terça-feira, fevereiro 10, 2009

VIDA IMPÚDICA E PÚDICA DO DITADOR SALAZAR



Olhamos para a figura severa, num palácio nocturno, e reconhecemos logo a figura do homem que governou Portugal durante 48 anos, em ditadura, o povo amordaçado, rédea curta, polícia política nas esquinas do nosso descontentamento. Não era figura com quem se brincasse e toda a gente acreditava no seu viver solitário, mandando em tudo do centro da sua casa de S. Bento, a polícia e os ministros. Uma governanta de cutelo servia-o e e ajudava-o na disciplina destinada aos agentes da PIDE que tratavam da segurança do forte de S. Julião da Bara, onde gostava de passar as suas férias, ver a horta caseira, fazer a sexta e ler. Muitos falavam de uma grande paixão que o acometera nos tempos de Coimbra, coisa que derrapou, assim ficando tão só como disse Christine Garnier, na sua visita longa e seu amor tardio. Quando ela partiu (estava a escrever um livro, «Férias com Salazar»), o carro rolou devagar e ele ficou a acenar da porta. Ela escreve isso mesmo. E terminou com o célebre período de uma palvra apenas: «Só»
Ora acontece que, depois de ensaios televisivos mais ou menos históricos, de época, o último dos quais tem sido o EQUADOR, escrita imprópria para a oralidade, trechos secos e pequenos, os actores como gente do teatro amador, debitando pouco e movendo-se como se houvesse um risco no chão, a SIC enfia-nos pela garganta uma inacreditável «Vida Privada de Salazar», coisa sem sentido nem verdade, pior que todos os filmes feitos sobre o milagre de Fátima. A produção, no Equador, apostou no cenário. Grandezas. O director cortou aos actores todas as deixas e a fluência dos racords. É teatro e teatro a mais. No caso de Salazar é mais ficção do que outra coisa, com um actor (que conhecemos do seu mérito nas novelas) mas que, através da sua juventude carregada da lama na pele, sem nada de parecido com Salazar, sopra o que pode para alguns comparsas conhecidos, atura a D. Maria, mas desde cedo caiem-lhe no colo mulheres lindíssimas, em actos de amores perdidos, ele bem vestido, beijando como um galã tímido. Meus senhores, que diabo de coisa é esta? Como é que se faz um trabalho que fica a milhas do já discutível Amália?


Na hora da morte, que deixou de começar com a queda de uma cadeira «preguiçosa», sendo substituída por um tempo meio omisso da queda na banheira, o homem que está na água, e quando nos calha ver um raro grande plano da personagem, não é nem o actor nem o Salazar: é a máscara de Marlon Brando, sem tirar nem pôr, rosto que Copola apadrinharia com todo o gosto.











Irene Pimentel, uma historiadora credível, arrasa a série sobre Salazar. E seguimo-la no jornal «Diário de Notícias». Segundo o que diz, só o diálogo com o futuro Cardeal Cerejeira e a proibição da família Perestrelo que, por razão de classe, impede o relacionamento entre o jovem Salazar e a filha Julinha, têm rigor histórico. Esta é a opinião da historiadora Irene Pimentel sobre a estreia, no domingo, da miní série da SIC «A Vida Privada de Salazar». São dela as seguintes palavras: «Achei a série altamente especulativa. Duvido muito que muitas das histórias contadas se tenham passado de facto» Irene Pimentel afasta-se da condição de crítica de televisão. Mas a verdade é que aquilo não se trata de televisão, nem de cinema, é um subproduto que chega a envergonhar algumas das novelas que já somos capazes de fazer (repare-se em «Olhos nos Olhos»), descontando a piroseira infecciosa dos roteiros, histórias impensáveis, arrastadas, próprias para uma forte punição e despedimento com justa causa. Salazar não é Salazar, mesmo que fosse capaz de rebolar na cama com mulheres tão estereotipadas. O actor está sempre a dar tiros no pé. Não digo que ele tivesse de ser a máscara de Salazar. Mas poderia sugerir. E, ainda por cima, é um jovem talentoso a pisar a casca de banana, que investigou fontes obscuras do ditador e não sabe nada daquele Portugal, aliás bem ausente da composição de interiores e exteriores.








