segunda-feira, fevereiro 09, 2009

CARTAS DE AMOR | PESSOA PINTADO POR POMAR

Pessoa pintado por Pomar


Terrível Bebé: gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo e o Bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que havia de gostar, e isso mesmo, e tudo torna ao princípio, e parece-me que ainda lhe telefono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na boca, com exactidão e gulodice e comer-lhe na boca os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ofelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece impossível ser escrito por um ser numano, mas é escrito por mim.


Fernando Pessoa (1888 - 1935) para Ofélia Queiroz



Júlio Pomar no seu atelier

2 comentários:

Miguel Baganha disse...

E eu gostei, gostei porque gosto do amor das palavras, das coisas e dos animais. O puro amor-criança, irracional e obscenamente belo de Pessoa. E gostei porque também gosto das pinceladas do Pomar, soltas e escorridas e que bailam desenfreadamente em cima da tela branca num frenesim de forma e cor. Gosto das virgens, gosto da loucura, da incoerência coerente da natural paixão ardente dos jovens, no preciso momento em que a inconsequência assume o controlo de tudo. Gostei de tudo e gostarei e estou doente mas não da mente... a gripe, sim, ai a gripe que me põe febril e docemente insano mas só temporariamente porque o que é bopm acaba depressa. Ah, gostei, gostei muito deste retrato, retrato típico e justo do amor autêntico, sem medo, sem hipocrisia e sem reservas e um amor assim deverá ser sempre uma doença que se recebe de braços abertos. O amor, essa Coisa que se quer por se querer tanto ser feliz mas é o máximo que poderemos ter porque ao querer querer, não deixaremos sempre de querer estar em nós. Gostei, gostei porque gosto da viver e agora também eu me vou embora, porque estou com tosse e aqui faz frio gelando-me os dedos e eu posso piorar. Estes dedos tal como o coração, precisam de calorpara conrtrolar a dislexia que se anucia breve se não sair daqui.

Gostei... porque gosto de si, tio-mestre, e embora pareça, também eu não estou louco, apenas estou eu.
Vou descansar...
um abraço,
afónicoMiguelfebril

jawaa disse...

Achei um encanto essa sua deriva pelas cartas de amor de Pessoa, uma outra manifestação do eu, que encaixa sempre de alguma maneira no que se sente, de tal modo ele é múltiplo e universal. Aqui, na escrita fluente e febril do Miguel, que não pude escusar-me a ler, onde pegou como uma planta o mundo das sensações derramadas sem rebuço. E bem.

Felicito-o a si por ter conquistado assim esse «menino».

Pomar tem ainda um outro registo de Pessoa em três rostos, imagino que simbolizando os seus heterónimos mais conhecidos e é uma delícia o quadro que fez de Mário Soares e tanta celeuma gerou.
Há um baixo-relevo denominado unicórnio de Júlio Pomar no Café Central de Caldas da Rainha; já teve oportunidade de o ver?.