quarta-feira, julho 11, 2012

A MEGALOMANIA PORTUGUESA EM VERSALHES

Joana, feliz e poderosa, a saborear a derrota deste luxo
perante a sua obra de escala industrial, portuguesa e internacional

Tenho um certo receio de ser mal entendido ao escrever estas frases de mil sentidos, entre o luxo e o provincianismo atirado, à americana, além fronteiras, em Versalhes e sem risco de qualquer decapitação. Mesmo assim, devagarzinho, escrevo sobre a grande aventura de Joana Vasconcelos espantando assim os novos burgueses e virtualizando, na França dos nossos imigrantes, os tontos luxos daquele palácio totalizante, resto patrimonial do tempo em que as monarquias podiam romper eternamente o déficit. Com panelas, plásticos e tontura na escala, esta jovem artista portuguesa e cidadã do mundo, goza a rotunda alegria do seu triunfo. Os sapatos feitos com panelas apontam a América e uma actriz famosa. E eu acho que, além de mais tampões a fingir cristal, a Joana deveria fazer uma hambúrguer (McDonald's) que enchesse a Praça da Concórdia ou flutuasse no Sena. Não era preciso trazer essa obra para Portugal. Talvez fosse de grande oportunidade fazê-la pousar em Bruxelas com uma carta endereçada aos pobres europeus e uma ginja gigante dirigida à senhora Merkel. A liberdade de expressão, que respeito muito e por isso escrevo, assim, num espaço onde sou (por agora) bem livre, deve ainda ser suficiente para tais devaneios, embora aquele "incidente dos tampões" teria tido muito mais repercussão se Joana recusasse expor as outras peças sem essa emblemática criação, indiciando tanta coisa. Mas, recusas dessas custam caro (e não só em dinheiro): Sartre bem o disse, vertical e zarolho, ao recusar o Prémio Nobel da Literatura.
No domínio das artes a nossa Joana deveria, depois de França, começar a inventar um arranha-céus com a forma de uma das torres que Bin Laden deitou abaixo. Pode ser feito em esferovite, com a "prata da casa", e decorado em relevo e cor num estilo bordalesco, cheio de Zés Povinhos. Outra ideia boa é construir em poliéster um imenso porco, oferta dos países do sul da Europa aos balofos do norte dela. É que aquela piscinazinha de plástico, que nunca mais sai donde não devia estar, um Portugal oco e com torneiras, é mesmo muito pobrezinha e compreende-se que não esteja, com água e espuma, nos jardins geométricos de Versalhes.
A propósito dos sucessos lentos a pulso, de antigamente, Valter Hugo Mãe escreve hoje um curioso artigo no JL. E é daí que vem a fotografia publicada aqui. Não tenho espaço nem paciência para montar e desmontar as mensagens duras ou subliminares de tal peça. Mas destacarei o destaque: «Em Versalhes, diante da portugalidade digna da Joana Vasconcelos, eu era uma testemunha de uma certa emigração que se orgulha hoje de ter uma história honesta».
Aqui está, em suma, uma daquelas grandes frases, sem tampax nem Amálias de plástico. Claro que ninguém põe em causa a liberdade das artes. O mal que elas fazem é que pode ser estudado nas Universidades.

6 comentários:

Miguel Baganha disse...

Enquanto lia aquilo que me parece ser o retrato cultural e fiel(nada caricaturado) da sociedade actual, uma questão se agitava cá dentro: como é possível alguém escrever com tanto humor sem se afastar um só milímetro da realidade? Será apenas mérito do autor ou a cultura coeva é cada vez mais global na sua mediocridade megalómana.

Foram as megalomanias(e não falo só das portuguesas) ou falsas necessidades que empurraram a Europa (e porque não o mundo) para o incomensurável abismo em que se encontra.

Fez-me rir, mestre. E isso foi bom, por momentos.

Miguel Baganha disse...

Vou levar comigo(se ainda não estiver patenteada) a séria ideia das "torres de esferovite" -- uma vez professor, sempre professor. Bravo!

jawaa disse...

