terça-feira, setembro 23, 2008

TELENOVELAS DO NOSSO DESCONTENTAMENTO



Não pensem que a torturada expressão desta actriz, Alexandra Lencastre, se integra no contexto de uma profunda dor de alma, o corte brutal, olhos nos olhos de quem recebe a notícia da morte de um pai ou de um filho. O que acontece é que esta senhora, engolida por tudo o que a televisão tem de pior, se vê neste constrangimento facial sem perceber o péssimo efeito que daí resulta. Será bom acrescentar-se que Alexandra Lencastre era uma boa actriz. Mas há cedências que nos estampam o amargo do lucro no próprio rosto. Alexandra representa aqui não mais do que uma birra de mulher que sobe na vida através das mais alvares maldades, das armadilhas mais torpes, inomináveis em última instância. A senhora jé é viúva de um velho comerciante com quem casou no ocaso da vida (dele), já abandonou a família reles que é das mais grosseiras caricaturas que a Lia Gama alguma vez pensou desempenhar e exagerar, apanhou entretanto maridos alheios, praticou ilícitos de dimensão cósmica, usa a filha para ter relações o seu próprio amante e filma tão edificante situação, procura entretanto caçar um falso brâmane, filho do velho há pouco citado e que desembarca (riquíssimo) em Lisboa, no império das lojas Império, herdeirode boa parte de tudo isso. Alexandra Lencastre consegue deslizar como um réptil na mansão da família da Império, manipulando a filha, cujos genes são iguais aos seus, no mesmo sentido do golpe, do roubo dos namorados alheios, na vileza de crimes de morte, meninas impertinentes até ao vótimo, sem um mínimo de ocupação, sem nada, entrando e saindo dos quartos, pronunciado os mais despudorados clichés.
Estas anotações extraídas do que pude ver e compreender deveriam ser ajustadas a todo o guião, ao mesmo tempo que gente séria e independente teria a missão oficialíssima, sem omissões nem prazos de silêncio, de analisar este apopdrecido produto, impróprio para consumo, cujos rasgos de malvadez (a personagem principal a mandar matar a irmã a fim de lhe roubar a fortuna, os filhos, o próprio marido) não têm disfarce nem fim pedagógico. Esta é que é a verdadeira violência dos audiovisuais, em telenovelas que prendem os incautos e enganam o Eduardo Moniz com parolas audiências ou sonolentas passividades. Três novelas de seguida, qualquer delas com o mesmo modelo e a mesma impunidade de louvar ao Diabo. A degeneração das personagens que espalham o ódio, os vícios, as mortandades, nada contrapõe a essa indigestão de beleza adiada a ácido sulfúrico, quer quanto a uma nuance sobre o histerismo complexo do mal, quer em relação à indigência das falas, da escrita. Tudo aparece a nu, dito a cru, combinado a cru, cruelmente, gerando grandes partes de espectáculo tão vil quanto pronográfico. As audiências não justificam tudo. Com a antiga Lassie, regressando a casa depois do maior estoicismo, podemos dizer que o irreal também poluía as mentes, apesar dos milhões de pessoas que aderiam áquele modelo. Um bom modelo, como já aconteceu, capta grandes massas de público em pouco tempo. Se a TVI fosse menos ganânciosa e tivesse um bocadinho de bom gosto e de maior paciência, veria que a difusão continuada de produtos de grande conteúdo estético e de aprofundamento do homem não demorariam tanto como pensa a aderir a esses valores. Não é por acaso que os concertos no CCB chegam a estar cheios, que Pina Bausch esgota lotações, que muitos outros importantes autores arrastam multidões. Claro que há as mutidões da «pesada» e do «futebol», mas uma coisa não exclui a outra. O que se vê na TVI, em termos de novelas portuguesas, é a pior literatura de base, o mercado dos piores valores, e a constante humilhação dos artistas nacionais, algo que parecia impossível por causa do teatro conservador e da «naturalidade» dos brasileiros, e que hoje nos absorve com inteira justiça. Há tudo por onde escolher e actores jovens a par dos mais velhos, capazes de representarem a um nível invulgar. Seria bom que, com mão certa, se escolhese e produzisse a sério, sem levar actores valiosos a se mercantilizarem trocando cachets chorudos por caretas intermináveis e gritarias arrevesadas nem realistas nem expressionistas.

2 comentários:

jawaa disse...

Vai havendo a TV por cabo, para nosso contentamento. Sempre há por onde nos distrairmos, deixando de lado «a miséria» dos canais nacionais que enfrentam (e contaminam) a tv pública da pior maneira.

Vimar disse...

Há realmente uma tendência em vários campos, de não tentar ser melhor que os bons e nem sequer imitá-los. Penso que, nem se apercebem ou não lhes interessa quando fazem um bom ou um mau papel uma boa ou uma má representação. Aliás, não sei em que tempos e porquê isso aconteceu, mas continua-se de algum modo, em Portugal, a ter os objectivos abaixo dos pés...