domingo, maio 22, 2011

REFUNDEMOS A IDEIA DE PERIFERIA E DOS POVOS


Angela Merkel


Ninguém entrou na Europa de pé descalço e ranho no nariz. A periferia de que se fala hoje, à medida que a UE baralhava a fruta calibrada com zelo e dentro do maior rigor comercial, perdia ganhos e sobretudo nexo. Não demorou muito tempo para que os tratados, uns atrás dos outros, apenas parecessem votados a consultas na diagonal, folheados na oblíqua descendente de cada página e os sublinhados substituídos por chavetas destinadas a agarrar montes de notas em modelo, entre carimbos envelhecidos, entre durezas chauvinistas, ordens vindas de um tal senhor Big BROTHER, em grandeza aproveitada por Angela Merkel a fim de brincar com bolas das inquietantes chuvas de granizo, bolas cada vez maiores, catapultadas na direcção dos «irmãos» periféricos, isto é, europeus pequenos ou distantes, gente não nascida na devida genética, colada às precárias e tormentosas fronteiras de um mundo imaginado por centros imperiais, memória de outros séculos.

Portugal (para a senhora Merkel, divindade que governa a Alemanha) é sem dúvida um resto de nação a seguir à Espanha, área periférica, velha glória geróntica com mais de oitocentos anos como Nação, coisa que o mundo moderno, maneirista e redutor, tem vindo a colonizar, apagando uma História indelével. É afinal um território que muitos milhões de turistas partilham em visitas sasonais, costa visitada por povos de ontem e de hoje, costa, enfim, voltada para o Oceano Atlântico, o rosto da Europa, como reparou e exaltou um grande poeta do mundo, português genuíno e conhecedor de outras fronteiras, Fernando Pessoa, poeta raro, inventor de si em vários heterónimos igualmente geniais, cada um nascido na maior credibilidade, Álvaro autor da «Ode Marítima,» Bernardo Soares o do «Livro do Desassossego.» Essa realidade (que abarca o mundo) não pode ter a alcunha de periférica, expressão capciosa ou perversa que deseja insinuar lugar da margem, sítio distante e meio alienado, a quem a geografia política volta as costas, deixando-o rente ao mar quer como que a dispensar os restos da Grande Barca da mitologia bíblica, Nave que aterrou nos baixios em perda, segundo a grande Alemanha do Euro. Ancorada no rosto da Europa, ali a barca desceu emissários, recolhida nos areais donde partiram importantes navegadores, argonautas já com o futuro nos olhos, homens aos quais a História Universal deve mais do que à regente alemã, factor de duas aterradoras guerras mundiais, hoje querendo recentrar antigos aliados e velhas nações numa arena que tudo determina. O uso da palavra periférico, relativamente a países que fazem e destinam o limite notável da Europa, territórios imprescindíveis à compreensão de outros tempos, imperdíveis assimiladores de culturas de antigas civilizações, intérpretes iniciais dos direitos e juízos greco-latinos.



perigosamente, Merkel não sabe bem o que diz

«Em países como a Grécia, Espanha e Portugal, as pessoas não devem poder ir para a reforma mais cedo do que na Alemanha. Todos temos de fazer um esforço, isso é importante, não podemos ter a mesma moeda, e uns terem muitas férias e outros poucas»

Sem graça nem verdade, uma frase de ignomínia. E até errada. Não periferia e primaveril, mas enterrada na ignorância centralista e na arrogância de um poder neste caso sem eloquência. Ora a Alemanha, que se reconstruiu com a ajuda dos seus adversários, organizando-se (com mérito) sob a cobertura do famoso plano Marshall, tem de acertar a geografia social. Desta vez, nem sequer foi Portugal que provocou a odiosa e actual crise; há responsáveis intercontinentais, lá fora, nos horizontes de outras «periferias». Apesar de tudo, a Alemanha não é o exemplo que Merkel pretende apresentar. O problema deveria ser mais estudado, sobretudo na actual situação e perante triunviratos europeus sem legitimidade, apostados na força do dinheiro e de um divisionismo que em nada se parece com o sentido da frase: União Europeia. A comparação feita pela chanceler sustenta-se no facto de a Alemanha ter dos mais curtos períodos de férias para os trabalhadores
20 dias. Em curso, este país aproxima a idade da reforma dos 65 para os 67 anos, enquanto os países do sul contemplam os 65 anos. Diz a senhora: «A Alemanha ajuda. Mas a Alemanha ajuda se os outros se esforçarem mais. E isso tem que ser demonstrado». Ora estas questões não podem avaliar-se assim nem numa ideia redutora de unicidade.



Quando se desmontam os esquemas que iludem certas quantidades e minimizam qualidades, podemos verificar o seguinte, nas médias: Alemanha 30 dias de férias; Portugal 25 dias; Alemanha em horas de trabalho 1380; Portugal em horas de trabalho 2119: Alemanha, reforma (65 em trânsito gradual para 67); mulheres (em trânsito para 64).

Infeliz relação esta: a grandeza geográfica, no poder de compra e matérias primas não legitimam, em nada, e muito menos numa Europa que se pretendia solidária, assimetrias radicais, autoridade política de uns para com os outros e não aprovada por todos. A utopia pode consolidar-se numa vontade real e sólida; mas não a pesar batatas segundo a demografia, o rendimento per capita, os doutores existentes, os favores dos tratados. Os portugueses sabem bem o que é o mar, por exemplo: é nele que a sua riqueza transcende muitas zonas da Europa. Mas isso não legitima que tais zonas inventem cotas mais do que suspeitas e tenham imposto aos periféricos atlânticos o abatimento de frotas de pesca e corte de milhares de hectares de vinha. Todos sabem aonde isto leva, a médio e longo prazo. A emigração para a Europa não tem aqui, apesar dos princípios, um ancorador humanitário e eticamente impoluto. O escrutínio do mal, dos emigrandes sem verdadeira reparação, esse sim, pode reger-se por uma contextualizada racionalidade de cotas.

2 comentários:

jawaa disse...

Um excelente olhar sobre esta ameaça que se vai tornando a Alemanha, com aquela grandeza que se quer de nacionalismo português.
Eu tenho esperança, eu tenho esperança ainda no povo de um país mergulhado numa História que poucos têm no mundo. Talvez tenhamos sido abanados agora para ressurgir com esplendor e que se cumpra o «Quinto Império», depois da derrocada. Agostinho da Silva disse que o futuro tem de cumprir-se quando muito desejado, inventado, e nós sabemos que Portugal tem raízes raras.
Há frutos de Portugal a amadurecer por esses mundos além, tenhamos fé.

Obrigada por este texto.

Miguel Baganha disse...

Resultado do "jogo" (análise periférica de Rocha de Sousa vs intervenção mitómana e chauvinista de Angela Merkel) ao intervalo

Rocha de sousa:5
Angela Merkel: 0

Aguardamos, ansiosamente, pelo final do "jogo"