Há dias, na RTP1, depois do noticiário das 20 horas, uma Judite de Sousa irreconhecível, sem a sua habitual cordialidade e doçura, apesar da beleza que conserva, surgiu, ao lado do seu colega José Alberto Carvalho, pronta a assaltar liminarmente, superficialmente, o Primeiro Ministro, José Sócrates. É assim que tem acontecido um pouco por toda a parte, em nome da crise, em jeito de sátira, numa vandalização da ética jornalística, ou do debate, ou de qualquer tipo de análise, pró ou contra. Os personagens desta batalha na Assembleia da República, nos jornais, nos meios de comunicação audio-visual, além das manifestações a céu aberto e anfiteatros dos partidos políticos, salas das Casas do Povo e outras Associações Cívicas, todos eles se vangloriam de alguma razão de agravo, todos eles se hostilizam contra promessas que asseguram ter sido feitas pelo Governo e não cumpridas. O Governo, por seu turno, desincomoda-se tanto quanto pode, faz anúncios das medidas para suster a crise, o maior desastre do capitalismo desde as primeiras décadas do século XX, incluindo obviamente a aberrante teoria do livre funcionamento dos mercados, como se os homens fossem iguais e igualmente honestos, santos, rectos nas trocas e na hora de pagar as trocas. Pois aquela senhora, que sempre tenho apreciado e faz um bom trabalho de casa, estava agressiva, desordenada, o José Albeto, à direita, um pouco menos, e o Primeiro Ministro, interrompido a todo o instante, à direita e à esquerda, dedilhando as suas cábulas, as suas fichas, os seus números, entre miríadas de constelações cénicas ou retornos de uma finança esfrangalhada, de um mundo que continua a mitificar-se, apesar dos erros de assombro cometidos por grandes senhores da Banca em todo o mundo, das sua megalomanias sobre inúteis crescimentos, epopeias de roubos, espaços devastados por negociatas sem nome, produtoras de assimetria e pobreza, ou ainda sob o fedor de instituições que mais parecem cloacas dos mais danados vampiros, paraísos fiscais, buracos negros que abocanham quase toda a riqueza excedente da labuta tóxica, entre gases capazes de sufocarem o próprio planeta dentro de meia dúzia de séculos.
Toda a entrevista/debate atirada a José Sócrates foi um ensaio de como não se faz aquele trabalho, nem no tom, nem no método, nem no implícito sectarismo. A defesa do Primeiro Ministro acabou por se parecer com esse jogo, pois tinha que manter a articulação da fala e do pensamento a despeito das interrupções muitíssimo frequentes, fúteis, a mostrar o desejo de driblar o adversário, provocando-lhe um entorse ou a queda, por forma a estragar-lhe a resposta. E depois o que queriam e o país profundo já vomita, entre pesadelos de incompreensão: o caso Freeport e a excitação das insinuações sobre a alegada corrupção daquele político na questão das licenças em golpe de cunha e de fortes luvas pagas em prestações. Mesmo que se queira perceber esta franja de pequenas e grandes manias, após tanta sufocação em pús pelo mundo inteiro, qualquer cidadão derrapa entre incertezas, a corrupção da corrupção é um terrível teatro impróprio para o futuro e sobretudo para o enorme trabalho em câmara lenta da Justiça que nos julga, processos de décadas, crimes correndo pelas redes que os Procuradores mal suportam na carga de códigos contraditórios.
A certa altura (e eu percebo), o Primeiro Ministro, de tanto satisfazer a fome dos interlocutores por maldades escondidas, desatou a «sticar» em várias esquinas e foi encalhar naquele noticiário das sextas feiras, na TVI, onde efectivamente qualquer espectador pode perceber a vã sabedoria (ali tão desaproveitada) de Vasco Pulido Valente e o desprendimento grosseiro, sarcástico, da apresentadora atrapalhando o trânsito, tudo muito perto do insultuoso, brejeiro, alienante, aspectos de uma profissão que sabe o que é a liberdade de expressão. Ora isso (que é bem grave)
é agora espaço de virtudes sussurradas no noticiário pelo Director Eduardo Moniz, um homem que se acolhe sobre vitrais e tem o despudor de declarar qualidades e direitos num organismo vergado ao dinheiro e ao embuste das programações, conteúdos, no pior desentendimento da acção comunicativa, cultural e cívica, bem distribuída pelo tempo e no espaço. É assim, ele próprio, o profissional impoluto que reivindica, orando, encostar o Primeiro Ministro à parede por ter tido menos cortesia do que habitualmente demonstra. Quem é que se salva de uma coisa destas, 50 minutos, excluindo o futebol, rajadas com balas acima da simulação, pré-acusatórias de mil desastres na governação. A acção que Sócrates moveu relativamente a um jornalista, em situação que não conheço em detalhe, é agora superada pela vandalização da ética para a televisão e pelo jogo em redor: só falta chamar como testemunha Manuela Ferreira Leite, do PSD, que garantiu perante as câmaras ser o Primeiro Ministro «o coveiro da Pátria». É um emprego que alguns políticos mudos não teriam desvontade de aceitar, logo que bem remunerado e dotado de assessores.
4 comentários:
Com efeito, João, a política está vandalizada. Mas este fenómeno não se deve ao facto da liberdade de expressão dos media ser cada vez mais livre,(?)mas sim porque o poder político mundial é exercido duma maneira descontraídamente abusiva ( qui ça uma nova expressão de tirania, esta mais subtil e mais dissimulada), inconsequente e provocando efeitos que o mais certo é serem impossíveis de reverter. Sinto os meios de comunicação audio-visuais, cada vez mais como um filho que o sistema político gerou e educou negligentemente. A velha história do médico e o monstro, este último que ao aperceber-se das suas deficiências se volta contra o criador, destruindo-o.
Penso que estas duas forças caminharão sempre juntas na margem de tudo, cegos pela vaidade e embriagados pelo poder desmedido irão cambalear e ziguezaguear até cairem num abismo de interminável imoralidade.
Como diz o velho provérbio: " quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele. "
Um abraço, tio-mestre!
Miguel
Aviltar a liberdade, talvez se possa dizer...
Muito bem dito! Grande texto! Também estou farta da pobreza mental e de comportamentos que tanta vez nos invade a casa. A Jawaa diz muito bem...
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