O rapaz pareceu-me dotado de bom senso e os portugueses em geral apreciaram que ele tivesse estendido a mão ao vilipendiado Sócrates. O país precisava disso como de pão para a boca e os sonhos de vencimento da crise iam e vinham nos passeios do nosso desencanto, apesar das festas, mega concertos, viagens para ilhas encantatórias e outros continentes. País (outrora) de marinheiros, Portugal engorda uma colossal e helénica mitologia das praias e do bronze. Qualquer crise passa sempre um bocadinho ao lado e os partidos, olímpicos, sectários, opacos, ensandecidos com a competitividade, o clubismo cego, a petrificação programática, quase nem perceberam o forte enfarte de miocárdio de que o capitalismo (selvagem ou assim-assim) foi vítima. Convalescente, ainda nos cuidados intensivos, ninguém ao certo pode garantir que este sistema está livre de perigo.
Mas eu tinha começado por falar do líder PSD, Passos Coelho. Ganhou com razoável limpeza o lugar, batendo dois adversários contrastantes: Rangel, sobretudo, rangeu quanto pôde e meteu medo a muita gente, porque a retórica e os gritos, ainda que com algumas razões, desertificam senados e nivelam a modernidade por certezas a duas dimensões.
Partem pessoas para férias, a crise ferve, Medina Carreira, com a sua cassette, nunca mais acaba de multiplicar diagnósticos, arrasando os cérebros miniaturais dos políticos, dos deputados, mas sempre sem um plano bem estruturado para dizer onde se corta e como, onde se esfola e de que forma, onde se constrói e com que parcimónia, de que lado está Portugal, enfim, no mundo da globalização aberrante. Qual é o nosso novo caminho marítimo para a Índia?
E então, na pior altura táctica e estratégica, algumas veladas palavras de Passos Coelho, foram pingando para a sociedade civil. E de súbito, com os carros a aquecerem para a primeira volta, o rapaz derrama sobre o país uma espécie de revisão constitucional, quase uma substituição da nossa Carta de Nação. Claro que o documento, que altera mais de cem artigos, foi grelhado por uma comissão de «peritos». Mudando tanta coisa, por vezes com algum cinismo, deixaram a palavra socialismo a encimar o nosso Pórtico de 76. Esqueceram-se ou procuraram derrubá-lo com o esmagamento e nova redação dos artigos? Os maiores constitucionalistas, ao comentarem ontem à noite este tufão, mostraram, urgentes, que era tempo de desnomear ideologicamente a Constituição e fazer os ajustamentos e actualizações necessárias, com bom senso, e aliás noutra altura mais apropriada, porque uma tão grande enchurrada de letras só vai atrapalhar tudo, criando manobras contra a concentração no combate à crise que é preciso apurar.
Dando uma vista de olhos pelos jornais (desta vez não para usufruir de mais um boato ou escândalo centrado em Sócrates), vemos que os partidos da esquerda consideraram a proposta do PSD « um ataque aos princípios da democracia.» O comunista António Filipe denunciou que o fim da "justa causa" levaria à arbitrariedade dos despedimentos. José Manuel Pureza alertou para o fim da gratuidade (mesmo tendencial) da saúde e da educação, lembrando que a responsabilidade de travar este projecto cabe ao PS, cujos votos são necessários para fazer a maioria de dois terços e para aprovar as alterações ao texto. À direita, o CDS acusou o PS e o PSD de tratarem a revisão com "tacticismo político", simulando um desacordo depois de terem chegado a acordo no PEC».
Desde esta surrealidade do CDS à despropositada artilharia do PSD, Portugal, sem necessidade dos Sindicatos, devia invadir em massa os partidos e clamar pela voz do povo, que é quem mais ordena.
Coelho, ao criticar ontem, na televisão, a mania de uma Constituição inamovível, o que é mentira rasca, quase lhe fugia a boca para dizer que daqui a uns anos teriamos uma Carta terceiromun... e logo atalhou para antiquada, imprestável. Mas ele devia saber que há períodos constitucionais determinados para as revisões correntes e que o texto português ainda é um dos mais avançados do mundo: coisa que se diz, naturalmente, com verdade histórica, política, e sem sectarismos de uma qualquer cegueira (mesmo branca) que ande por aí.
João Proença, da UGT, considerou que este documento «é o pior ataque ao Estado Social desde o 25 de Abril.» Ao falar sobre a frase que substitui justa causa, uma das mais cruéis e hipócritas mudanças ao texto cnstitucional, tanto esse sindicalista como os verdadeiuros peritos da matéria alargaram a voz e o gesto, sem patetices como «olhem que isto é mais profundo do que parece e tem de ser bem estudado». Coelho acha que de justa causa se deve passar para causa atendível.
Jorge Miranda, eminente constitucionalista, que fez parte da Assembleia Constituinte em 76, afirmou ontem (à Renascença) que a substituição de «justa causa» nos despedimentos «não pode ser aceite» porque viola os limites materiais da Constituição.
Além do aumento dos poderes do Presidente da República, que passaria a poder demitir o Primeiro Ministro sem haver eleições, e teria mandatos de 6 anos, entra em cena a «moção de censura construtiva» que daria lugar, perante o aceitamento dos conteúdos construtivos, à possinbilidade de prolongar-se a acção governativa, mesmo com vitória do acto censório. Paulo Otero denuncia a contradição entre reforço dos poderes presidenciais e a criação da figura da moção de censura construtiva.
E, entre tudo isto, os ganhos da Assembleia da República são, no mínimo, curiosos: A Assembleia da República iria alcançar o poder de se auto-dissolver, provocando eleições antecipadas sem constrangimento de prazos, além de ter o poder de substituir o Primeiro Ministro, sem ouvir o Presidente.
Passos Coelho escorregou e arranjou alguns eufemismos para se defender. Esta última disposição aqui citada faz-nos pensar, afinal, que há nesta aventura mazelas de terceiro mundo (com os nossas desculpas a quem luta nessa penosa condição civilizacional e cultural). Mas oiçamos ainda a voz de um homem do PSD, com lomga carreira, actual presidente da Câmara de Cascais, António Capucho, ao comentar o processo kafkiano de Passos: «Penso que se podia ter ido mais longe».
2 comentários:
O problema dos portugueses é esse mesmo: ficar sempre a meio do caminho. Ao contrário do que acontecia na épica era quinhentista, agora a ode é outra - já não se almeja ir mais longe.
Uma belíssima análise. Como sempre, João.
Um abraço e boas navegações!
Não tenho a certeza de que os nossos políticos tenham noção do «enfarte de miocárdio» que cita. Continuam a alimentar-se e a beber à fartazana.
O povo? O que é isso? Serve para comer, já sabemos, estão magros, magríssimos mas têm sol e praia. Não sabem ler nem escrever, nem se importam, vamos lá, os «patrícios» são os outros, os cultos, os iluminados, eles que decidam.
Um ou outro escravo «liberto» ainda reclama, mas só a História irá lembrar a sua importância.
Porque será que é tão difícil para nós esquecer por um tempo as capelinhas e ir rezar em conjunto para o alter-mor, a ver se Deus nos ouve e ajuda a ultrapassar a doença?
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