Mal entendido é quando se tem arte para dizer o que se pensa, o que não é o caso aqui, decididamente. Pode ou não concordar-se com o que diz, mas isso é outra coisa, e outra coisa é outra coisa.
Apenas não gostei dessa do hamburguer, porque entendo a arte da Joana como um libelo à condição da mulher (pese embora a minha condição de leiga)e isto soa-me mal.
Quanto ao resto ela joga como pode no mundo que conhece, um mundo de competitividade onde nem sempre prevalecem os mais qualificados, isso já sabemos.
Mas eu estou orgulhosa, como mulher e portuguesa, por ela ter chegado onde chegou, e ter levado consigo a cozinha portuguesa, a moda portuguesa, a música portuguesa.
Caro amigo, ter chamado Sartre à liça foi um pouco forçado, ela (ainda) não estava em condições de desprezar uma oportunidade destas. Sabe que para se ser «pobre» por opção, tem de antes ter-se sido «rico» o suficiente para poder desprezar realmente a «riqueza».
Em todas as variantes.

Anónimo disse...

Parece-me que muitos portugueses continuam tragicamente afinados pelo diapasão popularucho de que “santos da casa não fazem milagres” e JV caiu-lhes como "mel na sopa". Aconteceu o mesmo com outros artistas portugueses, que teriam tido dimensão internacional caso tivessem ficado pelo estrangeiro, resistindo ao "apelo das raízes" e outros que, tendo insucesso no estrangeiro não têm obra muito apreciada em Portugal (como aconteceu com Helena Vieira da Silva e acontece com Paula Rego – e o mesmo poderia dizer-se de Manoel de Oliveira e de Inês Medeiros, no cinema) para além dos artistas que vivem longe da sua pátria e nem sequer são conhecidos pelos seus compatriotas. Em contrapartida, recebemos (muito) bem os estrangeiros, o português gosta de receber bem, de ser bom anfitrião – talvez não saiba o que aconteceu ao bom Anfitrião (o da mitologia grega).
Joana Vasconcelos integra um grupo de artistas portugueses nascidos no estrangeiro, fruto dos sucessivos surtos de emigração lusa. Tal como Gabriel Abrantes (Prémio EDP Novos Artistas 2009), entre outros nomes menos conhecidos. Francamente, acho que Versalhes vai muito bem com Joana Vasconcelos, sem qualquer menosprezo pela Joana, precisamente pelo que fica dito no texto de Rocha de Sousa. A artista e a obra são, sem sombra de dúvida, fruto do nosso tempo desregrado, voluntarioso, caprichoso, (des)norteado pelo primado da sedução, de grandes impactos visuais, grandes volumes ocos, publicidade impactante, o kitsch associado à recuperação industrial dos mitos da cultura popular,… Nem por acaso, a obra de Joana Vasconcelos é tão aplaudida por Gilles Lipovetsky, o celebrado autor de “A Era do Vazio”. E Versalhes vai bem com JV atendendo aos anteriores convidados, Jeff Koons, Xavier Veilhan, Bernar Venet e Takashi Murakami. Mesmo que Venet pareça a mais no grupo, certo é que se enquadrou nos critérios que presidiram aos seletos convites para expor em Versalhes. Compreendo e aceito a argumentação de jawaa, que não refere critérios artísticos, embora seja evidente que JV não foi a Versalhes apenas pelo folclore.
O zarolho Sartre tinha razão em relação a muitos assuntos mas só conheceu e valorizou realmente os portugueses com a revolução de abril de 1974.

Sérgio Reis

Anónimo disse...

Correção ao meu comentário anterior: onde saiu Inês Medeiros, eu queria dizer Maria de Medeiros, devido às reações ao seu filme "Capitães de Abril", que muito desgostaram a atriz/realizadora (lembro-me de uma entrevista muito esclarecedora, publicada ao tempo no Expresso)e a afastaram de Portugal.
SR

jawaa disse...

Em tempo fora de tempo (quase um mês depois) voltei aqui e vejo que faltou um «não» na primeira frase.

Mal entendido é quando NÃO se tem arte - o que não é o caso!

Mas julgo que assim foi entendido por quem leu, porque o final da mesma frase o deixa expresso.