Conheci pessoalmente Cruzeiro Seixas em Angola, nos anos 60, aproveitando um tempo de licença na cidade de Luanda. Entre amigos, aí visitámos a belíssima colecção de arte africana que o pintor conseguira formar ao longo dos anos, naquele grande território atormentado por guerras inúteis. Ao rever alguns textos escritos sobre a sua última exposição na Galeria S. Mamede (CENAS INTOCÁVEIS), reparei numa frase que eu próprio citara, a partir do catálogo. Franklin Rosemot dizia a certa altura das suas considerações: «uma figura principal no movimento surrealista internacional pela segunda metade do século XX, ele continua a ser, como a presente exposição o demonstra, um excelente exemplo e mentor do século XXI». Ao revisitar, entre memórias, a casa de Cruzeiro Seixas em Luanda, mobílias populares integralmente pintadas de azul, objectos brancos, molduras brancas, nichos e patamares onde se situavam as principais esculturas mágicas, salto por cima daquela nota entusiástica: o artista português, hoje ainda activo e a viver numa residencial de idosos, falou-me há dias dos seus sonhos e das figuras humanas que lhe preencheram os melhores momentos de convívio, com afecto e verdadeiro conhecimento da sua obra. O Surrealismo foi sem dúvida um movimento determinante na história da arte relativa ao século XX: intenso, inovador, capaz de se desdobrar pelas almas contagiantes, este Movimento também se fracturou em consequência das mudanças de modo e fundamento em todas as grandes transformações do tempo. Em Portugal, Cesariny herdou um perfil soberano, talvez inspirado em Breton, mas o que podemos estudar na obra de Cruzeiro, mentor por sua vez de outros artistas, é um talento fiel ao rigor e à encenação do espaço. O pintor não era surrealista porque sim, tanto quanto aconteceu no século XX, mesmo quando alguns perdiam o apego ao modo, visando outras experiências, opostas, mas continuando a dizer-se representativos do Movimento, ostentando o seu forte galardão, quer na via caligráfica, quer simplesmente da abstracção, por vezes ciosos de sopros orientais. Ora isso mudava muita coisa. Cruzeiro Seixas, criador das suas composições, morfologias, lendas, oratórias do mito e dos seres intocáveis, sempre se conservou fiel às técnicas que desenvolveu e aperfeiçoou, sempre manteve o seu pensamento alinhado pelos princípios e concepções da estética surrealista. Quase profissional, no sentido desse apego a um jogo certeiro, sem cartas viciadas, ele tem sido um autor de excelência, transportável, sem desgaste maior, para o século XXI.
apontamento da memória
Artur Cruzeiro Seixas nasceu em 1920. A sua ligação ao grupo «Os Surrealistas» cobriu a apresentação inicial ao público (colectiva em 1949): trazia «estranhas esculturas de meias de seda armadas em estruturas de arame». Mas a sua afirmação verdadeiramente significativa aconteceu na área do desenho, escrita inusitada, caligrafia de delicada presença formal. Tratou-se, e durou até hoje, assim o posso dizer, de uma especialidade aparentemente suspensa da própria banda desenhada, antes de ela ser essa verdade cósmica, de superior design, que Alex Raymond nos legou. Esta imaginária filiação em nada belisca o espírito superior, com outros riscos e outros propósitos, do belo formulário gerido por Cruzeiro Seixas. Ele foi, quase de súbito, surrealista, plástica e poeticamente, na metamorfose que imprimia a muitas das figuras, sujeitando-as ao paroxismo de cenas de violência e crueldade, como referiu José Augusto França. Mas o que importou foi o seguimento gráfico, lírico, poses das citadas encenações operáticas, composições de palco (o plano ou o palco) inventadas com ênfase, formas por vezes inspiradas na poesia de Lautréamont, universos de valor onírico, maior entre os maiores da arte portuguesa dos anos sessenta. Senhor seguro de uma imagética efectivamente invulgar, a dança das linhas modeladoras, neste autor, servem profundas dinâmicas estruturais e uma suavidade algo feminina, desde as anatomias e os adereços ao tipo de musicalidade virtualmente inserida nas cenas e nas «paragens» de cada enquadramento.
um mundo metamórfico e crepuscular
Cruzeiro Seixas toma o rumo de Angola em 1951 e ali trabalhou no museu de Luanda, estudando os universos da expressão plástica nativa. Muito respeitado no meio, contribuindo para a cultura da cidade, inclusive quando acolheu Nikias Skapinakis (pinturas de Lisboa) e outros artistas. Ele teve o mérito de aceitar um convite de artistas para expor em colectivo, apesar do estatuto que alcançara enquanto director do museu, num espaço de lamentáveis lacunas nesse campo. Quando voltou a Lisboa foi entendido justamente pelo lado da cultura demonstrada e opções estéticas inspiradas, tendo assim sido director da Galeria S.Mamede, de 1969 a 1974, e a ele se deve uma boa parte do lançamento de autores como Paula Rego, Mário Botas, António Areal ou Cesariny. Os surrealistas portugueses, após alguns endeusamentos e liturgias vindas de França, chegaram a disputar o seu próprio pelouro, defeito próprio de certos radicalismos ao tempo.
4 comentários:
Este artigo homenageia um dos grandes nomes da pintura portuguesa. Uma vida preenchidíssima onde o percurso artístico vai além da individualidade, ensinando e promovendo vários talentos actualmente na ribalta. Cruzeiro Seixas, entre outras coisas também fez poesia.
Tal como ele um dia disse: "eu não sou um pintor mas sim um homem que pinta."
Os grandes e incontornáveis nomes da arte precisam é de ser reconhecidos em vida, não postumamente. Tal como seu caso, meu bom amigo.
Excelente artigo, João.
Um grande abraço,
Miguel
Um encontro bonito, quando há ainda tempo para recordar e discutir:
«Desfolhar uma rosa
é poesia
ou prosa?»
Excelente trabalho.
Obrigado.
Com amizade.
JDACT
Que belo texto
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