sexta-feira, março 06, 2009

A ASSOMBRAÇÃO DAS NOSSAS INTELIGÊNCIAS


Diziam-nos na Escola que o mapa de Portugal, tendo em conta a organização sintética do seu perfil geográfico, se assemelhava a um rectângulo. Era o tal cantinho à beira-mar plantado, a partir do qual se desenvolveu o grande feito dos descobrimentos. Hoje, na Internet ou em qualquer cartografia da Europa, Portugal parece continuar com a mesma forma, rosto apontado ao Oceano Atlântico. Escapando à II Guerra Mundial, teve (na altura) de zelar pelas colónias, perdendo e recuperando. Depois daquele grande conflito que devastou os vizinhos para além da Espanha, um homem chamado Salazar, nem carne nem peixe, sentou-se em S. Bento e passou, arrumadas em boa medida as finanças, a mandar no país todo, sustentando obediências à ditadura, inventando até o abominável Tarrafal para onde exportava os piores inimigos (comunistas) e os deixava por lá a torrar até ao limite (ou além do limite possível). Fora daqui, o pensamento internacional, de uma Europa em reconstrução, assediada por filósofos e artistas, tornou-se progressista; e por esse conceito (que não seria de novo inocente) foi aberto um vastíssimo espaço, praticamente global, donde surgiram as ideias da descolonização (já), ideias logo apoiadas no terreno por gente das revoluções, movimentos de libertação, ardendo a Argélia, o Congo, os espaços ingleses, sobrando as colónias portuguesas, as quais, segundo Salazar dizia, faziam parte do nosso rectângulo, pátria pluricontinental e pluriracial.

Depois de uma guerra em três frentes, durante catorze anos, o velho político, António de Oliveira Salazar, amigo de Christine Guarnier, caiu de uma cadeira (preguiçosa) e nunca mais foi o mesmo, acabando substituído por Marcalo Caetano, cuja figura inspirava alguma confiança e ainda pareceu votada a preparar a independência das colónias. Esse tempo chamou-se de «Primavera Caetanista», rapidamente seguido de um longo inverno de adiamentos, revoltas militares, finalmente de um golpe quase pueril que tomou conta da cidade e do país, prendeu Caetano, levou-o para o Brasil, onde o exilou, aliás como o próprio Presidente da República, entre muitos afortunados com os seus contentores bem recheados de riquezas. E houve um primeiro de Maio por toda a Lisboa, vagas de cravos como aqueles que nos inundaram no 25 de Abril de 74. Governos Provisórios, Cunhal chegando em glória de faustosos exílios. Mário Soares abraçava amigos e inimigos, milhares de intelectuais e jovens estudantes desertores da guerra colonial, perseguindo Marx, Engels, Mao, formavam assembleias para tudo. Otelo, «estratega» do golpe de 25, tornou-se um democrata basista que mais parecia um César montando a sua quadriga, conquistando com os trabalhadores os latifúndios, ao desbarato, oupando casas vazias ou meio vazias ou mesmo simplesmente fechadas, tudo isso entre «intentonas», boatos, o chamado golpe do 11 de Março, contra-revolucionário, os comunistas a entrançar a sua rede de fios de aço e disposto a chegar, custasse o que custasse, ao poder, farol de todos o amanhãs que cantam. A aventura, no terreno, tropeçou ali por Monsanto e um militar desconhecido, Ramalho Eanes, em arranjos com o general Costa Braz, então presidente da República no célebre 25 de Novembro, resolveu tudo numas escassas horas - talvez o primeiro momento da crispação e da quase revolução em que o rectângulo de Portugal se tornou mais pequeno e mais compacto: de rectângulo passou a quadrado.


