quarta-feira, março 30, 2011

S0UAD MARSSI, ARGÉLIA, CANÇÕES POLITIZADAS

Souad Massi

Souad Massi, quando nos olha, é já um acontecimento perturbante. Quando o seu olhar se consolidava (vivia ela junto do pai e ouvia-o cantarolar canções árabes tradicionais, a par da mãe que ouvia pela rádio James Brown e outros ícones da música anericana) já os seus dons de sensibilidade musical lhe brotavam nos lábios.

É um caso recente mas, a bem dizer, quase todos os verdadeiros casos são recentes. Por vezes, cedo demais, apodrecem depressa mas a fala das plausíveis raridades dá a volta ao mundo espalhando pela distância a força e a distenção dos músculos, cordas vocais fidelíssima ao directório das verdadeiras vocações.

Li no Público que a música da argelina Souad Marssi reflecte ascendências próprias, respirando o ambiente da tradição musical magrebina misturado com a folk, o rock ou o funk. Há mais de uma década que vive em Paris para onde foi desiludida com o clima político do país natal. Mas continua a visitar a Argélia, matando saudades da família. Canta em árabe. Também em francês ou em inglês.

É, com os músicos habituais que actua, daqui a dias, na Fundação Gulbenkian, no ciclo das Músicas do mundo.

Ao lhe perguntarem o que achava da actual situação da mulher, a sua resposta parece emergir do seu lado ainda inocente:

«Quando era jovem era um dia (o da mulher) que me dizia muito, porque sabia que havia mulheres que se tinham revoltado, lutando pela implementação dos seus direitos. Hoje continuam a existir muitas injustiças em torno das mulheres, como as diferenças salariais em relação aos homens, embora me pareça que a situação mudou para melhor, principalmente na Europa. Mas ainda há muito a fazer. Em França, é como se estiesse em casa, na Argélia. Aí sou universal: falo das mulheres, da paz, do amor, para mim temas universais. Seja como for, a Argélia é um mundo à parte. Estamos abertos ao Ocidente, somos africanos, somos árabes. Depois de tempos convulsivos, alguns de nós ainda vivem a psicose da guerra civil. Mas as pessoas gostam muito do Presidente porque ele conseguiu trazer ao país alguma estabilidade, embora não gostem das pessoas que o rodeiam. Espero que, mais tarde ou mais cedo, um movimento de estudates possa fazer alguma coisa para melhorar o país».

Perguntada sobre o fenómeno da sua música, diz:

«A música sensibiliza as pessoas. Une-as. Acompanha as revoluções. Ao longo da história, todas as revoluções tiveram a sua música. esde Bob Dylan ou Joan Baez, por exemplo. É esse o poder da música, denunciar e sensibilizar, principalmente quando existe uma relação de confiança entre o público e o artista e este tem qualquer coisa de relevante a transmitir.»


DENTRO


Música politizada que tanto pode exprimir a melancolia folk como a celebração africana. É esse o universo da cantora argelina Souad Massi e é no mais profundo dessa ressonância que ouvimos em Lisboa. Algumas palavras que ela pronuncia, uma respiração e um modo de estar naturais, o modo franco e doce com que olha para a câmara, tudo isso me faz lembrar «O Estrangeiro», de Camus, e a sua cativante personagem de amor, Maria. Quando Mersault ficava deitado de costas no mar, suspenso, boiando e olhando o céu azul, Maria estava no seu pensamento.


Há personalidades que nos olham com uma sabedoria estranha, que nos atraiem para o mundo delas, tanto pelo rosto e pelas mãos enquanto falam, como pela música que espalham no mundo, de fala plural, dizendo-nos quase ao ouvido falas de há instantes que conseguimos conservar na memória para sempre. De quando em vez, elas passam por nós, murmuradas, numa despedida.

2 comentários:

Miguel Baganha disse...

Sem dúvida, há casos e pessoas com essa capacidade magnética, puxando-nos para o seu universo, ou persuadindo-nos a memórias que julgavamos ter perdido.

Não ouvi ainda a voz nem a música de "Souad Massi". Fiquei curioso e vou procurar saber mais.

Obrigado pela sugestão.

Um abraço

jawaa disse...

Não conheço, não ouvi, mas a ideia que tenho da música árabe é de uma sonoridade que transmite doçura, correspondente à que tem o olhar dessa jovem, pelo menos a música tradicional que tive o gosto de ouvir há largos anos numa estadia em Poitiers.

A Argélia é um lugar de magia que me prende por razões opostas e fundas. Tem escritores sem igual, de Camus a Marie Cardinal e Malika Mokeddem, e foi o país onde faleceu meu irmão.

Bonito este post, diferente, colorido e cheio de poesia no dizer das palavras.