segunda-feira, março 23, 2009

HÁ QUEM ENFRENTE A MORTE SIGNIFICANDO-A

Jade Boody



O ser humano, crente nas suas forças e na sua criatividade, tanto enfrenta os males do mundo como luta contra eles ou chega a produzi-los, entre sucessivos e aterradores paradoxos de um psiquismo em cuja natureza profunda continuamos mergulhados, presos na mais espessa das sombras. A frágil evolução dos nossos valores de harmonia, aliás desde sempre, sofre fracturas inexplicáveis; e a metamorfose de seres sublimes em anjos negros é, a todo o instante, fácil de acontecer no espaço global hoje glorificado como a maior conquista das civilizações.
Prestemos alguma atenção ao caso dramático de Jade Goody, de 27 anos, ultimamente tão mediatizado. Ela era asssistente de dentista, aberta à vida de formas eventualmente contraditórias, e descobriu de súbiro, naquele repentismo com que Deus costuma escolher-nos sem a menor justificação, que tinha um cancro no colo do útero. Estava-se em 19 de Agosto de 2008. Para que o arrepio fosse maior, o choque brutal verificou-se quando Jade participava numa edição indiana do «Big Brother». Desde então, esta rapariga, assim assinalada por um corpo igualmente perfeito e já obsoleto, lutou com o maior empenho contra a doença, tornando-se um verdadeiro exemplo de resistência e de alerta para a importância do rastreio do mal, tanto mais que o progresso alcançado contra tais casos, quer no diagnóstico, quer no recurso à providencial descoberta da vacina específica, estava já em aplicação. As autoridades sanitárias britânicas assinalaram o facto, após a notícia sobre Jade, do muito maior afluxo de raparigas ao exame médido e à vacina disponível. Goody desempenhou um extraordinário papel em termos de serviço público, expondo-se em vez de se fechar, e absorvendo o que lhe restava de vida - porque a vida é o que melhor nos define, não o cadáver que leganmos à terra, olhos cerrados, em redor a opacidade de um silêncio que ninguém percebe e alguns louvam, argumentando que a memória da vida, por ezes manchada de contradições, tende a comsolidar a construção do nosso testemunho.
É tudo muito estranho, inclusivamente o facto de sabermos que o Universo terá uma vida de biliões de anos em palpitação vital, enquanto as galáxias também morrem ou dão lugar a outras nos choques de trajectórias que parecem perfeitas na imagem imóvel, pela distância, mas que significam mutações inenarráveis ou até a emergência de novas estrelas. No caso de Jade Goody, bastou vencer o «Big Brother» britânico para ser estrela, a fama individual a inundar todo o seu espaço social. Lançou livros, perfumes, as bugiganas do consumismo alienante. Só que, nacircunstância, vivemos manietados a diversos mimetimos. Jade trabalhou num outro «reality show», situação em que soube ter cancro. A habituação ao viver público diante das câmaras levou-a, porventura à patética decidão de vender à comunicação audio-visual os direitos registarem a fase terminal a da doença mediante um pagamento de consenso. Muitos dizem:os seus últimos dias como meradoria. A sua ideia da Jade, contudo, era a de assegurar em parte o modo de vida dos filhos, tanto mais que a revista «OK» e «Living TV» concordavam com a verba de 1,5 milhões de euros.*
Esta história, a escolha que implica, pode chocar muitas pessoas bem pensantes ou conservadoras. Em letra de lei e de princípios morais, tudo isso poderá ter acolhimento filosófico. Mas uma vida apanhada assim, à «falsa fé», como diz o povo, não se ajusta facilmente, quando a consciência passa a conhecer tudo e a falta de nexo para tão rápida visita da morte. Direi por mim, e sem pensar muito, que a pena de morte que nos cabe logo ao nascer, justifica, antes de cumprida metade da existência, escolhas ou respostas assim, entre o suicídio e a coragem de abordar o problema com ressonância para todo o mundo, talvez como ressonância profunda perante o inexplicável, o deastre não provocado na esteira da nossa indisciplina, antes uma espécie de destino vingativo, breve, absurdo. Menos equívoca foi a própria Jade: às portas da morte ainda soube arranjar forças para um último acto de grandeza: despedir-se dos filhos. Sentada, disse-lhes: «a mamã vai para o céu e o céu é onde as pessoas ficam melhor. Quando olharem para o céu e virem uma estrela, é a mamã olhando para vocês».
Dir-se-á: «este ignóbil mediatismo retira transcendência aos nossos actos, esmagando a sua própria grandeza.
João Lopes, crítico de cinema, considera que Jade é mais uma personagem, «sem dúvida das mais comoventes, devorada pela fúria desumana da televisão». Claro que Jade, filha da sua época e dos seus estímulos apropriativos, escolheu aquela participação (talvez fútil mas que não implicava o prémio de um cancro); mas há meios que não cessam de se diabolizar: «o liberalismo televisivo conseguiu isso, substituir o reconhecimento público da lei (e das fronteiras definidas) pela euforia anti-humanista do espectáculo».

_____________________________________________________

* Esta intervenção está apoiada nas notícias publicadas, no artigo de Paula Rito, do Diário de Notícias, e numa bela crónica escrita pelo crítico João Lopes.

a morte interventiva

2 comentários:

jawaa disse...

A coragem surge perante o inevitável.
Julgar, nem é preciso. Claro que a mediatização choca mas há, como diz, justificações perfeitamente aceitáveis. Esperemos que os filhos possam sempre ser tocados (pela positiva) por esta prova final de mãe.

Mena G disse...

O absurdo de uma morte anunciada, sem dúvida.
E o que fazer com o tempo de vida que ainda temos:
preparar quem está mais próximo de nós .
É o essencial.
Porque nós, os que temos a morte a viver cá dentro, já sabemos tudo...
;)