Chegou então uma espécie de apocalipse, político, social, de projecto: setecentos mil portugueses que viviam nas colónias, perante independências arrasadoras, tiveram de retornar a Portugal através de uma ponte aérea ou de outras formas, todas elas, em geral, reduzíveis a crónicas de horror, mágoa e lágrimas. Mas isso já não importava a pós-universitários, artistas de vanguarda, literatos, homens da resistência, vítimas de Salazar e da PIDE. Floresciam cravos, as finanças (ainda cegamente) esbanjavam sofridas «igualdades». Entre as bolhas de festa e os ricos logo mais ricos, a classe média, enviando os seus meninos à boleia dos combóios da Europa, para conhecerem gente e perderem a virgindade, acorriam ao Algarve pré-turístico; e em breve, como se vestissem plumas, viajavam por esse mundo fora, Brasil, Patagónia, Canárias, Espanha irmã, a França do Centro Pompidou. Aliás, e em geral, primeiro foi a Europa. E mais tarde coisas menos recorrentes - Tailândia, Índia, China, a própria Rússia. Uma das personalidades pós-emergentes, Pacheco Pereira, tirava férias (como num livro de mistério) para ancorar lá para os lados da Tetchénia, velando pelos restos da história nesses espaços tarkovskianos - e batendo, à chegada, em tudo o que fosse poder. No programa Flash Back, na rádio, ele interrompia tudo e todos, sem o menor sentido deontológico daquele espaço da palavra, lugar da livre expressão (o que não quer dizer desordem). Para interromper os companheiros desatava a dizer as primeiras palavras da sua interrupção. Assim, por exemplo: «Eles tiveram... Eles tiveram... Eles tiveram... Eles tiveram...» sempre até à ruptura e os outros abandonarem falas inacabadas. E então: «Eles tiveram os amigos debaixo de olho, bem mais apurado do que o olho do colega José de Magalhães (ainda não havia computador do mesmo nome): foram colocar-se atrás da cortina do PS, ouviram o palavreado esticado à direita, e desceram a plateia agitando bandeiras do PSD-PP. Os meus amigos sabem que, contra a retórica do pântano, essa atitude, em vez de demagógica, tinha toda a legitimidade revolucionária» «Está a brincar».«Não estou nada a brincar». Magalhães protesta. E o Pacheco: «Isso não interssa nada, não estamos a falar de informática, você informatiza a assembleia e ficamos submersos numa osmose de vírus». «Não é nada disso». «É. É. É. É.» Alguém conseguia falar: «Não é, não senhor, é um acto de arrogância e um reles desprezo pelos adversários políticos». «Mas eles disseram que, mas eles disseram que». «Que porra meus, senhores: o quadrado estava mesmo formado». Cada vez éramos menores, e os meios da comunicação sociais, quadrados e rombóides, geravam comentadores políticos por tudo quanto era canto, menos, em todo o caso, os treinadores de bancada do futebol e os Mao Tsé Tung das claques desportivas que já tinham farda, dragões, armas, associações e até sindicatos».


A polícia não sabia quem era esta gente mas já se sentia determinada a arranjar um sindicato. E os juízes também. Os juízes ajuizando devagar, entre montanhas de papel e nenhum computador. Não foi por acaso, além do mais, que Pacheco Pereira, tão badalado como Santana Lopes mas por outras razões, se meteu noutro quadrado, o do círculo, na televisão, onde funga mais lento, mais gordo, mais ancestral, arrastando as palavras numa espécie de cuspo contínuo que escapa da sua boca sem parar. O colega do CDS, companheiro indefectível, apanhou-lhe o barroquismo da retórica, tudo está mal, o Sócrates tem de ser investigado. Freeport anda no ar, foi mais um vírus criado para a época de eleições. Quando Sócrates acertava com o martelo na cabeça de um prego (ui!), eles andaram um pouco à nora. Agora aí está tudo de novo, bem preparado e a horas. As vozes dos corredores conventuais dizem que o Sócrates nunca teve ideias. Nem licenciatura. E é arrogante. Os tiros de barreira contra o governo, de gente que fez parte de não-governos, vieram acompanhar o básico (muito táctico-estratégico) de Ferreira Leite, ilustre senhora que comanda o PSD. No momento em que ela começou a balbuciar (nunca falou no déficit de 6.8) logo disse: «Este homem não tem estatura para primeiro ministro, gere a coisa pública ao contrário, será ele, não o salvador do país, mas o «coveiro» da Pátria.

Frases assim, maldosas e quadradas, pecam por ilusórias auto-estimas, a língua da senhora, daí em diante, já cortava a relva do governo rente ao chão - nada presta, nem os restos. Ela esquece as fracturas do seu partido, isso é coisa de outros, sinal do unanimismo. Discutem minudências na Assembleia, suspeitas, erros de contas, cêntimos a mais na algibeira daquele ou daquela. Uma palavra mais pesada. Os escândalos dos bancos BPN e do outro, dos ricos, BPP, onde foi descoberto um buraco negro que pode absorver tudo o que resta de nós. Manuela quer poupar, nada de obras públicas, uns biscates aqui e além, baixa de impostos, auxílio âs pequenas Empresas, pequenas Empresas, pequenas Empresas. O Rangel ruge por eles, um garoto aprendiz também, são o futuro do Partido. E o Sócrates já não sabe onde esconder tantos dos seus crimes, derrapagens, as ideias fogem e toda a gente diz que ele não faz nada nem há dinheiro para nada. A crise é global, mas o país devia ter previsto tudo porque tem bruxos para isso. Paulo Portas, de grande oratória e um tique de cabeça que parece vindo da Revolução Francesa (a do cinema, claro) está abaixo nas sondagens. Mas oprimeiro submarino onde ele gastou uma pipa de massa (era o TGV dele) vai servir-lhe para uma viagem inaugural, como capitão Nemo. António Costa responde aos parceiros. Os parceiros não sabem como se ouvir uns aos outros.



