domingo, março 17, 2013

UM REQUIEM PARA REFUNDAR QUE PORTUGAL?

jornais e quotidianos de um país que se enganou na Europa

de um filme de Paulo Rocha

Abri mais uma vez o jornal e senti uma grande tristeza e rasguei aquelas folhas de papel atulhadas de fotografias e de letras subitamente encavalitadas na névoa dos meus olhos: pareciam flutuar numa qualquer água suja, fundo de terra afundando-se. Havia por lá palavras como «espécie humana», como «sangue», «recua» ou «Kyoto». Antes de minorar o fumo tóxico que chega a encobrir Pequim, obrigando a população a usar máscara, devia pensar-se no sentido que tomou a actual civilização, nos impérios falidos e nos que se julgam com direitos sobre os pobres que sobraram. Para que serve a arrogância nórdica, incluindo a germânica e a britânica, se o Mediterrâneo ainda está a atear a sua Primavera e a China está para chegar (já poluída) se calhar abraçada à Índia, pujante e fracturada, espalhando violações por grandes manchas humanas sem segurança mas carregadas da maior produção de cinema coleante do mundo.
Portugal fez uma descolonização tão repentina e aberrante como o surto de austeridade da Troika, depois de uma guerra de catorze anos, em que houve tempo para todas as refundações e não se tentou nenhuma, tendo sido espoliados dos seus bens, afectos e velhas famílias, quase um milhar de portugueses, aos trambolhões, numa ponte aérea internacional, voraz, sem que os militares tivessem, no mínimo, assegurado a nossa honra e a dos adversários, que visivelmente não estavam à altura da sua. Mário Soares não tem nada que se molestar com isto, eu estive em Angola e sei o que digo: nem a guerra tinha razão de ser nem o epílogo podia ser decidido por gente ensandecida, apaixonada ou politicamente de cabeça quente. E as forças armadas que não se amofinem, porque se tinham pressa em sair dali, o que já podiam muito antes de haver tentado, no mínimo reformavam-se, a par das populações que o desejassem, e CONTINUAVAM LÁ, em plena independência dos emergentes países, até que os verdadeiros cidadãos e suas naturais reformas fossem transferidos para lugares apropriados, sobretudo na Pátria que segurara as pontas com tanto sacrifício. Salazar pensou assim, recusou emendas, e teve lá o seu voto julgando-se sempre Presidente do Conselho. A sua visão do futuro, mesmo quando a guerra já durara uma década, era mais do mesmo. Essa loucura repete-se hoje, aqui, no desemprego e na fome.
Como agora, numa Europa a que aderimos em jeito cosmopolita, e que, após o desenho da utopia, começa a desmoronar-se, fracturando-se por nações que se habituaram a ser diferentes entre si, respeitando-se assim até lhe derramarem dinheiro novo por cima, desde que cedessem (como aconteceu a Portugal) meios e produções centenárias. Falam no esbanjamento do Sócrates, mas o desastre começou logo com o PREC, com as apropriações de bens alheios sem medida jurídica, sem lei nem roque, sem amanhãs cantando. Aquilo não era bem uma revolução e por isso não tinha nenhuma legalidade revolucionária, o que se pode analisar caso a caso, antes de se restabelecer a justiça (lenta e por vezes mesmo cega) e um princípio constitucional que chegou a estar cercado no edifício da Assembleia que o procurava democraticamente definir.
Por isso chegou a vontade de recolher as algas da maré: calibrando maçãs e laranjas. Mas os frutos bons que não tivessem a medida da Europa caducavam para espaços de mendicidade. Os velhos do vinho foram comprados para venderem as vinhas, os pescadores para abaterem a frota, os agricultores para se aconchegarem em casinhas com uns milhares de euros para a sopa. O governo abriu braços e pernas, desatou a usar dinheiros e fortunas, fundando «fundações» de betão, políticas de crédito à habitação e mil e uma coisas que atingiram as compras lunáticas dos Ferrari. Os grandes impérios económicos, cada vez mais habituados a reinarem sobre ditaduras e democracias, envenenando a economia e  tudo o que a pobreza enganara de sonhos, caíram sobre povos inteiros, uns rebentando do miolo, com o dólar, outros prosseguindo a sua globalização e mandando os credores pararem créditos, exigindo pagamento de dívidas (colossais) com as quais afinal haviam vivido à tripa-forra.
Veio o governo de Passos e de Gaspar. O país estava de rastos e os mais ricos sopravam dinheiros para tudo quanto era sítio seguro. Foi sempre assim. Os «cortes nas gorduras» é uma expressão afinal popular e não técnica; e a mando da Troika a austeridade, com mais impostos e raspagens de emergência, fizeram o país ajoelhar em menos de um ano, sempre num descasque mal esclarecido e sem qualquer conotação com as reedificações económicas perante milhares e milhares de falências e milhares e milhares de desempregados, sobre os quais se somam, pelo menos, duzentos mil emigrantes. Uma espera digna, com manifestações dignas, tem facilitado a vida a um governo de palavras intermitentes e de nenhuma narrativa capaz de explicar cada fase do mergulho. O ministro das Finanças, é cada vez mais um personagem beckettiano e menos ministro.
Projecta bonecos e fala palavra a palavra, por vezes redundante, apesar da escrita. Todos, lá fora, o consideram figura de destaque. Os pobres de Portugal não percebem nada disso. Dizem: aquela história da idade do gato era uma saudade qualquer dos gatos que lhe faltam.
