domingo, janeiro 06, 2013

PÚBLICO: A SÍRIA ESTÁ A MORRER

                                          Jornal Público
A Síria está a morrer, escreveu em título o jornal PÚBLICO. E escreveu com razão, escreveu com as palavras nos olhos, com as imagens no coração. Foi assim que eu próprio pensei quando escrevi sobre esse Apocalipse e lhe reservei a forma de livro: «NARRATIVAS DA SUPREMA AUSÊNCIA». Escrevi durante dois meses, convulsivamente, rodeado de jornais e de gravações, pensando nos mortos que se revelavam dia a dia e que hoje a ONU, assumindo apenas o papel de observadora, conta por 60.000. Depois, como nem os povos, nem as nações nem os organismos internacionais se mobilizavam mais do que as minhas narrativas, parei de escrever e selei o monte de páginas em forma de livro. Ao contactar com as editoras, entre silêncios e escusas, apesar de eu insistir que estas vozes são mais importantes, na hora, do que as notícias sobre os campos de golfe, ao lado da nossa própria crise, os mails não tiveram resposta e as secretárias enviaram-me respostas automatizadas.
Dizia eu a certa altura:
A terrível realidade agora vivida na Síria ganhou sentidos e contornos apocalípticos. O mundo está perigoso. Os heróis não arrastam consigo nem a ética nem a razão. Transformaram-se em demónios do massacre e da petrificação da História, em o menor temor perante as cidades que destroem, o futuro que empurram para nunca mais, o suicídio bombista que os faz desaparecer, a eles e a centenas de outros em volta, gritando contra os tiranos ao accionarem a arma mais mortífera de que dispõem, sagração ímpia que atinge os homens e é premiada por Deus. É preciso que a religião tenha infectado a alma e a razão, a própria consciência das pessoas, para que o martírio adquira este estatuto leviano e cego, numa luta que vinga Deus oculto dos seus inimigos mais cépticos, antigos ou em espírito. Oculto, isto é: ausente.
Parece que falar desta forma, mesmo por alguém que já publicou muitas palavras, não bate certo, ou seja: não faz sucesso nem negócio. É assim a suprema ausência e a cegueira dos surdos que não nos podem ouvir porque ainda sabem contar o dinheiro só com os dedos.

1 comentário:

jawaa disse...

João, eles (os mais inteligentes)acham que luta contra moinhos de vento.
E luta, concordo. Ficando-me pelos moinhos e esquecendo os ideais de D. Quixote, que importa o soluço das velas contra a destruição dos cereais se é para o prazer dos homens?
É o dinheiro que conta, também para os editores, que importam as palavras bem cerzidas ou a mensagem, que importam os mortos da Síria senão para manchetes de abertura de telejornais, logo esquecidos dias depois quando outra miséria lhes dá audiência ou outra catástrofe assoma?