«Oiçam bem, não podem dizer que nada funciona. As leis são entregues ao Professor Cavaco e eles veta-as. É
um direito que lhe cabe. Vá vetou oito Decretos-Lei. Cavaco, saindo da bruma dos seus tempos, agora conduzindo um Audi, continua a não ter dúvidas mas admite que por vezes se engana. Jerónimo, o vermelho desbotado da longa existência, mantém ordenadas as suas hostes e é bom de ver aquele comité central tão parecido com uma escola cheia de meninos atentos. O Bloco de esquerda não lhes quer nada. É um Bloco que começa na menina agrimensora, morena, de olhos escuros e palavra rápida, e termina, por agora, no púlpito do Louçã.» Que líder! Vão por ele, dizemos nós, irresponsáveis, porque o Bloco é que está a dar. É chic. É solto. E tem a grandeza de alma para declarar que, mesmo que ganhasse a maioria absoluta, não assumiria o poder. A sua vocação é a política. Mas a Ferreirinha do «Eixo do Mal»,onde, mais do que nas «Noites da Má Língua», acompanha uma gente alienígena que bolsa palavras como sopros de ar, ou vómitos retidos, vozes sobre vozes, esgares de crítica sem montante nem jusante, todos simpáticos mas sem perceber nada do boi de que falam. A Clarinha viaja e escreve bem: não devia estar naquela «Coreia» omde nunca se saberá, entre as coisas nada aceitáveis que os colegas dizem, quando surgirá UMA, uma ideia apenas, que saibam sintetizar e analisar. Aquilo assim é muito rasca e absolutamente tolo e absolutamente snob. Eixo fedorento.

Veja este rosto sereno, Eduardo Moniz. Veja o que a gente vê. Eduardo Moniz, génio da TVI, devia misturar estes programas todos, com uma telenovela pelo meio, daquelas que arranja com bons actores e boa produção, embora feitas de intrigas e maldades verdadeiramente impensáveis. Ó homem, veja se conserva sempre algo de muito semelhante a «Olhos nos Olhos». E trate da redacção do telejornal: você está mesmo convencido de que o povo português quer tanto molho de desgraças, crimes e massacres à hora do jantar? Essa pornografia devia ir para o fundo da noite, não os bons filmes, ou bons ou razoáveis. Ver um filme até às 3 da manhã. A lei devia regular isso: porque quem faz a verdadeira censura ao normal senso de cultura são vocês. Todas as televisões fazem o mesmo, com aquelas manhãs pirosas, com aquelas notícias repetidas, com aquelas tardes (das Júlias) e o esmagamento da nossa sanidade mental, sob o peso dos comentadores de futebol. Dizem que se gastam 300 horas de emissão por mês só com o futebol. Ainda por cima não há futebol em Portugal, não se disputa a bola com precisão de passe e cruzamentos de avanço: joga-se ao pontapé às canelas, preónios, tendões, mãos agrrando a camisola do adversário e árbitros todos incompetentes e corruptíveis. Moniz deve dizer à Manuela Moura Guedes que, além de se apresentar pelo nome, deve ler o ponto sem ironizar notícias, situações governamentais ou similares, a querer palmilhar a língua breve do Sousa Tavares. Ah, o Equador. E o Vasco Pulido Valente a arfar um «péssimo», um «não faz sentido, toda aquela assembleia, assim medíocre». Eis a razão do quadrado.
Daqui a um ano, se for vivo, direi o resto e o que me dizem para dizer: estive a contar e são, pelo menos, cem páginas sem Pachecos, rangers, bloquianos. E tudo mais ou menos com as personagens assim, embora haja hipóteses de que os melões do poeta Alegre sejam apenas performances para se candidatar a Presidente da República.
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texto segundo a voz popular e a rede política.

DE RECTÃNGULO A QUADRADO

3 comentários:

Miguel Baganha disse...

Uma reportagem notável e autêntica sobre uma nação quadrada a vários níveis.
Parabéns por este belíssimo artigo, João!Diverti-me imenso enquanto a informação enchia o disco rígido.

Daqui por um ano, vou ler a segunda parte...até lá, mestre...
Um abraço,

Miguel

Klatuu o embuçado disse...

São actores nalgum filme de horror do Roger Corman? :)

Abraço!

naturalissima disse...

Parte de uma História de Portugal, concentrada numa escrita jovem, critica e livre, carregado de muito humor e humor sério, verdades soltas que nos levam a ter vergonha de como tudo isto não passa de "show-off", jogos de interesses...

Aproveito para agradecer os importantes comentários que me tem deixado nos blogs. Ajudam sem dúvida na continuação daquilo que tenho experimentado, nos últimos tempos.

Deixo ficar um beijinho grande ao meu tioMestre
até já
SobrinhaDaniela