENTAMENTE








fotos rocha de sousa


Um dia, em Setembro, o céu tornou-se branco cinza. Uma aragem cortante atavessou o litoral e deixou as águas do mar paradoxalmente aquecidas. Depois, quando despertou em mim a idade da razão, funcionando cordenadamente com a abertura da consciência, começei a ouvir falar de uma guerra distante, que já abalara o Verão anterior, e que mostrava entretanto as primeiras estratégias a fim de se deslocar para Leste, sob o peso de invernos colossais e temperaturas dezenas de graus abaixo de zero. À noite, em Dezembro, eu ficava a olhar, perplexo, para a figura de meu pai debruçada sobre o rádio, o ouvido colado ao aparelho na expectativa de aceder às notícias emitidas em ondas curtas pela BBC. Durou muito tempo, essa guerra - Segunda Guerra Mundial, sempre se disse - e entretanto a escassez de bens básicos de consumo começou a fazer-se sentir. Eu ía comprar o pão com senhas de racionamento e via as mulheres dos operários corticeiros muito pálidas, brancas de morte, brancas de Inverno, esperando a sua vez na comprida fila de pessoas. Pensava para comigo, vendo a cortiça ser exportada de Portimão em grandes cargueiros, não sei para onde: «a guerra é tão longe, Portugal nem está metido nela, e mesmo assim há esta pobreza imensa, combates visíveis da praia, entre aviões inimigos». E um dia, passeando com um primo meu pelo deserto (nesse tempo) de Monte Clérigo, vi ele correr a fim de observar o corpo carbonizado de um piloto germânico cujo avião fora abatido quase sobre a espuma das manhãs, fogo e frio, carvão sangrento e areia branca, as dunas.
O branco das cidades do sul, inventado pelos árabes por razões têrmicas, acinzentava-se lentamente, ganhava fendas e cicatrizes, retinha a humidade das nuvens em bolsas de cal.

1 comentário:

naturalissima disse...

Mas que beleza de história. Beleza na forma como está escrita... dá vontade de continuar a ler mais e mais....
Bonito, tio!