domingo, dezembro 17, 2006

AS NOITES DOS SEM TECTO



O que vemos aqui é apenas o que resta de uma sociedade profndamente marcada por processos de exclusão, cujas noites albergam milhares de pessoas sem tecto, os sem-abrigo, vidas inteiras dormindo nos recantos da arquitectura, sob a bruma das luzes ou a claridade das montras ainda acesas. As fotografias aqui propostas são da autoria de Paulo Alexandrino, a quais, entre outras, ilustraram um trabalho de entrevista a sem-abrigos desenvolvido por Carla Amaro. (revista do Diário de Notícias, 3 de Dezembro, 2006.

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A CÉU ABERTO

Jacinto achava soberba a reabilitação do Carlos ao livrar-se da dependência do álcool. A sua língua, enregelada pelas drogas, não deixava por isso de chalacear sobre o papel dos ricos nessa reconversão. Mas há códigos de honra entre esta gente da noite, os sem tecto, os sem-abrigo, o que implica a partilha de certos valores e bens -- a comida, por exemplo. Jacinto só leva a comida que lhe é distribuída «para evitar que uns comam duas ou três doses e outros nenhuma» Tem as suas exigências: «Este pão não é de hoje. E ouça lá, trouxe-me os pijamas que lhe pedi? Onde estão os cobertores casaco-cama que me prometeu na semana passada? Os que tina roubaram-me. A mim roubam-me tudo. Mas não estou para apanhar porrada dos meus semelhantes, já bastam os pontapés que às vezes levo dos putos ricos que saiem bêbados das discotecas. Que é isso do albergue. Já lhe disse que não me deixaram ficar nesse sítio com a desculpa de eu ter abandonado o programa de desabituação do consumo de álcool.Também não me quiseram nos Ascólicos Anónimos porque não gostavam que eu usasse nas reuniões a bomba da asma. Nunca mais lá pus os pés. Há vícios e vícios. No Intendente, contam-se pelos dedos os que não são viciados em heroína. O padre Henrique aparece por aí. Diz que a sua missão é tirar da rua os que puder. Mas os nossos traumas fazem com que gostemos destes cantinhos em pedra, sentimo-nos com mais liberdade. Que raio, o pão está mesmo duro. Eles pensam que, lá por não termos onde cair mortos, perdemos o paladar, comendo por comer, comendo tudo só para encher a barriga. Digo mesmo que alguns desses pãozinhos-de-leite que andam a dar-nos sopa, mais valia que se metessem nas casas deles, confortáveis e quentinhas. Como isto anda, é caso para lhe dizer: aproveitem as casinhas enquanto as têm. A mim já me tiraram tudo, só não me tiraram a vida. eAí a sonhora da máquina fotográfica o que pensa que anda a fazer. E aquele que escreve tudo o que digo? Vieram espreitar a pobreza alheia? Se calhar ainda a acham bonita, era só o que nos faltava. Ó minha senhora, para que quer saber a minha história? Vai resolver o meu problema? Arranjar-me um emprego? Vá-se lá embora que a minha miséria não interessa a ninguém,

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Esta recriação em torno da entrevista já referida respeita as frases citadas, embora aqui aglutinadas em forma de fala única como reforço da sua intenção expressiva e de testemunho.

3 de Dezembro de 2006

dois graus positivos







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2 comentários:

Maria disse...

Nem vou comentar...

Maria disse...

A mensagem é minha, sim, maria, d"ocheirodailha".
Se não comento, é porque dói comentar...