sábado, fevereiro 12, 2011

ANIVERSÁRIO E HISTÓRIAS DE PAULA REGO

Paula Rego
Dia de aniversário para Paula Rego, uma das mais importantes artistas portuguesas e europeias, e dia de júbilo para quem aprecia a sua obra, desde os anos 60, ou para quem, de alguma forma, se reconhce nela. Trabalhava eu no Suplemento Literário do «Diário de Lisboa» e para séries sobre arte da RTP1, tive o privilégio de ser uma das primeiras pessoas a entrevistar a pintora, na altura em que se documentava a sua primeira exposição individual em Lisboa, Galeria de Arte Moderna da S.N.B.
Durante algum tempo, a equipa de reportagem filmou a pintora Paula Rego, ainda jovem, a colar e a pintar estranhas formas sobre um suporte horizontal apoiado no chão. O que sobrou da edição desse trabalho, teria bastado para um poema audio-visual projectável integradamente em rubricas culturais. Foi lamentável, contudo, a imagem a preto e branco, porque aconteceu numa altura em que a cor ainda não tinha chegado à RTP.
fragmento de uma peça de Paula Rego

fragmento de um mural a tinta de água de Paula Rego


Quando se fez uma pausa técnica durante as filmagens atrás referidas, aproveitou-se o tempo para a entrevista que haviamos combinado com a artista, eu e ela sentados perto de uma janela. Só nesse instante, perto um do outro, é que me apercebi da invulgar beleza daquele rosto, da sua modelação suave, da busca das palavras, entre gestos vagos, palavras que pareciam ter pouco a ver umas com as outras. Já faziam lembrar as histórias que Paula Rego veio a desenvolver mais tarde, desde um clima surreal e onírico até a uma espécie de realismo expressionista, passando pelos desenhos de grande escala, em pinceladas livres, que podemos observar no segundo fragmento de uma das suas mais decisivas histórias, nesta técnica, que se desenrolavam como desenhos para crianças, percorríveis ao longo da sua alegria, ruído e musicalidade. (2ª imagem).
Quando perguntei a Paula se a sua pintura atendia ao real, nos seus instantes e nos seus protagonistas,
ela pareceu meditar muito, com os olhos parados.
Mas de súbito, disse, com a voz na garganta:
Sim, clado que sim. (pausa) Mas porque pergunta?
Vejo-a como se estivesse alheia a esse problema, recortando papéis e colando, recortando e pintado.
(El a riu-se brevemente):
Eu não sei o que é a pintura e o que é o real. Mas tenho uma ideia. Não pinto porque exista o real e porque ache que ele tem de ser atendido. Ou talvez melhor: entendido. (pausa, tinha um dedo na boca e recomeçara a pensar): Olhe, eu sei que o real é importante para certos artistas. Eu gosto mais de reflectir sobre a realidade da pintura. É um jogo, sabe, e por vezes regista coisas da nossa vida. Faço-a com a colaboração dos meus filhos, dos seus rabiscos, das suas pinceladas, formas a que eles chamam nomes de bichos. (Apontando ao quadro, no chão) Veja, estão ali, são papéis, bocados dos riscos deles, um cão com o rabo de fora, flores, e o meu arranjo por dentro e por fora. Ao contar estas histórias, talvez absurdas, sinto-me de novo menina. Menina sujando tudo em volta.
Os seus quadros, os que vimos na SNBA, são por vezes gritos do tempo passado, episódios da história do país. Ou não?
(Ela olhou-me, num frio segundo, e disse:)
Mas quando pintei esses quadros, além da saudade, havia perdido pelo menos uma pessoa importante. A morte pode não provocar dor mas imobiliza-nos a pensar. Seja como for, eu estava estudando histórias da História, «O Regicídio», por exemplo. Não é só o rei que morre, é uma parte do nosso país que se perde.
Acha?
Sim, porque não? Um amigo meu disse que esse quadro, bem como outros desse género, lembram menos o meu olhar e mais as minhas mãos. Ele gosta das cartolinas cortadas. Ou de mim. Mas as histórias da História, embora sejam também engraçadas, devem ter... ter mais permanência.
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Este excerto, reelaborado da gravação para a TV, dá-nos
um discurso muito mais estranho do que esta parte mais
«líquida». Paula, para o fim do nosso «tempo», lembrava
certas falas do teatro de Becket. Hoje continua bem aten-
ta, ainda muito activa, desvendando nas histórias de que
não se lembra cenas e sequências que nem a represen-
tação pode sustentar.

1 comentário:

Miguel Baganha disse...

«Eu não sei o que é a pintura e o que é o real. Mas tenho uma ideia. Não pinto porque exista o real e porque ache que ele tem de ser atendido. Ou talvez melhor: entendido. ...Eu gosto mais de reflectir sobre a realidade da pintura. É um jogo, sabe, e por vezes regista coisas da nossa vida.»

Paula Rego não deixa de ter razão: há verdades que são inefáveis - a imagem, na arte e nas coisas, talvez exista para contar as histórias onde a voz não chega.
Muitas vezes mentindo para contar a verdade.