Agora faltam ainda, por mais um ano, ou dois, ou dez, ou vinte, mais quatro milhões. Em que país civilizado tais reviravoltas continuavam a ter credibilidade ou gente com paciência para tanta raspagem do tacho sem um abrir de janela. Que não há alternativa. Que vamos no caminho certo. Os gregos aprenderam depressa essa lição. Aqui há tempo, Passos prometeu que «não ia esticar a corda» -- falava da austeridade sobre os portugueses. O pior é que a corda já partiu e ele não deu por isso, continuando a ver passar o rio da austeridade sem saber como pôr o país a flutuar.
António José Seguro ensandeceu, faz demagogia, ergue cada vez mais a cabeça, mas afunda o PS com a actual maioria.
E a alternativa?
Pois meus amigos: lembram-se da ponte aérea e do colonialismo despachado num ápice? É o que temos de fazer. As coisas que estão a mais e ainda disfarçadas devem ser roubadas ou destruídas. As forças de investigação e judiciais devem controlar todas as saídas patrimoniais e, no plano virtual, assaltar os bancos e os grandes vendedores cujo dinheiro voa para parte incerta, desfazendo tais nós e recolhendo valores mal parados. As rendas voltam a subir, pela mão dos tais senhorios bondosos: qualquer buraco custa 800, 1200, 2000 euros. Daqui a cem anos vão chorar porque ninguém pode fazer obras com rendas da 1200 euros. Um estado moral e moderno deveria criar tectos de compra, de aluguer, sempre numa escala que não despejasse as pessoas na rua nem as mandasse emigrar, antes as colocasse num grande plano ordenador do território, entrando pela terra adentro e criando condições novas para a agricultura e cidades redimensionadas. O que há para refundar não é o país, propriamente dito, mas a rede de contradições do governo e a falta de perspectiva  para tornar paralelos o nivelamento ajustador (reequilibrando o que for necessário) e o plano inclinado (a subir) onde já brilham muitos sucessos e faltam outros espaços de produção bem ponderada e inovadora. 
Esse trabalho não pode ser como uma guerra de catorze anos e um milhar de espoliados: está-se a repetir, com duzentas mil casas novas mas vazias, o abandono das propriedades primeiro arrancadas aos famosos latifundiários e os oportunismos perante quem chega de mãos a abanar ou quem parte da mesma maneira. Essa já não pega. As grandes e cegas teimosias alastram pelo território sem nada produzirem. Depois ficam impunes aqueles indivíduos que chuparam o BPN (não gosto deste lugar comum mas é o que temos de mais sensacional, depois das relvas e da idade dos gatos). O medo não é o do filósofo, medo de ser português. O medo é o de não ser português em Portugal, onde há tantos recursos fora do manejo golpista dos dinheiros e das megalomanias estradistas, surfistas, futobolísticas.
Do Editorial Diário de Notícias 17-03-2013
O ministro das Finanças conseguiu retirar o País de uma encruzilhada e empurrá-lo para um beco sem saída. A austeridade não é, como prometeu Vítor Gaspar, o passe matemático que nos levaria ao crescimento. Falhou. Não se trata de deificar as previsões. Todas podem falhar. Até Passos Coelho já diz que «previsões são apenas previsões». O pior é que não são apenas. O País não é uma previsão, a recessão que nos arrasta para a pobreza não é uma previsão, o défice que ultrapassa todas as barreiras não é uma previsão, a dívida que cresce descontroladamente não é uma previsão os direitos perdidos e ameaçados não são uma previsão.
Hoje mesmo Vítor Gaspar disse «não sei», «não tenho plano B, nem plano C», numa conferência de imprensa onde se colocava o problema da inconstitucionalidade eventualmente confirmada até dois mil milhões de euros pelo Tribunal Constitucional. De súbito, a incompetência constitucional do governo pode colocar-se como um impasse e uma demissão. O euro não poderia ter sido desenhado assim nem estar sujeito a uma indevida partilha: quase pleno emprego a norte, colapso quase mortal a sul, já com xenofobias intragáveis.
O líder socialista, que agora assume a ruptura definitiva com o Governo e já não exclui uma censura parlamentar, mesmo que ineficaz, sabe que está mais próximo de ter de assumir as suas responsabilidades.
Mas qual é o caminho para o futuro  que propõe António José Seguro? As sondagens são aterradoras no balanço entre os dois maiores partidos: dir-se-ía que o país não olha para os líderes dos partidos, todos, incluindo o CDS, comentando «venha agora o outro». Não: o que o país, mesmo aquele que não vem para a rua, está a afirmar é que, no termo (ou antes) deste mandato, todos têm de jogar para a mesma baliza. Será uma espécie de ruptura com o sistema, uma obrigação ética, política e nacional.

1 comentário:

Miguel Baganha disse...

Neste quase Ensaio acerca do entendimento humano, lêem-se verdades que não agradam. Mas estas verdades, apesar de paradigmáticas e ainda que justificaveis pelas acções da natureza humana, não são inexoráveis; verdades assim foram feitas para se transmutarem, rompendo, tal como diz e se necessário com o próprio sistema. No livro Dois Tratados sobre o Governo, de John Locke estão lá certas ideias que poderiam servir de base para uma "refundação" legítima dos direitos da sociedade civil bem como uma "revisão" dos próprios valores do Contratualismo.

Os recortes de jornais como fragmentos do quotidiano de todos nós a par da imagem do novo filme «Se Eu Fosse Ladrão, Roubava» de Paulo Rocha, ilustram muito bem esta fiel análise da filosofia política universal. Apesar de elegíaco, uma obra de arte dialogando entre a escrita e a imagem.