Irene Pimentel considera que os «diálogos são pouco ricos». Não são diálogos, argumentamos nós. E de facto as figuras de 1905 não falavam assim, não se vestiam assim, não se movimentavam assim.
Esta ímpia apresentação, cena após cena, tem uma forma (mesmo na inexorável patetice dos momentos) inadequada a contextos e tempos. De resto, como o sotaque lisboeta das meninas da Beira, ao menos em honra da figura do impúdico Presidente do Conselho e sua voz desde cedo esganiçada - «a Nação não se discute e a Pátria nao está à venda».
Salazar não morreu de forma trágica como o filme sugere, um «padrinho», pesado e nu, a ser escorregadiamente amparado pela governanta e uma criada. Os jornais foram comedidos e alguns (censurados) tentaram descrever a queda da cadeira numa jeito algo ridicularizado, em contraste com a pose de Estado que Salazar assumia nas poucas vezes que aparecia em público. Depois vêm os incautos tapar-nos os olhos com a peneira, porque nem uma obra destas o Presidente do Conselho merecia, o homem que fez as guerras coloniais e transigiu com os males (e mal entendidos) da polícia política. Nuno Santos, director de programas da SIC não quer perceber que a aventurazinha desta vida de Salazar, além de ficcionada até ao ridículo, só passa por um rol insensato de relacionamentos do político com mulheres (assim?), «sem qualquer contextualização histórica, sem nenhuma ideia da importância política do António Salazar no século XX português. Tudo é desleixado e alguns actores, que representam gente que existiu, são, como a própriia figura deste Presidente do Conselho, ensurdecedores erros de casting.




Jorge Queiroga, realizador da série, classificou os resultados alcançados como «excelentes». É inconcebível. É assim, que gente assim, em nome de audiências opacas, prestam serviços ao país, actos redutores e cada vez menos classificáveis. O pobre actor que teve de fazer esta cena na banheira, parece-se muito mais com Marlon Brando do que com Salazar. Este recorte da cena, reinventado aqui e partindo da imagem do filme, mostra à saciedade o trabalho patético assim desenvolvido. O duvidoso «Primeiro Português de Sempre» (do concurso televisivo) recebeu de Queiroga esta púdica e impúdica homenagem.

5 comentários:

Miguel Baganha disse...

" Tudo é desleixado e alguns actores, que representam gente que existiu, são, como a própriia figura deste Presidente do Conselho, ensurdecedores erros de casting. "

Talvez que o único aspecto positivo desta producção seja o facto do actor ( enfeitado pela caracterização )ficar a saber que é parecido com o Grande Marlon Brando.

- Uma belíssima bofetada de luva branca bem merecida, esta que o tio-mestre aqui dá aos que pensam que um bom argumento e uma mão cheia de actores de novela é suficiente para se fazer cinema. É que a palhaçada pode ser um elemento apreciado nas mais variadas ramificações da sétima arte mas não me parece que se ajuste a uma obra quando esta pretende ser séria e fiel à realidade.

Continuo a gostar, João... um abraço,

Miguelquasemforma

Klatuu o embuçado disse...

Tudo «normal», meu caro amigo, o tirano, e a responsabilidade histórica e política de o ter sido... afinal, não passou de um actor de pornochachada - que, aliás, é isso que estão a fazer à nossa memória colectiva: um filme pornográfico de mau gosto!
Agora imagine quando as pessoas da sua geração já não estiverem entre nós, quando já não houver nenhuma memória viva do Estado Novo, quando já não houver ninguém para poder dizer «não foi assim!».

Estes ainda não serão os dias do apocalipse - mas são já os dias de uma funda e triste mediocridade. E vil mentira, em nome de mais uns tostões de lucro, sacados ao zé pateta enfeitiçado pelo lixo televisivo.

Abraço.

Ricardo Passos disse...

Não assisti ao renascer do Salazar, na TVI, mas pelo facto de concordar em pleno com a crítica que faz em relação a "EQUADOR" (os fracos diálogos e a teatralização que prima pela inércia) fico deveras entristecido por ter perdido a oportunidade de conhecer um Salazar Brando (ou brando?).
Parabéns pela excelente forma com que "brinca" com as palavras.
R. Passos

Nuria Esteves disse...

Não é o meu filme preferido, de longe. Mas tem aspectos bastante bons como o trabalho do Orlando Alegria na fotografia. Gostei muito de ver o Filipe Vargas. O que para mim é o melhor é o trabalho do Bruno Bizarro na música . Excelente banda sonora, que por vezes, merecia ter sido mais bem tratada pela montagem e pela edição de som. Aí ficou muito a desejar o trabalho feito pela TOBIS.
Não gostei da Soraia Chaves, nem da Catarina Wallenstein, por outro lado achei que o trabalho dã Margarida carpinteiro é muito bom.

José disse...

É isso: «A palavra pensa a imagem».
Vi toda a série e dela ficou-me uma sensação de quase repulsa! Vi-a e senti-a mais como uma caricatura do que como um trabalho sério sobre uma figura sinistra que nos punha a polícia política a bater à porta pela manhãzinha, exigia o lápis azul nas redacções e mandava um bufo para cada mesa de cada café!
Este texto repõe a 'verdade das coisas'. Ele, sim, é um excelente trabalho.
José Morais